quarta-feira, 4 de maio de 2011

As Anas da minha vida

Não vou me gabar. Li apenas um livro de Léo Tolstói.
E aos 19 anos, durante uma crise branda de depressão, no ano mais sombrio da minha adolescência, conheci minha primeira Ana literária, a Karenina.

Essa era uma Ana perturbadoramente satisfeita com sua vida de mãe-esposa-e-dona-de-casa. Pelo menos, na superfície. Mas talvez fosse a única que uma mulher de respeito da Rússia do século XIX podia almejar a si própria...
Uma Ana perfeita levando uma existência perfeita, até que uma inesperada e sedutora tentação surgiu em uniforme militar e abalou todos os alicerces do seu mundo conhecido. E claro que esse romance acabou em tragédia, porque ia contra a ordem natural da sociedade da época que dizia, também nas grandes obras da literatura, que a mulher devia casar, ter filhos e cuidar da sua família, ao invés de buscar outro tipo de felicidade fora do lar e dos sagrados laços do matrimônio.

Mesmo imersa na minha dor juvenil e ainda que impressionada com o final do livro, aquela parecia uma história tão irreal e antiquada quanto seus caramanchões! (Alguém do final do século XX consegue imaginar tal coisa?) E acabou se dissipando na minha memória.

Quase duas décadas depois do meu encontro com a Karenina e, agora, eu mesma na condição de mãe-esposa-e-dona-de-casa, conheci outra Ana. Sem sobrenome.
Pois a Ana de Clarice Lispector pode ser qualquer uma de nós, pode ser uma parte de dentro de nós que está dormente e escondida, apenas esperando o momento certo para se manifestar... Provavelmente a chegada de um filho, quando o corpo engrossa e se torna sólido.

E assim como a Ana de Lispector, eu também caí num destino de mulher por caminhos tortuosos e, muitas vezes, fico incrivelmente "surpresa de nele caber como se o tivesse inventado." (...) A juventude anterior me "parece estranha como uma doeça da vida. Dela aos poucos emergi para descobrir que também sem a felicidade se vivia. (...) O que sucedera comigo antes de ter o lar estava para sempre fora do meu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim o quisera e o escolhera." 

Quase um século separa as personagens desses vizinhos eslavos (Clarice nasceu na Ucrânia). Os anos abrandaram a dramaticidade da mais recente e tornaram-na menos trágica, mas ela é igualmente prisioneira de um destino, aparentemente, já traçado para as Anas de qualquer lugar ou tempo.
A minha deixou as páginas da literatura e tomou conta dos demais cantos do meu ser há pouco mais de um ano. E temo que ela seja mais russa do que ucraniana, pois desde os 19 anos cultivo uma predileção pelo infausto.

Mas enquanto o trem não chega, só sinto a melancolia de uma certa hora da tarde, quando "o mundo se torna de novo um mal-estar".