quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Emoção sobre três rodas

Inventado no Japão no final do século 18 por um missionário europeu, rickshaw significa na língua da Terra do Sol Nascente: veículo propulsionado por um homem.

Ele foi levado à Índia ainda no tempo do Império Britânico, em 1880, para servir à corte inglesa na cidade de campo para a realeza, Simla. E, em poucas décadas, espalhou-se por todo o Sub-continente. Em Calcutá (antiga capital indiana), foram comerciantes chineses que solicitaram do governo a permissão de usá-los para o transporte de mercadorias, primeiramente, e de pessoas, logo a seguir.

Os anos se passaram e os rickshaws foram se modernizando (ou quase todos, pois ainda hoje é possivel ver homens esquálidos carregando qualquer coisa nessa anacrônica bicicleta de três rodas) e incorporando motor e taxímetro, que serve mais para decoração do que para medir a distância percorrida pelo veículo.
E a explicação para esta prática é que, desde que a Índia conquistou sua independência em 1947, o governo diminuiu o número de licenças para operá-los. Assim, oficialmente, há alguns milhares deles no país, mas na caótica e ilegal realidade urbana, há milhões trafegando por todo o território indiano. O pior é que boa parte do dinheiro que os motoristas fazem num dia vai para as propinas dos policiais não os tirarem das ruas.

Mas, sinceramente, sem eles a Índia perderia um pouco da sua identidade. Talvez nada seja tão pitoresco que a longa discussão entre motorista e passageiro a respeito do preço a se pagar. E podem apostar que eles sempre começam pedindo o dobro do que é justo. E se uma das partes não está satisfeita com o valor final, vê-se o motorista fazendo gestos e amaldiçoando o cliente perdido e o passageiro abordando outro rickshaw wallah. Minha lógica é bem simples: sempre há dezenas deles em cada esquina e, mais cedo ou mais tarde, alguém aceita o meu preço.

O que é impagável são os divertidíssimos episódios que já passei dentro desses veículos, como minha segunda mudança em Chennai, em que consegui colocar três malas cheias, dois baldes com produtos de limpeza e uma vassoura, além de mim mesma e outra acompanhante, num espaço que não devia ter 2 metros quadrados. Sem falar no meu colchão de algodão de 18 quilos amarrado com um barbante na parte superior do carrinho, que vim segurando durante todo o tortuoso caminho! Tudo isso porque o motorista foi ganancioso e não quis dividir o dinheiro que eu ofereci por dois rickshaws.

Mas é na época das monções que eles se tornam imprescindíveis. Não existe maior certeza do que ficar completamente encharcado dentro de um rickshaw na estação das chuvas, pois ele não possui portas ou janelas, apenas uma proteção de lona preta presa à uma carcaça de metal e sobre três rodas.

A escolha, ao se pegar um rickshaw em tais condições, é voltar para casa menos ensopado que fazendo o mesmo caminho de ônibus ou a pé.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Minha Capitolina

Em 1899, a literatura brasileira ganhou uma de suas personagens femininas mais controversas dos últimos cento e dez anos. E não foi por causa de suas ideias revolucionárias ou feministas, nem devido a um comportamento inapropriado para a época.

Pelo contrário. A menina de 14 anos apresentada por Machado de Assis, em Dom Casmurro, não tinha(quase) nada de extraordinário, nem na aparência física nem nas faculdades intelectuais. Na verdade, Capitu era, sim, dona de uma personalidade forte, mas seria apenas mais uma morena num vestido de chita desbotado do século XIX, se não fossem seus olhos profundos e inexplicáveis, como o refluxo das águas do mar. Foram eles que materializaram a natureza dúbia e misteriosa da mulher no romance machadiano.

Em 2009, o meu mundo feminino ganhou mais uma personagem, a mais controversa de todas e fruto de um relacionamento pouco comum: a minha filha meia-indiana, que ainda é muito jovem para chamar a atenção por seus atributos físicos ou intelectuais, mas que, assim como na obra de Machado de Assis, seduz as pessoas com seus imensos olhos castanhos e sua natureza ambígua e fluida (transitando entre dois mundos diferentes).

E foram eles que despertaram o meu amor materno pela minha Pequena.

Não é toda mulher grávida que acaricia a barriga e sente esse intenso e incondicional afeto pelo seu bebê ainda no ventre. É claro que eu me emocionava, durante as ultrassonografias, com as batidas rápidas do coração e o desenvolvimento dos dedinhos das mãos e dos pés, mas eu também estava mergulhada em outros sentimentos (de muito medo e angústia) e não conseguia simplesmente amar aquele ser desconhecido e em crescimento no meu útero.

Até que ela deu as caras, mas, novamente, eu fiquei tão ocupada com a dor pós-parto, o sangramento incessante, a cicatrização do corte, o leite empedrado, o choro frequente, a falta de sono, a exaustiva rotina de alimentar o recém-nascido a cada 2-3 horas, a troca de fraldas em ritmo industrial (...), que eu só fui conhecer a minha filha semanas depois do seu nascimento. E tudo o que eu via (assustadíssima) era uma menina com estrabismo neonatal (uma vez que os bebês ainda não possuem coordenação motora nem nos músculos oculares)!

Então, numa despretensiosa noite, tendo ela deitada no meu peito, com a cabeça próxima ao meu ombro esquerdo, eu vislumbrei toda a doçura e inocência do seu olhar, toda a magia da criação através de sua íris ainda sem cor definida.

Eram como ondas do mar arrebentando na beira da praia.

E foi naquele momento que o meu coração se encheu com um amor que eu jamais havia sentido por outra pessoa. Mas também foi naquele momento que me tornei Dona Casmurra: possessiva e ciumenta, com medo de perder minha Capitolina e seus imensos, profundos e inexplicáveis olhos de ressaca.