quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Minha Capitolina

Em 1899, a literatura brasileira ganhou uma de suas personagens femininas mais controversas dos últimos cento e dez anos. E não foi por causa de suas ideias revolucionárias ou feministas, nem devido a um comportamento inapropriado para a época.

Pelo contrário. A menina de 14 anos apresentada por Machado de Assis, em Dom Casmurro, não tinha(quase) nada de extraordinário, nem na aparência física nem nas faculdades intelectuais. Na verdade, Capitu era, sim, dona de uma personalidade forte, mas seria apenas mais uma morena num vestido de chita desbotado do século XIX, se não fossem seus olhos profundos e inexplicáveis, como o refluxo das águas do mar. Foram eles que materializaram a natureza dúbia e misteriosa da mulher no romance machadiano.

Em 2009, o meu mundo feminino ganhou mais uma personagem, a mais controversa de todas e fruto de um relacionamento pouco comum: a minha filha meia-indiana, que ainda é muito jovem para chamar a atenção por seus atributos físicos ou intelectuais, mas que, assim como na obra de Machado de Assis, seduz as pessoas com seus imensos olhos castanhos e sua natureza ambígua e fluida (transitando entre dois mundos diferentes).

E foram eles que despertaram o meu amor materno pela minha Pequena.

Não é toda mulher grávida que acaricia a barriga e sente esse intenso e incondicional afeto pelo seu bebê ainda no ventre. É claro que eu me emocionava, durante as ultrassonografias, com as batidas rápidas do coração e o desenvolvimento dos dedinhos das mãos e dos pés, mas eu também estava mergulhada em outros sentimentos (de muito medo e angústia) e não conseguia simplesmente amar aquele ser desconhecido e em crescimento no meu útero.

Até que ela deu as caras, mas, novamente, eu fiquei tão ocupada com a dor pós-parto, o sangramento incessante, a cicatrização do corte, o leite empedrado, o choro frequente, a falta de sono, a exaustiva rotina de alimentar o recém-nascido a cada 2-3 horas, a troca de fraldas em ritmo industrial (...), que eu só fui conhecer a minha filha semanas depois do seu nascimento. E tudo o que eu via (assustadíssima) era uma menina com estrabismo neonatal (uma vez que os bebês ainda não possuem coordenação motora nem nos músculos oculares)!

Então, numa despretensiosa noite, tendo ela deitada no meu peito, com a cabeça próxima ao meu ombro esquerdo, eu vislumbrei toda a doçura e inocência do seu olhar, toda a magia da criação através de sua íris ainda sem cor definida.

Eram como ondas do mar arrebentando na beira da praia.

E foi naquele momento que o meu coração se encheu com um amor que eu jamais havia sentido por outra pessoa. Mas também foi naquele momento que me tornei Dona Casmurra: possessiva e ciumenta, com medo de perder minha Capitolina e seus imensos, profundos e inexplicáveis olhos de ressaca.

2 comentários:

Anônimo disse...

Quase chorei, guria! Que texto pungente e cheio de amor. Lindeza pura!
beijos, com carinho

Ana Dos Santos disse...

Que bela homenagem machadiana! E lembrar daqueles olhinhos quando tu amamenta: é um misto de atenção e medo de perder o leite, mais uma sensação de prazer e carinho , é assim que nasce o amor!