quinta-feira, 31 de março de 2011

Uma escolha difícil

No início do século XX, duas importantes ideias foram colocadas em prática.
Ideias essas que mudariam as relações familiares para sempre.

Durante as décadas de 30 e 40, uma série de descobertas tecnológicas permitiram que imagens distantes fossem transmitidas em tempo real e visualizadas numa imensa caixa preta. Era o início da era televisiva que aproximou povos e culturas diferentes, mas (para muitos) afastou membros da mesma família.

Também por volta dessa época, estabelecimentos para o cuidado de crianças estavam sendo formalmente criados pelos governos de alguns países industrializados. E o que começou como lugares (provavelmente tão insalubres quanto as próprias fábricas que os proviam) para manter os filhos das necessárias operárias durante a efervescência da indústria e a Segunda Guerra Mundial, acabou se institucionalizando e recebendo o status de educacional e pedagógico.

Hoje, as creches se tornaram parte normal na vida de uma família moderna cujos pais precisam voltar a trabalhar, mesmo com a recente chegada de um novo e indefeso indivíduo. Na verdade, alguns especialistas na área da educação e da psicologia chegam a afirmar que elas são uma fase fundamental no desenvolvimento da criança que ali aprendem a dividir, a ter estrutura e a socializar com seus pares. Afinal de contas, nas creches só há profissionais treinados em lidar com nossos adoráveis monstrinhos!

Ironicamente, a Inglaterra (talvez um dos primeiros países a criar e estabelecer essa instituição) oferece vários benefícios em dinheiro para as mães cuidarem de seus rebentos até eles completarem 16 anos de idade! Não é muito (o child benefit paga cerca de 20 libras por semana, por filho), mas já é um começo e poderia ser visto como um incentivo para mantê-las mais tempo em casa. E se isso ainda não é suficiente, um extensivo estudo realizado em 2005, no sistema de saúde britânico, concluiu que as crianças cuidadas por suas mães ou pais (não pelos avós, tios, babás ou professorinhas) nos primeiros três anos de vida são emocionalmente melhores desenvolvidas que as demais que acabam, sim, sendo negligenciadas numa creche. De acordo com a pesquisa, sem o contato físico dos progenitores, as crianças que passam a infância (algumas delas das 9h às 15h, cinco dias por semana) nessas instituições repletas de brincadeiras e atividades pedagógicas acabam se transformando em pequenos seres antissociais!

Infelizmente, a grande maioria das mães não tem o luxo de poder ficar com seus filhos e precisam retornar o mais rápido possível ao trabalho. Por outro lado, largar o emprego e sacrificar alguns anos em prol do desenvolvimento emocional do filho pode deixar sequelas profundas na mulher. Sim, porque antes de virar mães, passamos toda uma existência formando nossas personalidades e lutando como pessoas do sexo feminino contra as injustiças de gênero (no meu caso, foram 34 anos). E não é fácil colocar todo o resto do que éramos antes da maternidade em pausa para sermos simplesmente mães por três longos anos, principalmente quando não se conta com a ajuda dos avós, tios e até do marido ocupadíssimo para criar um filho.

No último ano, tenho passado por momentos cada vez mais frequentes de melancolia e culpa, por não conseguir mais doar tanto tempo da minha vida unicamente para minha filha sem ficar com raiva. Ainda faltam outros 18 meses até ela chegar na idade "correta" para frequentar uma escolinha, mas às vezes penso em recorrer aos profissionais da pedagogia infantil e deixá-la meio-turno numa creche. Mas sempre que tento recordar meus tempos de maternal (e segundo a minha mãe, eu já chegava lá chorando), não me lembro de nada significativamente bom, de ninguém em especial. Na verdade, só me lembro de três traumatizantes incidentes em que rolei abaixo um lance de escada, vomitei com o cheio nauseante de tinta numa aula de artes e no dia em que meu nariz sangrou ao descer no escorregador da instituição. E em todos eles, eu estava sozinha, me sentindo sozinha, sem meus pais por perto e sem a menor ideia de quem me socorreu.

No entanto, eu me lembro vividamente das horas lúdicas assistindo ao Sítio do Picapau Amarelo (e morrendo de medo da Cuca e do Saci Pererê), à novela Chispita, ao Chavez e Chapolin, ao Balão Mágico, além de uma série de desenhos animados no programa da Xuxa. Não sei se passei tempo demais na frente da TV e sofri alguma lavagem cerebral das empresas multinacionais que anunciavam nos intervalos comerciais. Acho que não. Só tive uma boneca Barbie e absolutamente nunca me vesti como a Rainha dos Baixinhos, mas hoje ganho dinheiro trabalhando na tradução e revisão de filmes e séries de TV!!!
Então, por que condenar o meio e seu conteúdo irrestritamente?

Para mim, a boa, velha e tão impopular TV continua sendo a melhor invenção do século XX para distrair a minha filha enquanto tomo conta dos outros afazeres domésticos, principalmente a programação infantil da respeitável televisão pública do Reino Unido, a BBC. Assim, nas manhãs de segunda a sexta-feira, deixo que a minha Pequena assista não a uma loira-modelo-e-manequim com roupas sensuais e desenhos que giram em torno do Bem contra o Mal, mas sim a vários apresentadores de diversas etnias e corpos imperfeitos (um deles inclusive é deficiente físico), com animações cuidadosamente produzidas para estimular as crianças e passar um tipo distinto de moral: o que explica que há outros povos e culturas no mundo, que não devemos maltratar os animais e que a diferença é extremamente saudável.

Essas três horas matinais diante do aparelho de televisão não significam que arranjei uma babá mais barata para cuidar e educar minha filha (já que, neste país, todos pagam uma licença anual para ver os canais de TV abertos). Quando o tempo permite, saímos para ir ao parque onde ela aprende a dividir os brinquedos, a esperar pela sua vez no escorregador e a socializar com outras crianças de cores e idiomas diferentes do dela. Além disso, a minha menina também tem aulas de música nos sábados, mas acompanhada dos pais e de outras famílias igualmente preocupadas em entregar seus filhos para o mundo de maneira gradual e assistida.

Que me perdoem os críticos dessa maravilha (muitas vezes maquiavelicamente utilizada), mas o melhor ajudante desta Homo Maternalis tem sido o programa infantil Cbeebies. Até para conseguir cortar as unhas da minha irrequieta filha.
  

terça-feira, 15 de março de 2011

Uma Produção B&J

Em 1972, o então desconhecido e pouco experiente diretor Geoge Lucas travava uma luta contra toda a indústria cinematográfica de Hollywood para escrever, produzir e lançar um despretensioso filme sobre sua adolescência durante o final dos anos 50, numa pequena cidade da Califórnia. Filmado com um orçamento baixíssimo e um roteiro extremamente incomum para a época, American Graffiti foi um sucesso de bilheteria, arrecadando cerca de US$ 100 milhões e tirando o jovem cineasta do anonimato.

Isso pode ser visto e ouvido diretamento do diretor, no DVD que marca o aniversário de quase 40 anos da película. Mas não foi a história bem-sucedida deste garoto de Modesto que chamou minha atenção, e sim uma de suas últimas observações feitas durante o comentário do filme sobre algumas das gratas surpresas que se consegue ao se lançar numa empreitada dessas. E não consegui evitar a analogia com minha situação atual.

Neste 7 de março, fez um ano que nossa pequena família de três desembarcou nesta ilha já tão cheia de imigrantes (segundo as estatísticas oficiais, eles são um em cada cinco residentes legais da Inglaterra), não em busca de uma vida melhor, mas de uma vida mais tranquila, longe principalmente dos parentes do marido. E mesmo sendo ambos experientes em viver no exterior, criar sozinhos um bebê de apenas quatro meses (afastados de qualquer rosto amigo, fora da terra natal e sem o conforto da língua materna) tem sido a decisão mais difícil que já tomamos.

E uma luta constante, travada sem a ajuda da família (a minha, é claro), sem os conselhos dos amigos numa posição semelhante e sem a simpatia da população local xenófoba. Aqui, também, os recursos humanos e financeiros são limitados, não há tempo para ensaios e não conseguimos seguir o roteiro original, porque nossa filha desde cedo mostrou sinais de ter personalidade própria e de querer atuar seu papel como lhe dá na veneta.

Por isso, vamos improvisando à medida que as coisas inesperadas da vida vão surgindo a cada passo que damos no árduo caminho da mater/paternidade. Não é fácil e quando finalmente temos uma fase atrás de nós, uma nova, mais barulhenta e emporcalhada aparece no horizonte. E sou um exemplo clássico (sempre dando dores de cabeça aos meus pais) de que elas são quase sem fim como a tal linha que separa o céu da terra...

Mas há as gratas surpresas que fazem cada noite mal-dormida, cada choro de birra, cada crise de pirraça da nossa B&J Produção valer muito a pena: nos momentos em que ela entende e reage (na maioria das vezes, contrariamente) ao que falamos; quando nos acorda nas manhãs das noites mal-dormidas, ainda sonolenta mas cheia de carinho para oferecer; e principalmente quando demanda meu colo para sentar e poder lamber a ponta do meu nariz ou beliscar minhas bochechas.

No entanto, ela é certamente digna de um Oscar pela melhor e mais inusitada performance na hora das refeições. Não acredito que haja muitas crianças que comem, desde os 9 meses de idade, espinafre com ricota, risotto de cogumelo, pasta al pesto e várias iguarias apimentadas da Índia.

Eu não preciso esperar 40 anos para dizer que a minha filha já é meu maior orgulho e que ela nos tirou não do anonimato, mas de uma existência quase medíocre. E, apesar de não carregar meu sobrenome, ela é verdadeira e legitimamente uma produção sikh-brasileira independente, de baixo orçamento e sem nenhuma experiência.

sexta-feira, 4 de março de 2011

A Desperate Housewife

Andei desaparecida nas últimas semanas porque meu dia estava tendo mais do que 24 horas. Para os outros.

Além de mãe-e-dona-de-casa (a função de esposa passou a ser exercida uma única vez a cada sete dias, quando meu corpo está exausto e quase inerte na cama e minha mente não tem mais energia para inventar desculpas), tenho trabalhado cansavelmente como tradutora e revisora de filmes e séries de TV das 9 às 5. Mas das 9 da noite às 5 da manhã, quando minha filha finalmente me dá uma trégua para ser a profissional que eu costumava ser antes de ela surgir no meu mundo.

E por falar na gravidez, foi também por essa época a última vez que devo ter conseguido dormir por longas 8, 9, 10 horas, sem interrupção, choro de fome ou vontade de ir ao banheiro. Trinta e nove semanas e dezesseis meses depois (mas ainda com muito do peso ganho durante a gestação), minha vida está de pernas (gordas) para o ar.

Não sei se tenho o direito de reclamar. Sou duplamente afortunada porque tenho um marido que pode sustentar a família para que eu possa ficar em casa e cuidar de nossa filha e tenho um trabalho como freelancer que me dá muito prazer (às vezes mais do que o de esposa) e as condições de exercê-lo de casa para que eu possa cuidar da nossa filha. Só não tenho o tempo para fazer as duas coisas bem.

Passo as horas claras do dia limpando, cozinhando, aspirando, lavando, alimentando, dando banho, trocando fraldas, tirando cochilos depois do almoço e tentando não perder a paciência, a esportiva e a razão e gritar com os dois únicos membros da minha família neste continente. Já nas horas sem sol, fico sentada diante do meu computador tentando me concentrar no episódio à minha frente e procurando esquecer a culpa por não ter levado minha menina ao parque no primeiro dia sem chuva em semanas.

E o clima neste reino frio, cinzento, depressivo e cheio de bolor é realmente digno das tragédias de Shakespeare. Não sei se é pior tentar ser mais forte que a Natureza e desbravar os espaços abertos e melancólicos desta terra ou testemunhar a vitória final Dela sobre o Homem e ver colônias inteiras de fungos filamentosos se alastrando pelos espaços úmidos, quentes e internos da casa.

Melhor mergulhar nas obras de ficção que sou paga para assistir e traduzir e escapar um pouco da realidade. O problema é que elas têm se parecido tanto com a minha! Talvez eu esteja apenas trabalhando demais. Ou me identificando excessivamente com a personagem de Felicity Huffman (Lynette Scavo) em Desperate Housewives que, na temporada 7, aparece com mais um bebê para cuidar. (Quem consegue manter aquele corpo ou a sanidade ou tomar banho diariamente depois de cinco filhos?) Ou talvez eu ainda esteja muito impressionada com algumas falas de Tina Fey no filme Date Night (traduzido como Uma Noite Fora de Série), mas o fato é que na maior parte do tempo que dedico à minha família, tenho uma vontade (crescente e quase irresistível) de largar o que estou fazendo e sair correndo porta afora. E só voltar depois de uma semana...

Não sei quantas temporadas eu vou aguentar nesse papel de mãe-dona-de-casa-e-ocasionalmente-esposa desesperada e em extrema necessidade de tempo para si própria. Não para me empanturrar com risotto de cogumelos nem para ficar num quarto escuro de hotel, tomando um refrigerante dietético. Mas simplesmente para dormir umas 12 horas sem interrupção alguma. E colocar o banho em dia.