terça-feira, 19 de abril de 2011

Uma flor no deserto

Tem se tornado cada vez mais difícil passear pelas ruas dessa imensa ilha sem se notar a diferença na fisionomia dos "residentes" mais recentes, sem se ouvir uma língua distinta da inglesa nos parques e supermercados de qualquer cidade pequena, sem se avistar alguém vestindo um traje da Índia, do mundo árabe ou de um colorido país africano.

Então vemos discursos de integração dos governos conservadores, espalhados pelos noticiários da TV e nas capas de jornais, perguntando por que essas pessoas não tentam se encaixar e fazer parte da paisagem em que vivem; por que não guardam as roupas típicas para alguma ocasião especial ou algum tipo de festival folclórico; por que não tentam aprendar o idioma local para poderem se misturar à população nativa? Não acredito que muitos deles estariam aqui, em primeiro lugar, se não fossem por mais discursos desses mesmos governantes sobre outras liberdades...

E é, nessas horas, que lembro como foram meus quatro anos na Índia. Como me senti violentada quando meu corpo foi abusado, diversas vezes, nas vias e nos meios de transporte público de Bangalore, porque não estava suficientemente coberto segundo os padrões indianos. Lembro como a língua oficial de Karnataka (kannada - uma das mais antigas e mais importantes da família das dravídicas) soava grotesca e repulsiva aos meus ouvidos brasileiros e como, com muita relutância, aprendi alguns vocábulos para poder me comunicar com os motoristas de rickshaw. Lembro (e sinto), vividamente, a cólera que corre nas minhas veias sempre que estamos na casa dos meus sogros ou de algum familiar do meu marido, e sou compelida a me transformar, a me vestir, a comer, a falar, a agir, a ser outra pessoa. Não importa se o teatro é só por duas semanas de férias ou duas horas no Skype. É uma violência contra o meu direito de simplesmente ser.

Não é muito diferente do que a Política de Estado do partido nacional-socialista fez na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Não é muito diferente do que os parlamentares franceses fizeram, em 2010, a respeito do uso da burca em público, em nome da igualdade entre os sexos e da liberdade contra a opressão feminina.

Em nome de muitas outras coisas já lutaram os países tecnologicamente superiores do oeste capitalista, cristão, democrático e sempre em busca das riquezas naturais do resto do mundo, mergulhado numa governança tirânica, numa ditadura totalitária, numa religião injusta. Mas os filhos de Judá perseguidos na década de 30 e 40 são os muçulmanos de hoje que, inoportunamente, ocupam terras encharcadas de petróleo e agora destruídas por tantas cruzadas e guerras santas. Por que se recusam a ser como nós, civilizados e instruídos?


Entretanto, no meio do Planalto Iraniano, perdida entre a milenar e cultural Peshawar da Rota da Seda e a atual Peshawar de religiosos extremistas, há uma flor com um sorriso radiante cuja beleza excepcional é cantada, em pashto, por Yasir Rehman: um muçulmano paquistanês que prova como o diferente e o desconhecido podem mexer com a sensibilidade de qualquer um, ainda que incompreensíveis (ou com uma tradução estranha). Porque nossa igualdade como espécie reside nos sentimentos, não apenas nos pensamentos.

Podemos sentir a mesma gama de emoções, mas temos o direito de pensar diferente, de sermos flores únicas no deserto, se assim o quisermos.




terça-feira, 5 de abril de 2011

A bolacha nossa de cada dia...

Eu sabia que, mais cedo mais tarde, isto iria acontecer.
No dia em que a minha filha (que rejeitou todo tipo de papinha insossa que eu havia feito na época do desmame) provou e gostou do nhoque de batata recheado com queijo e coberto com molho de tomate e manjericão que eu e o pai dela comíamos, eu soube que esse momento chegaria. O momento quase bíblico em que os pecados da gula e da ira fariam o nosso pequeno apartamento em Buckinghamshire tremer.

Foi num início de noite fatídico, por volta das 6 horas, quando as duas estavam esperando o chefe da casa chegar para podermos jantar juntos. A minha menina (bem esperta para os seus 16 meses de idade) se prostou na frente do armário (onde ela já sabe que as guloseimas ficam guardadas longe do seu alcance) e começou a grunhir para chamar minha atenção e a apontar para a prateleira mais alta. Eu imediatamente entendi que ela queria uma das bolachinhas amanteigadas com cobertura de chocolate belga que os pais sempre saboream nas tarde de domingo.

Mas só havia uma no pacote...

Cheia de relutância mas persuadida por suas chorosas súplicas, acabei entregando-lhe aquele redondo e delicioso pedaço do Paraíso, grande demais para sua mãozinha mas na medida exata para fazê-la abrir um emorme sorriso de poucos dentes e muita felicidade.

Mas a alegria durou pouco...

A tentação foi mais forte. Num golpe certeiro, quebrei a bolacha e rapidamente abocanhei o que pude. Houve um momento de silêncio só interrompido pelo meu mastigar convulsivo. E a pobrezinha parecia em estado de choque, sem entender o que havia acontecido, olhando ora para mim ora para o que havia sobrado em sua mão minúscula e delicada. Foi então que sua ira se fez ouvir e uma onda de culpa tomou conta do meu corpo. Não por ter tirado doce da minha própria criança (o que é realmente fácil), mas por ter introduzido, muito cedo na vida da minha filha, uma gama de alimentos refinados e saborosos.

Eu que já havia passado a adolescência escondendo comida dos meus irmãos, agora também terei que esconder essas iguarias (e comê-las sozinha durante as horas de cochilo da minha menina) por mais alguns anos, até perder o resto do meu guarda-roupa tamanho 42 ou achar um pingo de vergonha na cara pelos meus pecados da gula. Só não posso culpá-la por já ter desenvolvido, em menos de um ano e meio de existência, um paladar tão pouco infantil, pois ela foi concebida depois de um festim gastronômico no dia 13 de fevereiro de 2009.

Algumas horas antes de São Valentim (que celebra a união entre namorados, em certos países do mundo), eu e o futuro pai da minha filha nos banqueteávamos num restaurante italiano em Bangalore, com uma refeição de três pratos e uma garrafa de vinho tinto cada um. Trinta e nove semanas mais tarde, nasce o fruto de muito amor, comilança e bebedeira. E um fruto que não caiu longe da árvore. Desde seus nove meses, ela tem comido quase tudo que colocamos à sua frente e não duvido que comeria até mosquito, se estivesse bem temperado e diante de seus imensos e gulosos olhos castanhos...

Por isso, enquanto ela não sai desta recente e inusitada fase de só querer tomar leite (provavelmente ainda traumatizada pelo criminoso evento da bolachinha), minhas preces têm pedido ao Pai Nosso que está no Céu, mais pão para o nosso dia, mais ciabatas de azeitona, mais risottos de cogumelo, mais pastelões de espinafre e ricota e, claro, mais pacotes de bolacha belga. E que, por favor, perdoe todas minhas ofensas da gula cometidas contra minha própria filha e que me ajude muito a não mais cair em tentação.
Amém.