sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

O Inocente

Um casamento às pressas, um bebê de quem todos querem tirar um pedaço, um par de sogros desvairadamente religiosos e conservadores, uma familía adjacente intrometida e opinadora e dez meses longe do Sub-continente indiano quase me fizeram esquecer a principal razão de eu ter vivido quatro longuíssimos anos neste país: a minha paixão irracional (e provavelmente cármica) pela sua singular, pungente e dolorosa comida vegetariana.


Mas bastou eu ter à minha frente a bandeja da Air India (contendo aquela refeição quentinha e perfumada com as ainda misteriosas especiarias indianas, embrulhada sem muito capricho num papel de alumínio e recheada com os ingredientes mais simples e saborosos do reino vegetal), para um sinal neurológico ser disparado e colocar todos os órgãos do sistema digestivo em prontidão. Era puro reflexo de um estômago já condicionado aos prazeres do paladar, vislumbrando os portais desse Paraíso da Ásia Meridional, a apenas uma garfada de distância.

Assim que meus olhos reconheceram o conteúdo da vianda - palak paneer (espinafre e queijo cottage) num canto, sabzi (vegetais) no outro e um bocado do fumegante arroz basmati ao centro –, o coração disparou, a boca começou a salivar e os movimentos peristálticos de contração e relaxamento musculares se iniciaram.

E o resto são detalhes íntimos de uma relação que poucos brasileiros comedores-de-carne entenderiam. Catorze entediantes anos como vegetariana no Brasil foram recompensados com outros tantos de muita emoção na Índia: foram semanas de intenso prazer e dias da mais torturante crise de diarréia.

E é aqui que entra em cena o terceiro adjetivo para a comida indiana (aquele responsável pela dor), porque o Paraíso é, de fato, um conceito utópico e minha estada neste lugar “acima da superfície terrestre, onde se vive harmonicamente e sem conflitos” sempre foi muito breve neste país.

Eu sabia (sentada satisfeitíssima no meu assento do voo AI-116 de Londres a Nova Déli) que a queda até o Purgatório era uma questão de tempo. Aquelas exóticas especiarias que entraram tão cheias de sabor e pungência pela boca, deixariam meu organismo da mesma forma e logo o único inocente em todo o processo digestivo teria que expiar, sozinho, o pecado da gula cometido por outras partes do corpo.

Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, sentada ou acocorada num banheiro da Índia (escuro e em condições precárias de higiene), meu pobre e inocente orifício excretor pagaria pela purificação da carne.

Sabia que, durante tal processo doloroso, acabaria prometendo moderação...
Até, novamente, vislumbrar os portais do Paraíso asiático e esquecer todas as provações passadas pelo Inocente.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Home, bitter home

Sete horas da manhã e eu já estava acordada de uma noite mal-dormida, por causa da minha filha ligeiramente gripada na noite anterior. O corpo ainda pedia descanso, mas não havia tempo a ser encontrado para reclamações.

Malas prontas e deixamos nossa cidade três horas mais tarde, rumo à capital do Rio Grande do Sul. Cento e vinte minutos na estrada e chegamos ao aeroporto internacional de Porto Alegre para enfrentar outros 45 na fila do check-in. Ainda faltavam 7200 segundos para esperar até que nosso voo para São Paulo decolasse do solo gaúcho.

Ainda bem que a minha menina dormiu no avião.

Em Guarulhos, ela também se comportou maravilhosamente bem, das 17h às 23h25! Mamava direitinho, mas fazia cocô além do normal. Acho que sentia o nervoso da mãe por cruzar o Oceano Atlântico em 3 voos sozinha, com uma menina de colo, um laptop e uma sacola não-tão-de-mão assim.

Não consegui um carrinho de bebê da companhia aérea, mas fiquei extremamente feliz por conseguir um lugar para sentar perto do fraldário. Era ali (num espaço em torno de 3mx1m) que nós duas, com toda a nossa bagagem, nos aliviávamos. Eu, numa privada minúscula para crianças. O difícil mesmo foi passar aquelas seis horas e meia, sentir os ponteiros se arrastando lentamente pelo relógio sem ter muito o que fazer. Pelo menos, a minha menina se divertiu com os vários outros passageiros que iam, vinham e se sentavam ao nosso lado.

No avião, ela pegou no sono sem muito drama. Inicialmente e até o aviso de apertar os cintos ser desligado, no meu colo; depois, no berço montado para ela, na minha frente. E, apesar de sentar na primeira fila da classe econômica e poder esticar um pouco mais as pernas, eu não conseguia encontrar uma posição confortável para dormir. Foram doze longas horas virando de um lado para o outro, me afundando e me ajeitando no assento, contando carneirinhos, meditando, tentando ignorar o barulho nas áreas de turbulência e o ronco dos demais passageiros... até que as luzes foram acesas e o café da manhã foi servido. Já estávamos em algum ponto da Europa, perto da Alemanha e mais perto do Reino Unido.

Mas antes, tivemos que passar pelo terceiro security control: abrir malas, deixar o laptop à mão, esvaziar os bolsos, tirar o relógio, o cinto e até os sapatos, para logo a seguir colocar tudo no lugar, exausta e sozinha com uma criança de colo.

Felizmente, em Frankfurt, a espera pelo próximo voo era de apenas quatro horas. E, pelo menos, a minha menina estava descansada, de bom humor e atraindo a atenção de muita gente, inclusive de conterrâneos a caminho de algum lugar do mundo. Foi só isso o que me salvou, o que me manteve acordada e alerta por aqueles 240 minutos: contar minha longa história para uma búlgara que vivia há duas décadas no Brasil e que viaja pela Europa, de férias, com a filha brasileira.

Esqueci do tempo, esqueci da fome, esqueci do banheiro e quase esqueci do nosso voo. A meia hora de partirmos, me dei conta dele e saí correndo pelos corredores do maior aeroporto da Alemanha à procura do portão 25A para nosso embarque imediato e preferencial! Sim, pelo menos em Frankfurt, uma mãe sozinha e com uma criança de colo ainda tem prioridade na fila.

E, mais uma vez, a minha menina adormeceu no avião.

Só mais 70 minutos e estaríamos aterrissando na Inglaterra... E foi com esse pensamento, carregado de otimismo e alívio, que pedi um copinho de plástico de rot Wein ao comissário de bordo. Estava tão cansada que não precisei de mais de alguns goles para sentir o corpo amolecendo e a cabeça girando. Ou isso ou foi realmente um sonho o fato de eu ter ouvido o mesmo comissário de bordo dizer “obrigado”, ao receber de volta o mesmo copinho de plástico (agora vazio) de rot Wein, e me contar que era um dançarino brasileiro profissional com cidadania alemã fazendo bico na Lufthansa! Deve ter sido um sonho...

Pelo menos, estávamos acordando em Londres. O pesadelo parecia estar prestes a acabar, depois que o funcionário da Imigração carimbou nossos passaportes e não pediu que eu fosse à sala reservada para o Departamento de Saúde e apresentasse um teste negativo para a tuberculose. Só não tive muita ajuda dos cavalheiros ingleses na hora de levantar minha mala da esteira e colocá-la no carrinho. Mas mostrei para eles a força da mulher brasileira e fui empurrando as bagagens em direção à Exit com o coração batendo rápido e cheio de antecipação para rever... para rever... para rever... o ma-ri-do...

Where the f*** is he at? That piece of s***!!!

Foram outros 45 minutos no Heathrow, esperando pelo meu marido atrasado e perdido no terminal errado do aeroporto. Um autoproclamado viajante profissional! Só não há como proclamar e descrever as palavras que eu (suja, faminta, cansada e louca pra ir no banheiro) gritei para aquele homem que dizia sofrer tanto com nossa falta!!!

Pelo menos, estávamos a poucos quilômetros de casa.
Era apenas uma questão de minutos para abrir a porta e encontrar...
Uma bagunça e a porra da geladeira vazia!!!!

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Hora de fazer uma revisão

Todo final de dezembro é a mesma coisa.

Muita esperança para o ano que se aproxima e muitas, muitas promessas...

Apenas no Reino Unido, estimam-se que 28 milhões de pessoas tomaram alguma resolução para 2011. Perder peso, parar de fumar e diminuir a ingestão de álcool e chocolate estão entre as mais comuns. Ainda mais comum é esquecê-las em menos de 72 horas, ou seja, em algum momento do dia dois ou três de janeiro.

Quanto a mim, de volta à terra dos bretões e a tempo do Réveillon inglês, resolvi aderir a essa tradição ocidental à minha maneira e, ao invés de uma lista de atitudes positivas a serem tomadas no ano novo, fiz outra com os problemas que trago de anos anteriores.

Tenho 35 anos, 5 meses, 1 semana, 5 dias e muita quilometragem.
A carroceria do meu modelo 75 já está bem comprometida e, regularmente, preciso retocar as raízes brancas do meu cabelo e checar o grau da minha miopia, além da mais recente necessidade de fazer um tratamento de pele a laser para remover as manchas mais profundas do rosto.

O sistema de suspensão também está em péssimas condições e, devido a vários anos de bruxismo não identificado e não tratado, o desgaste fisiológico dos meus dentes tornou meus caninos retos! Algo parecido com pneus carecas na mastigação.

Igualmente prejudicial ao funcionamento da minha máquina é o vazamento do qual sofro desde a gravidez e a diminuição na capacidade de reter líquidos por muito tempo.

Mas o que mais tem causado problemas no desempenho deste modelo já fora de garantia (uma vez adquirida por terceiros, é política da família não trocar a mercadoria) é o sistema de gerenciamento eletrônico, responsável pelo controle central de todo o conjunto.

A poucas horas de deixar o Velho Continente e de embarcar numa visita de duas semanas ao Velhíssimo Sub-continente, os dispositivos centrais e componentes perfiféricos estão falhando, estou com uma gripe há mais de cinco dias e na iminência de um curto-circuito emocional. Agora que carrego um reboque de um ano e dois meses, ficou difícil trafegar por estradas poluídas, empoeiradas e cheias de primos, tios, sobrinhos, mais primos, cunhados, outros primos, avós e os pais do meu marido...

Não tenho muito conhecimento sobre mecânica de automóveis; não tenho uma carteira de habilitação, nem sei como dirigir, mas tenho uma certeza e uma única resolução para o ano novo: se o meu velho (e não mais fabricado) modelo 1975 não passar por uma excelente revisão em 2011, vai se tornar um perigo nas ruas de Déli ou de qualquer outra parte do mundo.

Era uma casa muito engraçada...

Nós nos mudamos.
Deixamos o maior vilarejo da Inglaterra (Kidlington, no condado de Oxfordshire), para morarmos mais próximos de Londres, de indianos e do novo escritório do meu marido, em High Wycombe, no condado de Buckinghamshire. A localidade soa quase nobre, mas a similaridade com a residência da família real britânica termina no nome.

Saímos de um lugar amplo de dois andares, com suíte e banheiro social, cozinha americana, jardim e nossa própria árvore na frente da casa, para um apartamento de dois quartos no térreo, com uma cozinha sem veneziana e de frente para a entrada dos outros condomínios.

Tínhamos luz solar e espaço de sobra e podíamos estender nossas roupas no quintal, nos dias sem chuva. Agora, ainda que tenhamos a luz do sol o dia inteiro (o que se resumem a poucas horas no inverno), preferimos manter nossa privacidade e as cortinas fechadas aos olhares estranhos.

Lá tudo era novinho em folha e funcionava, e não havia animais domésticos indesejáveis, como ratos e baratas. Aqui, a mobília deixada pela proprietária até que é decente, mas o carpete é tão velho e azul que me pego evitando olhar para o chão, para não enjoar da cor. Além disso, já conseguimos encontrar insetos neste frio europeu.

Em Kidlington, apesar de termos escolhas limitadas de lazer, a administração local se procupava com o meio ambiente e recolhia uma de nossas três diferentes latas de lixo em semanas alternadas. Em High Wycombe, há muita área para as crianças e, surpreendentemente, um museu, mas vivemos na idade das trevas quando o assunto é coleta seletiva de lixo: papel, plástico, restos de comida e até fraldas sujas vão parar no mesmo saco preto para ser incinerado pelo município.

Mas o pior de tudo é, sem dúvida, o aquecimento de nosso novo lar. Sabíamos que tudo era movido à eletricidade, mas só agora percebemos que, por alguma estranha razão ainda desconhecida por nossa pouca experiência no lugar, dois adultos e uma criança não podem tomar um banho quente no mesmo dia. E a situação fica ainda mais dramática quando temos roupas para lavar.

Nessas horas, é do poeta Vinicius de Moraes de quem me lembro...

“Mas era feita com muito esmero
Na rua dos Bobos número zero.”