sábado, 25 de fevereiro de 2012

Nem princesa nem loba

Era uma vez, num reino criado pela escritora inglesa Babette Cole, uma princesa fora dos padrões fabulosos: ela mantinha criaturas gigantes e asquerosas como animais de estimação, não queria se casar de forma alguma e desafiava os pretendentes à sua mão com maratonas pouco comuns.

Uma estória perfeita para feministas de qualquer idade ou país, mas longe de ter um final feliz para as mães das meninas que decidem seguir as façanhas inconsequentes da Princesa Smartypants e quebrar todas as regras. Especialmente num Reino de verdade, cujos membros da realeza e seus súditos se orgulham de seguir tradições centenárias e outras boas maneiras adquiridas mais recentemente.

Confesso que tenho uma opinião, parcialmente, semelhante à da autora infatil e sempre tive muita aversão a rótulos. Tanto que nunca dei uma boneca para minha filha, nem me preocupei com o fato de ela jogar bola ou brincar com trens, aviões e carrinhos. E também não ficaria sem dormir se ela permanecesse solteira por toda a sua vida. No entanto, Miss Cole, há certas regras (como as de cortesia) que não podem ser quebradas de maneira alguma, nem por personalidades régias nem plebleias (muito menos por beldades endinheiradas!), com o risco de afetar o relacionamento entre as pessoas de modo irremediável.

Mesmo com dois anos e quase quatro meses, minha menina ainda engatinha na demonstração pública de boas-maneiras e isso já começa a me causar preocupação e constrangimento.

E a culpa é inteiramente minha. Não apenas sou um terrível exemplo a ser copiado dentro de casa (pois já perdi todo o recato em relação aos chamados e assobios da Natureza, inclusive na frente do marido), como também não tenho oferecido muitas oportunidades a ela para copiar as crianças bem-comportadas e treinadas (uma vez que nunca frequentou creches ou berçários).

Além disso, como é a Choti Maharani - Pequena Rainha - nos lados materno e paterno da família, minha filha recebe atenção integral, amor não-dividido e tudo o mais que puder ser conseguido à base de choro, grito e pirraça. Por isso, até agora não precisou aprender a dizer 'por favor' e 'obrigada', nem a formar fila e esperar pela vez. Não sabe o que é rotina, não consegue ficar sentada por muito tempo nem à mesa e só obedece à mãe na marra...

É... Eu sei... A culpa continua sendo só minha e, para me redimir um pouco dela, já coloquei minha filha em aulas rigorosamente estruturadas de dança, artes e natação, além de fazê-la participar e ouvir Stories & Rhymes for the Under 5s comportadamente, por meia hora, na biblioteca central de Watford (sem tentar arrancar o livro das mãos da bibliotecária e me encher de vergonha na frente das outras mães) e deixá-la resolver seus pequenos conflitos nos playgrounds da cidade sozinha. 

E tenho esperança de que ainda haja tempo para moldar esse serzinho selvagem e cheio de personalidade e conduzir minha menina loba de volta à civilização, antes que ela encontre algum urso Balu pelo caminho ou se transforme, de vez, numa choti Smartypants.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

We need to talk about Eva

Não planejei nem consegui curtir minha gravidez com plenitude, pois estava numa corrida contra o tempo e contra os caprichos da minha sogra para me unir com o co-produtor do meu bebê e evitar o termo 'pai desconhecido' na sua certidão de nascimento. Mas, assim que minha filha nasceu, também floresceu um amor maternal por ela que foi aumentando junto com seus 49 centímetros.

No entanto, só isso não me qualifica como uma boa mãe. Na verdade, não chego nem a pontuar como mediana, porque não sigo nenhuma cartilha. Graças a filósofos da Antiguidade, pensadores franceses, poetas de todas as épocas e psicólogos modernos, além dos predicados instrínsecos já culturalmente atribuídos à figura materna (como abnegação pessoal e sacrifício extremado pela prole), outros deveres e responsabilidades foram sendo adicionados à lista da mãe ideal.

É do grego Pitágoras a frase: "Educa as crianças e não precisarás castigar os homens."

Para Vitor Hugo, "Os braços de uma mãe são feitos de ternura e os filhos dormem profundamente neles."

Vinicius de Moraes escreveu: "Repousa a luz amiga dos teus olhos / Nos meus olhos sem luz e sem repouso / Aninha-me em teu colo como outrora / Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas / Dorme em sossego, que tua mãe não dorme."

Segundo o inglês D.W. Winnicott (um dos discípulos de Freud), a mãe deve não apenas amamentar com tranquilidade, dar aconchego e carinho ao seu bebê, mas também é fundamental para a constituição do self da criança que ela a segure no colo e a carregue de maneira 'correta', para "dar-lhe a continuidade entre o inato, a realidade psíquica e um esquema corporal pessoal."

Minha Nossa Senhora! Se, para as mulheres que sempre sonharam com as formas arredondadas da gestação e com um 'embrulhinho' enrolado nos braços fica cada vez mais complicado de se ter um filho (à medida que novos estudos científicos em relação à maternidade são publicados), imaginem a cabeça daquelas que não possuem o "gene materno"; daquelas que não quiseram ser mães mas foram 'abençoadas' com uma criança indesejada que não conseguem amar!

Essa é a estória do filme We need to talk about Kevin (baseado no romance de mesmo nome de Lionel Shriver), que faz coro a muitas das teorias modernas da psicologia e simula o que de pior pode acontecer com um adolescente que não teve o amor materno.

Para mim, foram 112 dolorosos minutos de assistir, porque a atormentada personagem de Eva é veementemente condenada pelos habitantes da pequena cidade onde vive, por ter falhado no seu mais importante papel como um indivíduo do sexo feminino. E ela aceita a culpa com uma verdadeira resignação materna.

Meu sentimento para com essa mulher foi o da mais profunda simpatia, porque carregamos um fardo pesadíssimo e extremamente idealizado desde o momento que concebemos uma nova vida.

De acordo com os padrões inatingíveis da sociedade contemporânea, somos responsáveis por tudo o que envolve nossos filhos: por uma amamentação tranquila, uma relação amorosa e um saco de paciência sem-fim; por uma alimentação consciente, frutas e verduras orgânicas, ovos caipiras e alimentos não-modificados geneticamente; por suas boas maneiras à mesa e boas notas na escola; por suas roupas limpas, cabelos penteados e dentes escovados; pela linha pedagógica da escola, pelo conteúdo visto na TV e acessado na Internet e pela escolha de seus amigos... Enfim, somos culpadas e respondemos por todos os atos de nossas crianças, inclusive os criminosos.

É por isso que precisamos falar sobre esta e todas as demais Evas, igualmente falhas como sua homônima bíblica e expulsas do Paraíso por outro pecado original: o de não amarem o ser saído das próprias entranhas da maneira e com a intensidade que a cultura, a religião, a família e até o parceiro demandaram delas. 

Precisamos falar e mudar a imagem criada da mãe ideal, adicionando-a carne, osso e neuroses mal resolvidas, porque também nós somos o produto de outras mães e pais imperfeitos. E, antes que púdessemos resolver nossos defeitos de fábrica, muitas de nós se vêem na linha de montagem causando novos desajustes na geração seguinte. Desajustes esses que devem ter começado com a primeira mulher criada por Deus e que deu à luz a Caim (o primeiro homicida da Humanidade) e Abel.


Ah, tomara que se fale muito sobre Kevin e Eva, para que possamos ser capazes de tirar as figuras mitificadas de seus altares (inclusive a da criança pura e inocente) e discutir com mais honestidade sobre a maternidade e seus problemas reais no mundo atual.

Talvez então possamos ser melhores mães ou exercer o direito de não o ser se assim o desejarmos. Sem culpa nem execração pública. 



terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Je travaille, donc je suis?

Na metade do século XVII, René Descartes derrubou os alicerces dos sistemas filosóficos clássico e medieval, ao inserir a dúvida em todo o conhecimento humano até então acumulado e (naquela época) disseminado pela Igreja.

Para o pensador francês, as coisas não existiam simplesmente porque tinham de exisitir mas porque podiam ser provadas. E, ao relacionar a existência do próprio eu com seu apetite pelo conhecimento e sua capacidade de duvidar e pensar ("puisque je pense, j'existe" e "je pense, donc je suis"), Descartes acabou fundando as bases da filosofia moderna e da ciência contemporânea.

O que o francês não poderia imaginar é que sua teoria poderia ser desvirtuada, quatro séculos mais tarde, acidental e desintencionadamente por um não-pensador não-ocidental.

Há pouco mais de três semanas em nossa terceira cidade inglesa (desde março de 2010, tivemos três diferentes residências na Inglaterra), meu marido já começou a receber cartas na casa que alugamos e nos mudamos há apenas 11 dias! Comentei com ele minha surpresa e ouvi como resposta: "It's because I work".

Não sou graduada em filosofia e não conheço seus jargões com profundidade, mas passei a me questionar se a dedução lógica dessa não-longamente-pensada afirmação seria, de fato, um novo aforismo desta realidade não somente minha, mas da sociedade ultra-pós-moderna em que vivemos: "Trabalho, logo existo".

Possuo RG, CPF, passaporte e conta bancária (ou seja, posso provar minha existência), mas desde que decidi cuidar da minha filha em tempo integral cerca de dois anos e três meses atrás, tenho passado por aqueles momentos constrangedores de preencher o espaço em branco para a profissão em formulários e fichas cadastrais com o tão pouco lisonjeiro 'dona-de-casa'. Seria mais correto dizer 'mãe-esposa-e-dona-de-casa', mas não sei se o termo seria amplamente aceito. É fato que os afazeres domésticos e conjugais e a maternidade consomem todas as horas do meu dia e parte das noites, mas continuo a inexistir para o resto do mundo porque são atividades que não trazem retorno financeiro, ainda que consigamos economizar bastante ao não contratarmos cozinheiras, faxineiras e babás!

Também não seria nada fácil comprimir numa única linha que sou formada em jornalismo mas dispenso algumas horas por semana como autônoma para uma empresa de legendagem de filmes e séries de TV. Além disso, será que poderia ser considerado como uma profissão? Para mim, soa só como um trabalho...

E as dúvidas sobre minha existência permanecem, já que é um trabalho irregular e mal remunerado. Recebo apenas o suficiente para me dar um presente de vez em quando, com meu próprio e suado dinheirinho! Até os aposentados (já tão socialmente discriminados) têm melhor reputação que as donas-de-casa. Eles, pelo menos, trabalharam e geraram renda por uns 30 anos e a quantia que passaram a receber mensalmente (mesmo que pequena) ainda faz girar as engrenagens da economia.

Assim, após verificar 'as evidências reais e indubitáveis acerca do fenômeno', analisá-las e sintetizá-las, a minha conclusão é que o aforismo está parcialmente correto. A verdade nua e crua do século XXI é: "Trabalho e ganho o bastante para pagar as contas, logo existo. E recebo cartas".

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Descida ao Bhogavati

Na mitologia hindu, Bhogavati é a capital subterrânea dos Nagas: uma espécie de tribo maligna do submundo "mahabharatano" que persegue todas as demais criaturas.

Confesso que ainda não li o tal épico (pois o texto tem mais de 74 mil versos), mas sempre que vou para a Índia visitar a família do meu marido, sinto que estou entrando nas páginas desse epopeia do hinduísmo.

Ou nos mitos mais sinistros da Grécia Antiga...   

Embarco no avião rumo a Nova Déli na escuridão da madrugada paulistana como um corpo quase-morto esperando pelo barco de Caronte às margens do Aqueronte, segurando um óbolo de mais de mil libras a fim de pagar a minha viagem e a da minha filha.
É uma passagem só de ida para não ter perigo de regressar e perturbar os vivos que ficaram do outro lado do finger da aeronave.
Durante o voo, sou apenas intestinos e seus dolorosos subprodutos, temendo e tremendo com cada minuto e cada milha que me aproxima do destino final.

Chegamos na capital do subcontinente indiano também de madrugada e andamos pelas ruas desertas da metrópole, vislumbrando apenas as silhuetas de umas poucas almas cobertas de uma densa e fria neblina.

Nem meus sogros estavam acordados para nos receber nesse canto do mundo...

Era o prelúdio do meu mitema pessoal, da minha titanomaquia cármica, da herculana colisão cultural, da guerra titânica entre mim o resto dos membros da família do meu marido.

Por vinte dias, vago como um fantasma pelos três andares marmóreos da casa de Subhash Nagar, esperando que minha pequena Orfeu, com seus risos de alegria e de celebração à vida, me guie pela trilha escura para fora do roto submundo sikh; e na esperança que, ao contrário do poeta da mitologia grega, ela não olhe para mim até ver a luz do sol e me condene, para sempre, ao Bhogavati.