sábado, 17 de março de 2012

Os superpoderes de uma mãe

A mãe de Milo é como todas as outras mães: ela tem um cabelo comum, ela usa roupas comuns e ela possui um sorriso simpático. 

Com a exceção do fato de Milo ter certeza de que ela é dotada de um superpoder: a visão de raio-X. Pois, mesmo sem estar por perto, ela consegue "ver" o que Milo está fazendo e com o quê está brincando.
No entanto, ele quer uma prova definitiva para contar para sua amiga Lola e, no sábado, depois de voltar para casa do mercado, ele sobe as escadas, entra no quarto de sua mãe e se esconde dentro do armário. 
Milo espera e espera que ela diga, lá debaixo, para ele sair do seu esconderijo. 
Em vão. 
"Talvez minha mãe não consiga ver dentro de armários ou através de paredes", Milo pensa. Ele espera e espera mais... E nada. "Talvez ela não tenha nenhum superpoder", ele diz para Lola desapontado. "Ela é apenas uma mãe comum, como todas as outras".  
Mas quando os dois saíam para brincar no quintal, a mãe de Milo o surpreende dizendo para não esconder o pacote de salgadinhos debaixo do suéter. Feliz com o flagrante, ele divide sua descoberta com Lola cheio de excitação: "Não, minha mãe não tem visão de raio-X. Ela tem olhos atrás da cabeça!"
A mãe de Y também é como todas as outras mães: ela tem um cabelo comum (já com vários fios brancos e sempre preso num rabo-de-cavalo para ficar com mais cara de mãe), ela usa roupas comuns (cobertas com um avental desbotado e cheias de nódoas de comida nas mangas) e ela possui um sorriso simpático (ainda que, na maioria das vezes, ele esteja enterrado debaixo de camadas e camadas de cansaço).
E, provavelmente para Y, sua mãe também é dotada de algum superpoder, pois, mesmo sem estar por perto, ela consegue "ver" o que Y está fazendo e com o quê está brincando. 
Mas, diferente da estória da autora infantil Angela McAllister, a mãe de Y não tem visão de raio-X nem olhos atrás da cabeça. Ela tem um instinto agora-aguçado e extremamente bem desenvolvido, graças às inúmeras surpresas desagradáveis do passado.
A mãe de Y aprendeu da maneira mais repugnante possível que, se há silêncio na casa, há desordem em progresso. 
E, de onde estiver, ela interrompe a cessação do ruído e da arteirice da filha com sua voz superpoderosa e sua capacidade sobrenatural de antecipar acidentes:
- "Mocinha, nada de bagunça!"
E Y, surpreendida com o flagrante, vai correndo ao encontro de sua mãe, que a olha como todas as outras mães: com um cabelo comum (já com vários fios brancos e sempre preso num rabo-de-cavalo para ficar com mais cara de mãe), com roupas comuns (cobertas com um avental desbotado e cheias de nódoas de comida nas mangas) e com um sorriso agora mais do que simpático (porque tem a consciência de possuir o super-instinto de mãe).

quarta-feira, 14 de março de 2012

Genug ist genug!

A ideia foi inteiramente minha: colocar minha filha em aulas de natação antes mesmo que completasse 2 anos de idade, para que pudesse aprender a nadar desde cedo.
Nas primeiras doze semanas (ainda morando em High Wycombe), ela não parecia gostar muito de ficar de costas boiando com o apoio das mãos da mãe nem de bater os braços e as pernas como um cachorrinho, mas adorava as outras "brincadeiras" dentro d'água e já conseguia se segurar sozinha na beira da piscina. 
Então, vieram as intermináveis férias no Brasil e na Índia e, quando retomamos as aulas em Watford, duas semanas atrás, fiquei completamente desanimada com seu desempenho.
É certo que a turma atual é composta de crianças maiores e que o horário tem exigido energia de adulto para ela se manter acordada por tantas horas sem o habitual cochilo da tarde, mas minha pequena simplesmente não largou do pescoço do pai naqueles preciosos trinta minutos. Preciosos sem dúvida! Pagamos onze libras por meia hora de aula por semana! Tão preciosamente caras que acabei caindo na primeira armadilha da natação: a de fazer, mentalmente, as mesmas cobranças que eu tanto escutei na adolescência; a de esperar, inconscientemente, por resultados imediatos de uma menina que não nadava de maneira não-amadora há quase três meses; a de exigir, friamente, um retorno palpável e visível pelo nosso investimento financeiro.
Quanta crueldade com um serzinho de apenas dois anos e 4 meses! 
E, quando, finalmente, me dei conta - horrorizada - da pressão que já colocava nos diminutos ombros de minha filha, eu consegui relaxar os músculos da testa e sorrir para ela do banco que dividia com outros pais, tios e avós, cantarolando a estrofe de uma canção há muito esquecida do grupo alemão Die Fantastischen Vier: "Nein, nie wieder, niemals, niemehr"
Não posso repetir os erros da minha infância!!!
Foi quando pude, de fato, perceber um bebê no colo de sua mãe ao meu lado. Apesar da falta de cabelo, a menina não apresentava mais aquela aparência pouco-agradável dos recém-nascidos e tinha lindos olhos azuis e era tão pequenina e adorável que fiquei com uma vontade enorme, incomensurável de pedir para segurá-la... Só um pouquinho... Só para matar a saudade...
E quase acabei caindo na segunda armadilha da natação: a de querer, de forma inconsequente, ter outro filho; a de sonhar, impensadamente, com mais uma criança nos braços; a de imaginar, ingenuamente, que eu poderia passar por tudo isso de novo sem perder de vez a sanidade!
Não, dona Natureza, não me venha com outras artimanhas para perpetuar a espécie.
Pois vou gritar bem alto:
"Nein, nie wieder, niemals, niemehr. Ich sage nein. Genug ist genug!"

sábado, 3 de março de 2012

Never let 'that feeling' go

Por mais de um ano, aquele livro ficou "esquecido" na minha mesinha de cabeceira, fosse ela na Inglaterra, no Brasil, na Índia ou de volta ao Reino Unido.
Quer dizer, não tão esquecido e não logo no começo. Às vezes, eu o olhava de relance, às pressas, entre uma tarefa doméstica e outra, e ele sustentava meu olhar, ansioso, impaciente, esperando uma ação minha, uma reação ao seu chamado. E eu o respondi (no começo) e folhei suas primeiras páginas com avidez e voracidade. Mas, à medida que eu mergulhava fundo na estória de Kazuo Ishiguro, meu ritmo de leitura diminuía. 
Por medo.
Tem sido tão difícil, pra mim, encontrar obras que toquem minha essência e sussurrem para meu coração, que fiquei com medo de prosseguir rápido demais e me deparar com mais um período de vácuo literário. Então, usei ardilosamente da desculpa da falta de tempo e deixei que o tempo me fizesse esquecer do livro.
E do filme (de Mark Romanek) que também não tive coragem de assistir. Por outro tipo de medo. Por aquele temor de leitor purista que quer imaginar os personagens e os cenários sozinho; que quer percorrer os caminhos emocionais da trama de mãos dadas apenas com o autor, sem ser guiado pela interpretação de um terceiro sujeito.
Assim, mais de um ano se passou e eu já tinha me esquecido resignadamente dos dois (mesmo com o livro de volta à minha mesinha de cabeceira), até me deparar com seu título na programação da TV a cabo, algumas noites atrás... 
E, finalmente, atendi ao seu clamor, esqueci meus medos e me entreguei à estória, com minha filha sentada no meu colo, sem me dar sossego.
Mas não foi difícil me envolver com os três protagonistas e me emocionar com suas descobertas, perdas e reencontros amorosos, apesar da Pequena demandar minha atenção integral durante aqueles cem minutos de filme. Não foi difícil compartilhar da mesma urgência e do mesmo desejo por uma vida vivida com plenitude, ainda que haja outros planos traçados para nós.
Que esse sentimento jamais me abandone.

E toca a campainha

Uma vez por ano, no Hemisfério Norte, a Natureza recebe a tão esperada visita do senhor Inverno. E ele nunca chega sem aviso.

Pouco antes, bate à porta da matriarca atemporal seu acompanhante menos taciturno, o Outuno, que se ocupa com os preparativos da casa. Assim que ele se instala, o Sol passa a fazer sua caminhada diária pelos aposentos com um olhar oblíquo, tímido e sem muita força, como se quisesse evitar o acanhamento de qualquer uma das partes em relação à dança erótica que está prestes a ser encenada.

Primeiro são os adornos primaveril e veranil, presenteados por visitantes anteriores, a serem retirados de seus membros galhudos e troncosos.Depois, as árvores se despem de seus pesados trajes verdes e permanecem, apenas, com uma vestimenta mais leve e sensual, que pode variar entre as cores amarela, laranja e vermelha. 

Então, é o Sol que fica acanhado diante da nudez da Natureza e faz caminhadas cada vez mais curtas e distantes... Ele parece estar tão longe que ninguém mais é capaz de sentir o calor de sua presença. Ou de ver o brilho de sua luz! É quando os quartos da casa se enchem de breu e as árvores, protegidas pela escuridão, despojam de suas últimas folhas de inibição e esperam a chegada iminente de seu amante sorumbático completamente nuas e vulneráveis.

Por certo, o senhor Inverno pode não ser tão apaixonado como o Verão, mas ele é muito atencioso com sua senhora e adentra a morada da Natureza trazendo seu cobertor branco e macio, preparado para uma longa noite de amor... 

E os dois namorados se amam e se demoram preguiçosamente no leito, até o Sol voltar a aparecer na janela e seus pequenos rebentos anunciarem o momento da partida. É hora de se vestir e se arrumar para receber a prima Vera, que já está na soleira da porta, pronta para tocar a campainha.