quarta-feira, 18 de abril de 2012

Servants with benefits

Em 2011, telas de cinema do mundo inteiro apresentavam a estória de Dylan e Jamie (em Friends with benefits), dois amigos que tinham terminado um relacionamento recentemente e não queriam nenhum envolvimento emocional. Mas, como eles estavam solteiros e solitários e precisavam muito de sexo, decidiram levar sua amizade a um estágio mais íntimo e menos romântico, tirando, assim, o maior proveito possível de uma relação com afeto mas sem complicações.
É claro que elas (as tais das complicações) foram surgindo no progredir dessa situação, porque os sentimentos são energias independentes e quase nunca obedecem às racionalizações da cabeça.
Ou quase nunca.
Como explicar o aparente sucesso secular dos casamentos arranjados na Índia?
Eles são tão friamente planejados pelos pais dos noivos que há pouco espaço para o amor entrar na vida dos recém-casados. Mesmo assim, é uma tradição passada de geração para geração sem muita contestação ou debate, talvez porque seja fundamentada no alto grau de compatibilidade entre o futuro casal. Uma união só é abençoada (inclusive com o aval de astrólogos e sacerdotes brâmanes), se as partes envolvidas são da mesma religião, pertencem à mesma casta e falam a mesma língua.
Mas as afinidades tendem a terminar por aí. Mulheres com níveis cultural e educacional semelhantes aos dos homens não são desejáveis para serem desposadas e as solteiras com PhD têm muita dificuldade em mudar seu estado civil.
Por quê? Pela óbvia razão de que um QI alto numa mente feminina pode representar um risco real à harmonia do matrimônio e desestabilizar a 'ordem natural' do mundo criado, dominado e ditado pelo gênero masculino. 
Então, se não é o amor que une os noivos indianos e não vai haver muitas chances de se desenvolver uma amizade entre eles, como definir a relação de marido e mulher na Índia?
Com outra estória.
Uma que ainda não virou filme de Hollywood, mas que é baseada em fatos verídicos e nomes fictícios.
E essa teve um início bem inusitado, uma vez que Reeta e Ajay já se conheciam da faculdade, em Delhi, e começaram a namorar em segredo. Bem, pelo menos os pais de ambos não sabiam dessa relação que teve um prólogo feliz e acabou em casamento, pois os três requisitos acima mencionados (religião, casta e língua em comuns) foram atendidos. Mas o casal apaixonado não ficou muito tempo em sua terra natal e, três semanas depois de trocarem guirlandas com notas de rúpias, migraram para a Inglaterra onde o serviço de cozinheiras e faxineiras é oneroso e apenas os membros da realeza têm condições financeiras de pagar por eles diariamente.
E foi nesse ponto da trama que a estória de Reeta passou a ter o mesmo enredo que as demais indianas: ela acordava às 6h da manhã para ir à academia por 45 minutos e, então, voltava para casa para tomar banho, se arrumar, fazer o café-da-manhã de dois e partir para o escritório na cidade vizinha, onde ficava até às cinco da tarde.
Ajay só saía da cama às 8h45 e já tinha a comida pronta a lhe esperar; ele trabalhava de casa e almoçava o que havia sobrado da noite anterior; passava o dia no telefone, diante do computador ou na frente da geladeira beslicando, e não parecia ter tempo para ajudar nos afazeres domésticos. Nem a louça suja do desjejum e almoço conseguiam desviar sua atenção do árduo trabalho em que se concentrava e alcançavam a pia da cozinha!
Somente quando Reeta retornava à casa, ouvia-se o barulho de água escorrendo por pratos e talheres e sentia-se o o cheiro de comida fresca sendo preparada. Depois da janta, ela ainda conseguia esticar as horas produtivas de seu dia, recolhendo as roupas secas nos radiadores do apartamento e lavando as que se empilhavam num canto do banheiro. E, já na cama, quando pensava que poderia dar um pouco de repouso ao corpo fatigado, lá vinha Ajay demandar seus direitos de marido.
Mas Reeta não tinha do quê reclamar. Ela havia crescido num mundo em que, para a mulher, é mais importante aprender a cozinhar do que a ler; numa cultura em que o homem é criado para se casar não com o amor de sua vida nem com sua melhor amiga, mas com empregadas.
Servants with benefits.
And I've got already my apron on...

sexta-feira, 13 de abril de 2012

As mãos de minha filha

"Todos aqueles homens e mulheres ali no quarto escuro pareciam sombras de um submundo, criaturas sem voz nem movimento, prisioneiros de algum perverso sortilégio." E todos os olhares estavam fitos na zona central da cama, com a atenção presa nas feições desenhadas do pequenino rosto da recém-nascida: nos seus imensos olhos castanho-esverdeados e nos seus lábios que mais pareciam um botão de rosa...
Claro que eles sempre foram os primeiros a serem notados. Talvez os únicos.
No início, poucas pessoas conseguiam perceber seus finos cabelos da cor da árvore da castanheira ou suas brancas mãos de pianista, com dedos longos e delgados como os dos pai.
Só não sei se elas vão, algum dia, chegar perto de um piano ou de qualquer outro instrumento musical, mas as mãos de minha filha foram logo reparadas por sua mãe. E por ela mesma.
Desde cedo, aquele bebê já brincava com as extremidades dos seus braços e das suas pernas, realizando movimentos contorcionistas quase circenses. Deitada no berço, ela agarrava um dos pés com as duas mãos e trazia-o até a boca com uma agilidade e flexibilidade espantosas.
Mas quando o espanto e a admiração com essa parte do corpo passou, as mãos de minha filha começaram a dedilhar minhas bochechas, numa composição de afeto de autoria própria. E, com delicados beliscões, ia apertando-as (ora a esquerda ora a direita) enquanto tomava a mamadeira nos meus braços. Ela parecia fazer um reconhecimento táctil da face que a contemplava; parecia sua primeira forma de demonstrar carinho pela figura que a alimentava.
Entretanto, nossa mais intensa (e por vezes dolorosa) troca de amor acontece na hora de dormir. Seja no cochilo do meio do dia na minha cama ou à noite na sua, quatro longos e delgados dedinhos da mão de minha filha cobrem meu polegar enquanto seu próprio pólex o pressiona vigorosamente, até seus imensos olhos castanho-esverdeados se fixarem num ponto só visível para ela na penumbra do quarto. Aos poucos, vou sentindo as pressões diminuírem de intensidade e frequência e sei que ela está entrando no torpor hipnótico do deus grego do sono. Então, ela se entrega aos braços de Morfeu  sem mais resistência e adormece.
Não amamentei aquele pequenino bebê com feições desenhadas, mas nosso profundo vínculo emocial foi formado pelas mãos de minha filha.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Confissões a Pablo

Nos desencontramos deste mundo por apenas dois anos. 
Mais precisamente, 671 dias separam a morte de Ricardo Eliécer Neftali Reyes Basolato e o dia do meu nascimento, em julho de 1975.
Bem, talvez seja muita presunção comparar minha vida pouco ilustre com a do jovem chileno que se tornaria Pablo Neruda. Fomos, sem dúvida nenhuma, protagonistas de estórias bem diferentes, mas tivemos, sim, algo em comum: uma vida muito intensa.
E a minha começou bem cedo.
Passei os primeiros anos da minha infância num lugar quente e rico em sabores no Nordeste brasileiro. E nas ruas ainda calmas de Recife eu aprendi a andar de bicicleta e a subir em árvores, gozando de uma liberdade e segurança agora muito raras nas capitais do Brasil.
No entanto, tais direitos logo foram perdidos aos seis anos de idade, quando toda a família voltou ao seu estado de origem e se estabeleceu de vez em Porto Alegre. E, mesmo morando num espaçoso apartamento de três dormitórios e estando mais alta que qualquer árvore das redondezas (no décimo quarto andar do nosso edifício), meu mundo havia se tornado claustrofóbico e inesperadamente frio.
Foi quando as "travessuras" de uma criança entediada e inconsequente começaram... Além dos clássicos trotes telefônicos às pizzarias da cidade envolvendo os coitados dos vizinhos, eu passei a jogar coisas da janela da nossa casa no Bom Fim. E qualquer coisa podia ser um objeto da minha pervertida diversão: moedas, cubos de gelo, camisinhas cheias de água, bergamotas que minha avó trazia do sítio, os discos de vinil do meu pai e até ovos e latas vazias de milho verde!
Eu podia ter seguido com essa brincadeira (engraçada só para mim) por muitos anos, mas fui flagrada pelo zelador do prédio ao lado do nosso e meus pais passaram a ficar mais atentos aos meus atos (de quase) vandalismo. Só não descobriram que, fora de casa e em volta do quarteirão, eu continuava com outro dos meus passatempos maldosos favoritos: golpear as pessoas que caminhavam por nós (sim, nessa época, eu já tinha reunido uma pequena gangue) com uma antena de rádio quebrada e escondê-la rapidamente na manga das roupas que usava.
Eu sei. É terrível e chocante e eu mesma me sinto muito envergonhada, mas igualmente intrigada. Não consigo entender o que aconteceu com a criança feliz que antecedeu aquela adolescente perversa. Será que a perda da liberdade me transformou num monstro?
Por mais simplista que possa parecer, a explicação soa bastante razoável e hoje, depois de ter virado a página desse meu passado há mais de 20 anos e ter me tornado "a true law abiding citizen", me vejo repetindo o antigo padrão de comportamento. Não, não jogo mais nada da janela (nem sequer um fio de cabelo pelo vidro do carro) e não imagino que fim tenha levado a tal antena de rádio, mas voltei a golpear as pessoas ao meu redor (a minha própria família), com palavras tão cruéis e maldosas quanto as batidas fortes e certeiras de um pedaço de metal.
E, mais uma vez, não consigo entender o que aconteceu com aquela mulher que viu pores do sol em diferentes partes do mundo, que andou de camelo e de elefante e que mergulhou os pés descalços em tantos mares para ela se transformar nessa criatura constantemente amarga e ressentida. Será que o casamento e a maternidade também me fazem sentir claustrofóbica e inesperadamente fria? Será que o término da minha livre vida de solteira e o início da outra como consorciada e mãe me entendiam tanto e me deixam inconsequente? Será que vou precisar de algum flagrante para cessar meus atos perversos?
Eu podia procurar mais detalhes na biografia de Neruda e tentar descobrir o que deu errado em seus dois primeiros casamentos e como ele superou o terror do que viu durante a Guerra Civil Espanhola...
Ou talvez pudesse simplesmente confessar a Pablo  (e a quem quisesse me ouvir) que eu também vivi e aprontei muito, mas que ainda não aprendi a aceitar as mudanças da vida.

terça-feira, 3 de abril de 2012

The Orange Brigade

A primeira vez que ouvi falar da Brigada Laranja foi em 2008, quando a ideia de ter um marido e uma filha ainda era distante e eu vivia, sem o saber, minha última grande aventura sozinha, em Londres.
Logo vim a descobrir que essa não era uma facção da Fraternidade Protestante da Irlanda do Norte (The Orange Order), nem os fiéis assinantes da empresa de telefonia móvel 'Orange'. No entanto, tal expressão parecia mais uma brincadeira entre colegas de profissão, quando o mais respeitável dos nossos professores de inglês explicou, com risadinhas contidas, que esse era o nome pelo qual eram conhecidas as mulheres que se submetiam ao bronzeamento artificial durante os rigorosos meses de inverno no Reino Unido.
Sim, eu mesma já tinha visto rostos exageradamente alaranjados passeando pelas ruas movimentadas de Oxford St e Regent St, mas imaginar que já havia uma palavra para designar um mero modismo feminino era um absurdo. Soava mais como uma lenda urbana do país...
Três anos depois, eu voltava ao cenário londrino para passar o carnaval de Notting Hill com a minha recém formada família e me deparei com o verdadeiro destaque da festa.
Caía uma garoa fina naquele domingo quente de agosto e, ao meu lado, estava uma mulher de meia-idade dançando ao ritmo dos caminhões de som que embalavam a multidão nas ruas do Condado Real de Kensignton e Chelsea. Ela usava um espartilho bege e uma calça branca extremamente colados ao corpo e tinha o cabelo preso com uma fita para esconder a emenda dos fios naturais com as falsas madeixas.
Em poucos minutos, junto com a água da chuva, escorria um líquido alaranjado pelo rosto e pelos braços roliços daquela mulher, desde a testa até o colo descoberto, maculando suas vestimentas claras de maneira inapropriada e lamentável. Mas ela continuou remexendo os quadris, indiferente ou ignorante ao espetáculo patético que encenava, talvez na esperança de que ninguém mais o notasse.
Infelizmente, eu estava ali para notar e imediatamente me lembrei da expressão de 2008.
Mas segui com minha vida, porque a Brigada Laranja não fazia parte dela...
Até seis meses mais tarde eu me encontrar numa loja de cosméticos no único shopping centre de Watford e me ver comprando, enganadamente pelas luzes artificiais do lugar, o pó compacto errado para minha tonalidade de pele.
Só me dei conta do engano no dia seguinte (e nos que a ele se seguiram), quando empurrava o carrinho da minha filha pela St Albans Road e tinha o rosto apresentando os tons daquela cor terciária. Mantive a cabeça erguida, não cheia de orgulho, apenas cuidando o céu para voltar rapidamente para casa ao menor sinal de chuva.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Il dolce far niente

Segundo o dicionário online MacMillan, "lady of leisure" é uma mulher que não precisa trabalhar, ou porque o marido ganha bem ou porque ela vive de alguma herança ou ainda porque tem um 'protetor' endinheirado. No sentido figurado e bastante contemporâneo, também pode significar uma pessoa do sexo feminino que está desempregada ou até uma prostituta (quando a ênfase cai mais sobre a palavra 'leisure').
A origem dessa expressão, no entanto, é desconhecida, mas tenho um palpite que ela é tão antiga quanto as sociedades greco-romanas da Antiguidade, em que havia trabalho escravo  em abundância e as senhoras dos então cidadãos estavam livres de obrigações e responsabilidades domésticas e podiam despender seu tempo ocioso em outras atividades de lazer.
Desde que nos mudamos para a Inglaterra (em 2010) e minha filha tinha apenas 4 meses de vida, meu marido insitia para que eu não ficasse, desnecessariamente, estressada com o prazo de entrega dos trabalhos de revisão e tradução que eu teimava em continuar aceitando e me dedicasse à criação de nossa menina e à manutenção de nossa casa. Afinal de contas, o que eu recebia não tinha muito impacto nas finanças da família...
Mas isso era algo impensável para mim, mesmo com a terrível descarga de adrenalina que eu sentia ao me dividir entre os cuidados da minha Pequena e o término de um arquivo no tempo estabelecido.
Eu já tinha abandonado, por causa da maternidade, a ideia de um emprego convencional, das 9h às 18h, num lugar remotamente parecido com ou que pudesse ser chamado de escritório. Desistir do meu último vínculo com o mundo fora da minha tríade atual (mãe-esposa-e-dona-de-casa) parecia um passo atrás na minha História pessoal e outro dentro de culturas retrógradas e conservadoras, ainda que morando num país desenvolvido e que oferece benefícios em dinheiro para as mães cuidarem de suas crianças em casa.
Mas a vida é cheia de surpresas e, desde que retornamos para a Inglaterra (em janeiro de 2012 e depois de quase dois meses de 'férias' entre o Brasil e a Índia), meu computador de quatro anos deu seu derradeiro suspiro eletrônico e não ligou mais.
Com o coração repleto de tristeza pela perda repentina de um velho companheiro, fui obrigada a estender meu período de inatividade, indefinitivamente, na empresa para a qual fazia serviços freelance de tradução e revisão e passei a ter mais horas sobrando no meu dia, para empregá-las em outras atividades.
A lady of leisure at last? Well, not quite! É difícil enquadrar o glamour dessa expressão nas tarefas domésticas que continuam a se avolumar diariamente e que eu continuo a executar sozinha, sem vigorosos escravos à minha disposição.
Entretanto, não preciso mais representar o papel daquela tríade feminina às pressas. E a simples ideia de poder realizar a limpeza da casa ou fazer a comida para a família ou sentar no sofá com a minha filha, com calma, sem prazos para cumprir, é libertadora.
E talvez seja esse o real significado da expressão inglesa (do latim,  licēre quer dizer 'ser permitida'): "lady of leisure" é a mulher que tem permissão de desfrutar os confortos da casa e, principalmente, de apreciar a companhia dos filhos, ou porque o marido ganha bem ou porque ela vive de alguma herança ou ainda porque tem um 'protetor' endinheirado.
Graças ao meu marido, nunca curti tanto nossa menina e nossos momentos juntas, em frente à televisão, saboreando uma refeição maravilhosa, no mais puro estilo do dolce far niente.