Não é canja de galinha nem creme de ervilha, mas, desde os dezesseis anos, sou eu que estou boiando numa sopa de emoções, temperada com meus próprios hormônios.
E em nenhum momento, desde aquela época, a refeição foi tão indigesta do que nas minhas 39 semanas de gravidez. Como se as crises de identidade e as dúvidas sobre a maternidade não fossem suficientes para desestabilizar a saúde mental de qualquer mulher, ainda tive que lidar com um caldo hormonal difícil de engolir.
Assim, além dos conhecidos estrógeno, progesterona e testosterona, minha corrente sanguínea foi inundada com o folículo estimulante, o beta-HCG, o melanotrófico, a aldosterona e o lactogênio placentário humano. Só não experimentei uma pitada da dolorosa oxitocina, porque optei pela cesariana antes de entrar em trabalho de parto.
Mas o que ajudou bastante, naquele período, foi inserir mais uma letrinha à sopa de hormônios femininos: a endorfina. Não produzida pelo consumo de chocolate (já que passei por uma estranha e inusitada fase salgada durante a gestação), mas com a prática excessivamente desaconselhável de exercícios físicos. Acho que frequentei a esteira do condomínio até um mês antes de dar à luz.
Entretanto, quase onze meses mais tarde, ainda sofro de indigestão a cada quatro semanas, agora de volta aos ingredientes básicos do caldo hormonal. E sempre quando meu marido está incomunicável e cheio de trabalho e eu estou em casa, a sós com a minha filha... Já sem paciência, sem energia e sem condições emocionais de segurar o choro. De repente, o mundo inteiro se transforma num lugar cruel e inóspito e a minha vida, num beco sem saída. Permaneço ali, ao lado dela, prostrada no chão e sem forças para reagir, apenas permitindo que as lágrimas saiam e corram pela face, até se cansarem sozinhas e cessarem.
Por experiência própria, sei que isso não é algo muito nobre para se testemunhar. Parece muito mais com um momento de fraqueza do que de fragilidade. E eu só fui entender a minha mãe depois que me tornei uma.
Espero, somente, que o meu estoque de sopa esteja perto do final, para que a minha menina não precise ter os próprios filhos e sentir, no corpo todo, os efeitos que as letrinhas hormonais podem causar.
quinta-feira, 30 de setembro de 2010
quarta-feira, 29 de setembro de 2010
Assim caminha a humanidade
Tudo aconteceu do jeitinho que a natureza tinha planejado que deveria ser.
No entanto, nada é tão fascinante pra minha filha do que um dos mais simples e extraordinários elementos da natureza, formado por duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio, a água.
E a água do banho parece ser fonte inesgotável de espanto e admiração.
Primeiro, ela firmou o pescoço e passou a sustentar a própria cabeça. Depois ela tentava ficar sentada, com e sem apoio nas costas. De bruços, ela começou com chutes para impulsionar o corpo pra frente até que conseguiu sair do lugar rastejando e, mais tarde, engatinhando. Em pouco tempo, ela foi se agarrando nos pés das cadeiras, nos cantos do sofá e nas alças das gavetas para ficar de pé. E não vai demorar muito para dar os primeiros passos sozinha.
É claro que houve alguns solavancos pelo caminho e incontáveis tombos, mas tudo transcorreu da maneira mais natural possível, graças aos aminoácidos de 23 pares de cromossomos, sintetizados e programados para desencadear o maravilhoso processo de desenvolvimento no organismo do ser humano. Mas os únicos maravilhados com o incrível trabalho dessas microscópicas substâncias celulares são os pais da criança e não a própria, que age com a mais infantil naturalidade e quase indiferença às mudanças pelas quais passa o próprio corpo.
Pra ela, o que de fato causa maravilhamento são outras minúsculas descobertas no mundo exterior: um fio de cabelo, um farelo de bolacha, um fiapo de roupa achados ao acaso no chão, durante suas expedições exploratórias pelos cantinhos da casa.
No entanto, nada é tão fascinante pra minha filha do que um dos mais simples e extraordinários elementos da natureza, formado por duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio, a água.
E a água do banho parece ser fonte inesgotável de espanto e admiração.
E arrisco a dizer que são os melhores e mais esperados quinze minutos do seu dia. Ela se diverte mais numa banheira repleta desse líquido informe, incolor, insípido e inodoro do que com qualquer outro brinquedo de última geração, cheio de luzes estroboscópicas e sons espalhafatosos. Mas o que mais diverte sua mãe são suas tentativas ingênuas de segurar a água correndo da torneira com seus dedos pequeninos e aflitos e seu olhar intrigado com essa maravilha da natureza.
E durante aqueles quinze minutos diários, sentada ao seu lado e contemplando o encantamento sem fim no rosto da minha filha, duvido que aminoácido algum seja o verdadeiro responsável pelo o que dá impulso à caminhada do Homem: a curiosidade.
terça-feira, 28 de setembro de 2010
Ode Às Fezes
As pessoas que me conhecem e sabem da minha obsessão por escatologia (só não gosto de estórias de vômito, porque, desde a gravidez, esse é um tópico que não me desce muito bem) já devem estar se sentindo desconfortáveis com a frequência com a qual abordo o assunto. Consigo até ver minha mãe balançando a cabeça em reprovação toda vez que ela se depara com um texto meu nesse sentido e dizendo, cheia de culpa, que deveria ter me deixado brincar mais com terra durante a minha fase anal...
E, mesmo tentando escrever com certa elegância e evitando palavras de baixo calão, quem não me conhece deve ficar, no mínimo, surpreso, senão horrorizado com a recorrência do tema neste espaço.
Mas, pra mim, é inevitável.
Se antes da minha filha nascer ele já se encontrava entre os meus cinco favoritos, desde que a Pequena entrou na minha vida, há quase onze meses, a maior parte do meu tempo tem sido dedicada à função ou de trocar fraldas sujas ou de me preocupar se o cocô dela está da cor e da consistência adequadas: nem muito verde nem muito mole, sinais de um organismo não saudável.
E isso foi algo que eu descobri na labuta materna diária com a minha menina, pois raríssimas são as pessoas que têm conhecimento disso ou tocam no assunto abertamente e poucos são os pediatras que aconselham os pais de primeira viagem a prestarem atenção nas fezes dos filhos. Alguém por acaso sabe quantas vezes, por dia, é normal para um bebê fazer cocô? Uma? Duas? Depois de cada mamada?
Não sei se há muita gente interessada na conversa. Ninguém quer ver. Ninguém quer sequer chegar perto. Que puxem logo a descarga e levem para bem longe a prova de nossa animalidade (ou a de nossa prole).
Sim, pensamos e sentimos, mas também fazemos cocô, como qualquer animal irracional. E, na verdade, para os estudiosos e praticantes da yoga, só conseguimos pensar com clareza e sentir com profundidade se fizermos cocô. Não para purificar o corpo, mas para mantê-lo funcionando sem bloqueios e de maneira sadia: nem muito, nem pouco; nem muito duro, nem muito mole.
Assim, da próxima vez que você (que me conhece ou não) se deparar com um texto meu não-tão-elegante sobre escatologia, não faça cara feia nem se sinta ofendido. Fazer cocô é um prazer gratuito e se a questão for analisada com frieza, chega-se à mesma conclusão do meu sábio pai: “É a merda que sustenta o Homem.”
E, mesmo tentando escrever com certa elegância e evitando palavras de baixo calão, quem não me conhece deve ficar, no mínimo, surpreso, senão horrorizado com a recorrência do tema neste espaço.
Mas, pra mim, é inevitável.
Se antes da minha filha nascer ele já se encontrava entre os meus cinco favoritos, desde que a Pequena entrou na minha vida, há quase onze meses, a maior parte do meu tempo tem sido dedicada à função ou de trocar fraldas sujas ou de me preocupar se o cocô dela está da cor e da consistência adequadas: nem muito verde nem muito mole, sinais de um organismo não saudável.
E isso foi algo que eu descobri na labuta materna diária com a minha menina, pois raríssimas são as pessoas que têm conhecimento disso ou tocam no assunto abertamente e poucos são os pediatras que aconselham os pais de primeira viagem a prestarem atenção nas fezes dos filhos. Alguém por acaso sabe quantas vezes, por dia, é normal para um bebê fazer cocô? Uma? Duas? Depois de cada mamada?
Não sei se há muita gente interessada na conversa. Ninguém quer ver. Ninguém quer sequer chegar perto. Que puxem logo a descarga e levem para bem longe a prova de nossa animalidade (ou a de nossa prole).
Sim, pensamos e sentimos, mas também fazemos cocô, como qualquer animal irracional. E, na verdade, para os estudiosos e praticantes da yoga, só conseguimos pensar com clareza e sentir com profundidade se fizermos cocô. Não para purificar o corpo, mas para mantê-lo funcionando sem bloqueios e de maneira sadia: nem muito, nem pouco; nem muito duro, nem muito mole.
Assim, da próxima vez que você (que me conhece ou não) se deparar com um texto meu não-tão-elegante sobre escatologia, não faça cara feia nem se sinta ofendido. Fazer cocô é um prazer gratuito e se a questão for analisada com frieza, chega-se à mesma conclusão do meu sábio pai: “É a merda que sustenta o Homem.”
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
A Escala 007
Na década de 50, quando James Bond entrou para o inconsciente coletivo e universal como o estereótipo do perfeito espião, Sir Ian Lancaster Fleming havia imaginado um personagem elegante, refinado e charmoso, além de ter todas aquelas habilidades de um verdadeiro agente secreto do MI-6.
Um oficial da Inteligência Militar britânica com licença da Rainha para matar e capacidade de executar suas missões de maneira eficaz e sutil.
Da mesma forma, há anos imagino a progressão da intimidade (escatológica) nos meus relacionamentos amorosos ao estilo 007.
A condição básica a respeitar é a de que se pode falar sobre tudo, mas deve-se agir com a maior discrição possível. Pois, ainda que seja parte normalíssima do sistema digestimo do Homem (toda pessoa coloca para fora, de 12 a 25 vezes por dia, cerca de um litro de uma mistura gasosa contendo sulfetos, ácidos graxos e enxofre), nenhuma arma é mais mortífera, nenhum golpe é mais letal, nenhum dispositivo tecnológico é mais poderoso para aniquilar a magia e o romance de um casamento do que liberar o conteúdo comprimido na ampola retal violenta e ruidasamente.
Então, como deixar a natureza seguir seu curso sem começar uma guerra fria doméstica e transformar o ambiente familiar num campo de batalha fétido e pestilento?
Sem dúvida, é quase uma missão impossível, mas como cinéfila profissional e apaixonada por boas estórias de espionagem, resolvi implementar as regras fleminguianas na minha casa e adotar a escala 007, quando o assunto envolver os sub-produtos da digestão.
Tenho certeza de que o jornalista e escritor londrino pensou um pouco em si próprio (ele mesmo fez parte do Serviço de Inteligência da Marinha britânica durante a Segunda Guerra Mundial), quando descreveu seu personagem fictício e, provavelmente, ficaria desapontado em ver a mais recente versão de James Bond.
Na verdade, o criador do agente 007 morreu em 1964 e só pode ter visto a adaptação cinematográfica de Dr. No, lançada dois anos antes.
Até hoje, foram seis os atores “oficiais” que personificaram o espião de Fleming (Sean Connery, George Lazenby, Roger Moore, Timothy Dalton, Pierce Brosnan e Daniel Craig) e, à medida que o tempo passou, eles parecem ter se tornado mais vulgares e grosseiros e menos elegantes e sofisticados.
Como num casamento... Quando o charme e a sedução iniciais dão lugar ao hábito e à indiferença. É por isso que a utilização da escala 007 pode ser muito útil para avaliar o nível de romance num relacionamento. Quanto mais próximo do galã escocês, melhor. Porque sua atuação é uma prova de que não é preciso explosões e efeitos especiais para completar a mal-vista e mal-cheirosa missão digestiva. Bastam astúcia e discrição.
E menos feijão, repolho, carnes e ovos na dieta.
E se o barulho for inevitável e você for flagrado e surpreendido em plena ação, sem tempo para o plano de fuga, desvie a atenção do inimigo com um romântico e inesperado beijo à moda de Bond, James Bond.
Pois sempre haverá Um Novo Dia Para Morrer.
Um oficial da Inteligência Militar britânica com licença da Rainha para matar e capacidade de executar suas missões de maneira eficaz e sutil.
Da mesma forma, há anos imagino a progressão da intimidade (escatológica) nos meus relacionamentos amorosos ao estilo 007.
A condição básica a respeitar é a de que se pode falar sobre tudo, mas deve-se agir com a maior discrição possível. Pois, ainda que seja parte normalíssima do sistema digestimo do Homem (toda pessoa coloca para fora, de 12 a 25 vezes por dia, cerca de um litro de uma mistura gasosa contendo sulfetos, ácidos graxos e enxofre), nenhuma arma é mais mortífera, nenhum golpe é mais letal, nenhum dispositivo tecnológico é mais poderoso para aniquilar a magia e o romance de um casamento do que liberar o conteúdo comprimido na ampola retal violenta e ruidasamente.
Então, como deixar a natureza seguir seu curso sem começar uma guerra fria doméstica e transformar o ambiente familiar num campo de batalha fétido e pestilento?
Sem dúvida, é quase uma missão impossível, mas como cinéfila profissional e apaixonada por boas estórias de espionagem, resolvi implementar as regras fleminguianas na minha casa e adotar a escala 007, quando o assunto envolver os sub-produtos da digestão.
Tenho certeza de que o jornalista e escritor londrino pensou um pouco em si próprio (ele mesmo fez parte do Serviço de Inteligência da Marinha britânica durante a Segunda Guerra Mundial), quando descreveu seu personagem fictício e, provavelmente, ficaria desapontado em ver a mais recente versão de James Bond.
Na verdade, o criador do agente 007 morreu em 1964 e só pode ter visto a adaptação cinematográfica de Dr. No, lançada dois anos antes.
Até hoje, foram seis os atores “oficiais” que personificaram o espião de Fleming (Sean Connery, George Lazenby, Roger Moore, Timothy Dalton, Pierce Brosnan e Daniel Craig) e, à medida que o tempo passou, eles parecem ter se tornado mais vulgares e grosseiros e menos elegantes e sofisticados.
Como num casamento... Quando o charme e a sedução iniciais dão lugar ao hábito e à indiferença. É por isso que a utilização da escala 007 pode ser muito útil para avaliar o nível de romance num relacionamento. Quanto mais próximo do galã escocês, melhor. Porque sua atuação é uma prova de que não é preciso explosões e efeitos especiais para completar a mal-vista e mal-cheirosa missão digestiva. Bastam astúcia e discrição.
E menos feijão, repolho, carnes e ovos na dieta.
E se o barulho for inevitável e você for flagrado e surpreendido em plena ação, sem tempo para o plano de fuga, desvie a atenção do inimigo com um romântico e inesperado beijo à moda de Bond, James Bond.
Pois sempre haverá Um Novo Dia Para Morrer.
terça-feira, 14 de setembro de 2010
A minha razão
Nunca sonhei em ser mãe. Ou em ter uma família.
Desde os quinze anos, a única coisa que eu desejava ardentemente era visitar cada cantinho singular deste imenso e diversificado planeta.
Mas não superficialmente.
Eu queria ser uma “quase” nativa e conhecer os atalhos mais secretos do lugar e os mercados e restaurantes mais bem guardados dos estrangeiros.
Eu queria atravessar o Saara num camelo, dormir no deserto com os Tuaregues e me perder nas ruas da maior cidade do mundo árabe, o Cairo. Eu queria descer a América do Sul num furgão, de Machu Picchu até o Ushuaia, dando um mergulho na Laguna Verde boliviana e dançando um tango em Buenos Aires.
Queria ser uma japonesa de quimono, uma padeira italiana e uma fabricante de camembert no noroeste da França.
Eu queria ser muitas pessoas e ter muitas vidas, mas hoje eu sou apenas uma mãe, brasileira de 35 anos, casada e morando num vilarejo da Inglaterra. Uma mulher que já desempenhou outros papéis e que não tem mais certeza de poder atuar em outros cenários, desde que permitiu a entrada de outros dois importantes personagens na sua vida.
Sim, eu me deixei engravidar porque estava cansada do monólogo.
A excitação de pisar em palcos diferentes, apenas com a minha inseparável mala de 23 quilos, estava desaparencendo. A ideia de acordar em cidades exuberantes, de comer e beber coisas típicas e de presenciar o pôr-do-sol sozinha não mais me fascinava.
Faltava algo... Alguém... Ela... A minha família.
Mas, desde a gravidez, eu me perguntava o motivo de ser ter filhos.
Por que passar por nove torturantes meses de enjoo, azia, dor nas costas, constipação e noites sem sono? Não pode simplesmente ser para a perpetuação da espécie! Ou não haveria adoção. Também não pode ser apenas a satisfação do instinto materno de amamentar, cuidar e educar. Senão, só haveria a adoção de bebês e não precisaríamos de creches ou escolas. E não pode ser para dar uma razão à vida do casal, pois há milhares de mães (e pais solteiros ou viúvos ou separados) que voltam ao trabalho e à carreira em questão de meses após o nascimento dos filhos. E é, definitivamente, impossível que seja para dividir e compartilhar momentos de felicidade, já que eles não são tantos assim e sobram os de choro, preocupação e sacrifício.
Então, por que tê-los? Por que desejá-los? Por que pensar neles e nos seus quartinhos enfeitados e roupinhas minúsculas?
Eu não tenho a resposta.
Só sei que, no meu caso, apesar dos meses de tortura e dos momentos de aflição, eu precisava dela na minha vida. Deles... Dos dois... Mesmo sem nunca ter sonhado com uma família e mesmo que este seja o mais comum e ordinário dos papéis que uma mulher possa desempenhar aqui, no Brasil, no Japão, na Itália ou na Normandia. Mas de maneira nada superficial.
Porque ser mãe é aprender mais do que ensinar e eu tenho que assistir a muitas aulas com a minha filha (principlmente as de paciência).
E, quem sabe daqui a alguns anos, eu consiga voltar a visitar cada cantinho singular deste imenso e diversificado planeta.
Acompanhada.
Desde os quinze anos, a única coisa que eu desejava ardentemente era visitar cada cantinho singular deste imenso e diversificado planeta.
Mas não superficialmente.
Eu queria ser uma “quase” nativa e conhecer os atalhos mais secretos do lugar e os mercados e restaurantes mais bem guardados dos estrangeiros.
Eu queria atravessar o Saara num camelo, dormir no deserto com os Tuaregues e me perder nas ruas da maior cidade do mundo árabe, o Cairo. Eu queria descer a América do Sul num furgão, de Machu Picchu até o Ushuaia, dando um mergulho na Laguna Verde boliviana e dançando um tango em Buenos Aires.
Queria ser uma japonesa de quimono, uma padeira italiana e uma fabricante de camembert no noroeste da França.
Eu queria ser muitas pessoas e ter muitas vidas, mas hoje eu sou apenas uma mãe, brasileira de 35 anos, casada e morando num vilarejo da Inglaterra. Uma mulher que já desempenhou outros papéis e que não tem mais certeza de poder atuar em outros cenários, desde que permitiu a entrada de outros dois importantes personagens na sua vida.
Sim, eu me deixei engravidar porque estava cansada do monólogo.
A excitação de pisar em palcos diferentes, apenas com a minha inseparável mala de 23 quilos, estava desaparencendo. A ideia de acordar em cidades exuberantes, de comer e beber coisas típicas e de presenciar o pôr-do-sol sozinha não mais me fascinava.
Faltava algo... Alguém... Ela... A minha família.
Mas, desde a gravidez, eu me perguntava o motivo de ser ter filhos.
Por que passar por nove torturantes meses de enjoo, azia, dor nas costas, constipação e noites sem sono? Não pode simplesmente ser para a perpetuação da espécie! Ou não haveria adoção. Também não pode ser apenas a satisfação do instinto materno de amamentar, cuidar e educar. Senão, só haveria a adoção de bebês e não precisaríamos de creches ou escolas. E não pode ser para dar uma razão à vida do casal, pois há milhares de mães (e pais solteiros ou viúvos ou separados) que voltam ao trabalho e à carreira em questão de meses após o nascimento dos filhos. E é, definitivamente, impossível que seja para dividir e compartilhar momentos de felicidade, já que eles não são tantos assim e sobram os de choro, preocupação e sacrifício.
Então, por que tê-los? Por que desejá-los? Por que pensar neles e nos seus quartinhos enfeitados e roupinhas minúsculas?
Eu não tenho a resposta.
Só sei que, no meu caso, apesar dos meses de tortura e dos momentos de aflição, eu precisava dela na minha vida. Deles... Dos dois... Mesmo sem nunca ter sonhado com uma família e mesmo que este seja o mais comum e ordinário dos papéis que uma mulher possa desempenhar aqui, no Brasil, no Japão, na Itália ou na Normandia. Mas de maneira nada superficial.
Porque ser mãe é aprender mais do que ensinar e eu tenho que assistir a muitas aulas com a minha filha (principlmente as de paciência).
E, quem sabe daqui a alguns anos, eu consiga voltar a visitar cada cantinho singular deste imenso e diversificado planeta.
Acompanhada.
sexta-feira, 3 de setembro de 2010
Carma hindu-brasileiro
Eu sou péssima para me lembrar de aniversários, mas há certas datas impossíveis de esquecer na minha vida.
Era a manhã de 22 de fevereiro de 2009 e estávamos no meu minúsculo apartamento em Bangalore. Eu já estava de pé, me vestindo, enquanto ele permanecia deitado na cama, com seus longos cabelos negros espalhados pelo travesseiro. Quando virou o rosto para me observar, eu falei (meio que instintivamente e sem refletir muito) que nunca mais ficaríamos sozinhos daquela maneira.
Eu já estava grávida de uma semana. Mas não sabia. Não conscientemente.
Só fui ter certeza depois de comentar com uma amiga (também de forma casual e quase de brincadeira) que não menstruava há várias semanas. Umas seis, se a memória não me falhava. Mas como o meu ciclo era bastante irregular sem o uso de anticoncepcional, não havia motivos pra preocupação. De qualquer forma, ela me sugeriu fazer um teste caseiro de gravidez.
E eu fiz. Na manhã do dia 19 de março.
Deu positivo, mas o resultado “apareceu” tão mais rápido do que os 120 segundos descritos na bula, que precisei de uma segunda opinião para acreditar. E uma terceira. E quarta...
Assim, dois testes de urina, um exame de sangue e um ultrassom intra-vaginal mais tarde, eu estava inequivocadamente convencida da presença de um feto em formação no meu útero. Ou quase.
Mesmo com as evidências científicas em mãos, os enjoos matinais e o constante cansaço, eu não conseguia me ver como mãe. Na verdade, não conseguia nem ver uma barriga crescendo! Eu só engordei onze quilos e a maioria deles no último mês de gestação. Pra mim, parecia, apenas, um pouco de gordura além do normal. É certo que uma gordura mais rija e menos flácida, mas, ainda assim, bem semelhante ao tecido adiposo.
É, minha negação durou as 39 semanas de gravidez e, frequentemente, eu me atormentava com a ideia absurda de deixar a maternidade de braços vazios! Mas havia, de fato, um bebê no meu ventre: o mais lindo que todos podiam esperar de uma mistura de genes tão fora do comum.
E ela chegou nos cumprimentando aos prantos e com seus imensos olhos castanhos bem abertos.
Desde então, não conseguimos mais ficar sozinhos daquela maneira, como um despreocupado casal de namorados.
E se engana quem pensa que filho é um ser inocente que não pediu para nascer. Como diz a minha mãe: “Pediu sim”. Implorou talvez. E, agora, somos três nesta jornada cármica a aprender e ensinar várias lições uns para os outros.
E a manhã de 6 de novembro é mais uma data que jamais esquecerei, pois foi quando meu carma hindu-brasileiro veio ao mundo.
Era a manhã de 22 de fevereiro de 2009 e estávamos no meu minúsculo apartamento em Bangalore. Eu já estava de pé, me vestindo, enquanto ele permanecia deitado na cama, com seus longos cabelos negros espalhados pelo travesseiro. Quando virou o rosto para me observar, eu falei (meio que instintivamente e sem refletir muito) que nunca mais ficaríamos sozinhos daquela maneira.
Eu já estava grávida de uma semana. Mas não sabia. Não conscientemente.
Só fui ter certeza depois de comentar com uma amiga (também de forma casual e quase de brincadeira) que não menstruava há várias semanas. Umas seis, se a memória não me falhava. Mas como o meu ciclo era bastante irregular sem o uso de anticoncepcional, não havia motivos pra preocupação. De qualquer forma, ela me sugeriu fazer um teste caseiro de gravidez.
E eu fiz. Na manhã do dia 19 de março.
Deu positivo, mas o resultado “apareceu” tão mais rápido do que os 120 segundos descritos na bula, que precisei de uma segunda opinião para acreditar. E uma terceira. E quarta...
Assim, dois testes de urina, um exame de sangue e um ultrassom intra-vaginal mais tarde, eu estava inequivocadamente convencida da presença de um feto em formação no meu útero. Ou quase.
Mesmo com as evidências científicas em mãos, os enjoos matinais e o constante cansaço, eu não conseguia me ver como mãe. Na verdade, não conseguia nem ver uma barriga crescendo! Eu só engordei onze quilos e a maioria deles no último mês de gestação. Pra mim, parecia, apenas, um pouco de gordura além do normal. É certo que uma gordura mais rija e menos flácida, mas, ainda assim, bem semelhante ao tecido adiposo.
É, minha negação durou as 39 semanas de gravidez e, frequentemente, eu me atormentava com a ideia absurda de deixar a maternidade de braços vazios! Mas havia, de fato, um bebê no meu ventre: o mais lindo que todos podiam esperar de uma mistura de genes tão fora do comum.
E ela chegou nos cumprimentando aos prantos e com seus imensos olhos castanhos bem abertos.
Desde então, não conseguimos mais ficar sozinhos daquela maneira, como um despreocupado casal de namorados.
E se engana quem pensa que filho é um ser inocente que não pediu para nascer. Como diz a minha mãe: “Pediu sim”. Implorou talvez. E, agora, somos três nesta jornada cármica a aprender e ensinar várias lições uns para os outros.
E a manhã de 6 de novembro é mais uma data que jamais esquecerei, pois foi quando meu carma hindu-brasileiro veio ao mundo.
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
Carma indiano
De acordo com as mais recentes estatísticas, somos quase 6,5 bilhões de habitantes no planeta Terra. Dentre toda essa gente, umas vinte têm real importância pra mim e outras duas dezenas já tiveram alguma relevância em algum ponto da minha vida. Isso deve se repetir, de maneira mais ou menos similar, para cada um de nós.
Passamos tempos morando num lugar, cumprindo uma determinada rotina e envolvidos num mesmo círculo de amigos e familiares e, de repente, o ato de uma única pessoa tem o poder de mudar nossa história irremediavelmente. Foi assim que conheci meu marido.
Nenhum dos dois queria, de fato, estar naquele lugar.
Eu tinha acabado de ter um relacionamento findo por e-mail, com direito a fotos anexadas de jogadores de futebol levando pontapés no traseiro (o que esperar, em pleno século 21, de um namorado oito anos mais jovem e vivendo num outro continente?). Mas era o aniversário de um amigo e, após muita insistência, resolvi me unir ao grupo e ir ao tal clube noturno.
Ele recém tinha chegado a Bangalore, era novo na cidade e passara os últimos dias vomitando. Mas, a convite do próprio médico, também se encontrava no local.
E foi assim que algo maior e mais poderoso que qualquer um de nossos planos mundanos se manifestou e ligou nossas vidas. Já são quase seis anos juntos, separados, juntos, separados e finalmente casados. E, se tantos acontecimentos não tivessem sido suficientes para alterar o curso de nossas histórias, faltava a entrada de uma personagem-chave para dar tempero à nossa novela indiana pessoal: a mãe do marido.
Descobri que todas aquelas piadas sobre “ela” não são apenas folclore ou crendice popular. Ela existe e a minha é realmente o esterótipo universal da sogra, com o agravante de morar debaixo do mesmo teto. E ainda não consegui ter certeza se o fato de não termos uma língua em comum é uma vantagem a meu favor (pois não preciso escutar suas queixas e lamúrias) ou um ponto negativo para a relação conjugal (já que ela desfia o rosário diretamente para o filho).
O que me causa mais temor, no entanto, são nossas similaridades.
Ela representa quase tudo o que qualquer mulher ocidental de bom senso repudiaria: submissão e obediência ao marido, devoção aos filhos, veneração às figuras religiosas e abnegação da própria feminilidade.
Ela só existe para servir os homens ao seu redor.
E, apesar de tão distantes, odeio ter que reconhecer que estamos muito próximas em pensamento e ação. Segundo a ponte que nos mantém unidas, o marido-e-filho, temos preocupações semelhantes em relação à família e nos comportamos de forma parecida quando o assunto é a administração (econômica) da casa.
Estranhamente, acredito que seríamos boas amigas numa outra encarnação, mas o modo como ela parece ter se entregado à fatalidade de seu destino de mulher indiana me provoca repulsa, desconforto e medo. Não quero seguir o mesmo caminho descendente, rumo à depressão e à completa apatia. Não com uma menina de apenas dez meses para criar e educar.
Mas a resistência a esse modelo tem produzido tensão entre os membros do lado paterno da família. Qualquer transgressão dos costumes é interpretada como desrespeito, e uma mulher-nora-e-cunhada não tem muito direito à opinião própria. O caminho do meio seria o mais sensato mas é o menos provável a ser trilhado, quando os obstáculos envolvem crenças arcaicas e profundamente enraizadas nas tradições de um povo.
Uma amiga me disse recentemente para não me preocupar, pois até sogras têm data de validade. Isso, por si só, já é preocupante, porque a mãe da minha tem mais de 80 e, se a genética prevalecer, ainda tenho 30 anos de convivência com a sogra. E não sei se vou conseguir sabedoria para aprender mais uma lição cármica ou se, novamente, vou acabar fugindo.
Dessa vez, do meu carma indiano.
Passamos tempos morando num lugar, cumprindo uma determinada rotina e envolvidos num mesmo círculo de amigos e familiares e, de repente, o ato de uma única pessoa tem o poder de mudar nossa história irremediavelmente. Foi assim que conheci meu marido.
Nenhum dos dois queria, de fato, estar naquele lugar.
Eu tinha acabado de ter um relacionamento findo por e-mail, com direito a fotos anexadas de jogadores de futebol levando pontapés no traseiro (o que esperar, em pleno século 21, de um namorado oito anos mais jovem e vivendo num outro continente?). Mas era o aniversário de um amigo e, após muita insistência, resolvi me unir ao grupo e ir ao tal clube noturno.
Ele recém tinha chegado a Bangalore, era novo na cidade e passara os últimos dias vomitando. Mas, a convite do próprio médico, também se encontrava no local.
E foi assim que algo maior e mais poderoso que qualquer um de nossos planos mundanos se manifestou e ligou nossas vidas. Já são quase seis anos juntos, separados, juntos, separados e finalmente casados. E, se tantos acontecimentos não tivessem sido suficientes para alterar o curso de nossas histórias, faltava a entrada de uma personagem-chave para dar tempero à nossa novela indiana pessoal: a mãe do marido.
Descobri que todas aquelas piadas sobre “ela” não são apenas folclore ou crendice popular. Ela existe e a minha é realmente o esterótipo universal da sogra, com o agravante de morar debaixo do mesmo teto. E ainda não consegui ter certeza se o fato de não termos uma língua em comum é uma vantagem a meu favor (pois não preciso escutar suas queixas e lamúrias) ou um ponto negativo para a relação conjugal (já que ela desfia o rosário diretamente para o filho).
O que me causa mais temor, no entanto, são nossas similaridades.
Ela representa quase tudo o que qualquer mulher ocidental de bom senso repudiaria: submissão e obediência ao marido, devoção aos filhos, veneração às figuras religiosas e abnegação da própria feminilidade.
Ela só existe para servir os homens ao seu redor.
E, apesar de tão distantes, odeio ter que reconhecer que estamos muito próximas em pensamento e ação. Segundo a ponte que nos mantém unidas, o marido-e-filho, temos preocupações semelhantes em relação à família e nos comportamos de forma parecida quando o assunto é a administração (econômica) da casa.
Estranhamente, acredito que seríamos boas amigas numa outra encarnação, mas o modo como ela parece ter se entregado à fatalidade de seu destino de mulher indiana me provoca repulsa, desconforto e medo. Não quero seguir o mesmo caminho descendente, rumo à depressão e à completa apatia. Não com uma menina de apenas dez meses para criar e educar.
Mas a resistência a esse modelo tem produzido tensão entre os membros do lado paterno da família. Qualquer transgressão dos costumes é interpretada como desrespeito, e uma mulher-nora-e-cunhada não tem muito direito à opinião própria. O caminho do meio seria o mais sensato mas é o menos provável a ser trilhado, quando os obstáculos envolvem crenças arcaicas e profundamente enraizadas nas tradições de um povo.
Uma amiga me disse recentemente para não me preocupar, pois até sogras têm data de validade. Isso, por si só, já é preocupante, porque a mãe da minha tem mais de 80 e, se a genética prevalecer, ainda tenho 30 anos de convivência com a sogra. E não sei se vou conseguir sabedoria para aprender mais uma lição cármica ou se, novamente, vou acabar fugindo.
Dessa vez, do meu carma indiano.
Carma brasileiro
Pode ter sido coincidência, mas eu nunca acreditei em casualidades.
Não em três. E não depois de ter vivido anos no Sub-continente, encontrado meu marido punjabi e concebido uma filha meia-indiana. Nada acontece por acaso e até os homens da ciência concordam que "para toda ação existe uma reação de força equivalente, em sentido contrário". O que, em outras palavras (sânscrito, para ser mais exata), significa karma.
É só assim que posso definir minha estranha e conturbada relação com uma gaúcha que seguiu um caminho paralelo ao meu, por três longos anos e três diferentes empregos, (naturalmente) na Índia.
Estranho porque já havíamos nos conhecido no Brasil, superficialmente.
Eu sequer sabia o sobrenome dela; apenas que trabalhava numa organização que promovia “intercâmbios culturais” com a qual eu tinha feito os meus.
Até que um dia, a 14 mil quilômetros de distância, recebi um e-mail perguntando a minha opinião sobre a possibilidade de ela fazer parte da ONG indiana onde eu estava voluntariando em Bangalore. Não, não e não. Aquele era um barco mal-construído, putrefato e em avançado processo de afundamento, e seria uma estupidez subir a bordo naquele momento...
Semanas mais tarde e depois de usar o FGTS e todas suas economias, lá estava ela com um sorriso triunfante no rosto e sapatos inadequados para as ruas empoeiradas da capital de Karnataka.
Os dois duraram pouquíssimo tempo.
Assim que percebeu (com os próprios olhos) no que havia se metido, deliberada mas enganosamente, raiva e medo eram as únicas emoções visíveis dos seus pés à cabeça. Raiva por ter sido lograda pelo megalomaníaco fundador, diretor e secretário-geral da ONG e por sua namorada brasileira; e medo por não ter mais condições financeiras de retificar o erro e voltar para o Brasil. Acabei sendo a opção mais óbvia para bode expiatório, já que ela dependia economicamente do citado casal.
Era a deixa que eu precisava para encontrar um emprego de verdade e abandonar aquela embarcação rota. Estranhamente, foi mais fácil e rápido do que eu imaginava. A demanda por nativos de qualquer língua da comunidade europeia era alta e, em questão de dias, já éramos funcionárias da Hewlett-Packard de Chennai, na costa leste da Índia.
Sim, nosso destino juntas parecia inacabado e, mais uma vez, dividíamos o mesmo ambiente profissional e doméstico (por dois meses chegamos a morar no mesmo apartamento!). Mas feridas recentes demoram a cicatrizar e nossa convivência provou ser impraticável, intelorável e impossível. Paramos de nos falar completamente, inclusive no trabalho, o que tornavam as reuniões de departamento patéticas: duas mulheres adultas, agindo de maneira infantil ao não dirigirem a palavra uma para a outra.
Mas, quando a sabotagem mútua no sétimo andar da HP começou, foi o sinal para desmontar a barraca e procurar novos horizontes...
Na verdade, não tão novo assim. Voltamos à velha, familiar e agradável Bangalore depois de sete tórridos meses de ausência, na capital de Tamil Nadu. E, obviamente, na mesma empresa de legendagem!
Por todos os deuses hindus, aquilo já estava se tornando ridículo.
Só podia ser carma! E dos ruins!
Mas eu não conseguia entender a lição que devíamos aprender juntas.
A simples menção do nome dela fazia o meu sangue ferver de ódio e os meus pensamentos passaram a girar em torno daquela criatura magricela de voz grave e risada irritante. Juro que eram horas e mais horas contando ao meu então namorado sikh o que ela tinha feito ou dito ou vestido ou comido no escritório. Tinha virado uma ideia fixa, uma obsessão, um vício na minha vida saber de e falar sobre AMV...
Até que um dia, ouvi da pessoa que havia nos contratado que ela estava deixando a empresa, coincidentemente na mesma data que eu havia mandava minha resignação.
Depois de três anos, nove meses e seis dias, eu estava farta da Índia, frustrada com a burocracia corrupta, cansada das constantes crises de diarreia e amargurada com a sufocante e conservadora cultura hindu.
E, em dezembro de 2007, embarquei no voo da British Airways com destino a Londres à moda Carlota Joaquina e, daquela terra, não levei nem o pó. Apenas a sensação de ter falhado na minha missão cármica com a brasileira de Porto Alegre que não representou nada antes nem depois da minha primeira estada no Sub-continente, mas que esteve íntima e cosmicamente ligada à minha vida por três longos anos e três diferentes empregos, (naturalmente) na Índia.
Nunca mais nos vimos, mas ela ainda visita meus pensamentos, em sonhos.
Sua passagem pelo meu caminho foi tão marcante que ela virou símbolo onírico do meu inconsciente e sempre aparece pra mim quando devo dar mais atenção ao meu negligenciado ego; pois egocêntrica é a melhor definição do meu carma brasileiro.
Não em três. E não depois de ter vivido anos no Sub-continente, encontrado meu marido punjabi e concebido uma filha meia-indiana. Nada acontece por acaso e até os homens da ciência concordam que "para toda ação existe uma reação de força equivalente, em sentido contrário". O que, em outras palavras (sânscrito, para ser mais exata), significa karma.
É só assim que posso definir minha estranha e conturbada relação com uma gaúcha que seguiu um caminho paralelo ao meu, por três longos anos e três diferentes empregos, (naturalmente) na Índia.
Estranho porque já havíamos nos conhecido no Brasil, superficialmente.
Eu sequer sabia o sobrenome dela; apenas que trabalhava numa organização que promovia “intercâmbios culturais” com a qual eu tinha feito os meus.
Até que um dia, a 14 mil quilômetros de distância, recebi um e-mail perguntando a minha opinião sobre a possibilidade de ela fazer parte da ONG indiana onde eu estava voluntariando em Bangalore. Não, não e não. Aquele era um barco mal-construído, putrefato e em avançado processo de afundamento, e seria uma estupidez subir a bordo naquele momento...
Semanas mais tarde e depois de usar o FGTS e todas suas economias, lá estava ela com um sorriso triunfante no rosto e sapatos inadequados para as ruas empoeiradas da capital de Karnataka.
Os dois duraram pouquíssimo tempo.
Assim que percebeu (com os próprios olhos) no que havia se metido, deliberada mas enganosamente, raiva e medo eram as únicas emoções visíveis dos seus pés à cabeça. Raiva por ter sido lograda pelo megalomaníaco fundador, diretor e secretário-geral da ONG e por sua namorada brasileira; e medo por não ter mais condições financeiras de retificar o erro e voltar para o Brasil. Acabei sendo a opção mais óbvia para bode expiatório, já que ela dependia economicamente do citado casal.
Era a deixa que eu precisava para encontrar um emprego de verdade e abandonar aquela embarcação rota. Estranhamente, foi mais fácil e rápido do que eu imaginava. A demanda por nativos de qualquer língua da comunidade europeia era alta e, em questão de dias, já éramos funcionárias da Hewlett-Packard de Chennai, na costa leste da Índia.
Sim, nosso destino juntas parecia inacabado e, mais uma vez, dividíamos o mesmo ambiente profissional e doméstico (por dois meses chegamos a morar no mesmo apartamento!). Mas feridas recentes demoram a cicatrizar e nossa convivência provou ser impraticável, intelorável e impossível. Paramos de nos falar completamente, inclusive no trabalho, o que tornavam as reuniões de departamento patéticas: duas mulheres adultas, agindo de maneira infantil ao não dirigirem a palavra uma para a outra.
Mas, quando a sabotagem mútua no sétimo andar da HP começou, foi o sinal para desmontar a barraca e procurar novos horizontes...
Na verdade, não tão novo assim. Voltamos à velha, familiar e agradável Bangalore depois de sete tórridos meses de ausência, na capital de Tamil Nadu. E, obviamente, na mesma empresa de legendagem!
Por todos os deuses hindus, aquilo já estava se tornando ridículo.
Só podia ser carma! E dos ruins!
Mas eu não conseguia entender a lição que devíamos aprender juntas.
A simples menção do nome dela fazia o meu sangue ferver de ódio e os meus pensamentos passaram a girar em torno daquela criatura magricela de voz grave e risada irritante. Juro que eram horas e mais horas contando ao meu então namorado sikh o que ela tinha feito ou dito ou vestido ou comido no escritório. Tinha virado uma ideia fixa, uma obsessão, um vício na minha vida saber de e falar sobre AMV...
Até que um dia, ouvi da pessoa que havia nos contratado que ela estava deixando a empresa, coincidentemente na mesma data que eu havia mandava minha resignação.
Depois de três anos, nove meses e seis dias, eu estava farta da Índia, frustrada com a burocracia corrupta, cansada das constantes crises de diarreia e amargurada com a sufocante e conservadora cultura hindu.
E, em dezembro de 2007, embarquei no voo da British Airways com destino a Londres à moda Carlota Joaquina e, daquela terra, não levei nem o pó. Apenas a sensação de ter falhado na minha missão cármica com a brasileira de Porto Alegre que não representou nada antes nem depois da minha primeira estada no Sub-continente, mas que esteve íntima e cosmicamente ligada à minha vida por três longos anos e três diferentes empregos, (naturalmente) na Índia.
Nunca mais nos vimos, mas ela ainda visita meus pensamentos, em sonhos.
Sua passagem pelo meu caminho foi tão marcante que ela virou símbolo onírico do meu inconsciente e sempre aparece pra mim quando devo dar mais atenção ao meu negligenciado ego; pois egocêntrica é a melhor definição do meu carma brasileiro.
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