quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Carma brasileiro

Pode ter sido coincidência, mas eu nunca acreditei em casualidades.
Não em três. E não depois de ter vivido anos no Sub-continente, encontrado meu marido punjabi e concebido uma filha meia-indiana. Nada acontece por acaso e até os homens da ciência concordam que "para toda ação existe uma reação de força equivalente, em sentido contrário". O que, em outras palavras (sânscrito, para ser mais exata), significa karma.

É só assim que posso definir minha estranha e conturbada relação com uma gaúcha que seguiu um caminho paralelo ao meu, por três longos anos e três diferentes empregos, (naturalmente) na Índia.

Estranho porque já havíamos nos conhecido no Brasil, superficialmente.
Eu sequer sabia o sobrenome dela; apenas que trabalhava numa organização que promovia “intercâmbios culturais” com a qual eu tinha feito os meus.

Até que um dia, a 14 mil quilômetros de distância, recebi um e-mail perguntando a minha opinião sobre a possibilidade de ela fazer parte da ONG indiana onde eu estava voluntariando em Bangalore. Não, não e não. Aquele era um barco mal-construído, putrefato e em avançado processo de afundamento, e seria uma estupidez subir a bordo naquele momento...

Semanas mais tarde e depois de usar o FGTS e todas suas economias, lá estava ela com um sorriso triunfante no rosto e sapatos inadequados para as ruas empoeiradas da capital de Karnataka.
Os dois duraram pouquíssimo tempo.

Assim que percebeu (com os próprios olhos) no que havia se metido, deliberada mas enganosamente, raiva e medo eram as únicas emoções visíveis dos seus pés à cabeça. Raiva por ter sido lograda pelo megalomaníaco fundador, diretor e secretário-geral da ONG e por sua namorada brasileira; e medo por não ter mais condições financeiras de retificar o erro e voltar para o Brasil. Acabei sendo a opção mais óbvia para bode expiatório, já que ela dependia economicamente do citado casal.

Era a deixa que eu precisava para encontrar um emprego de verdade e abandonar aquela embarcação rota. Estranhamente, foi mais fácil e rápido do que eu imaginava. A demanda por nativos de qualquer língua da comunidade europeia era alta e, em questão de dias, já éramos funcionárias da Hewlett-Packard de Chennai, na costa leste da Índia.

Sim, nosso destino juntas parecia inacabado e, mais uma vez, dividíamos o mesmo ambiente profissional e doméstico (por dois meses chegamos a morar no mesmo apartamento!). Mas feridas recentes demoram a cicatrizar e nossa convivência provou ser impraticável, intelorável e impossível. Paramos de nos falar completamente, inclusive no trabalho, o que tornavam as reuniões de departamento patéticas: duas mulheres adultas, agindo de maneira infantil ao não dirigirem a palavra uma para a outra.

Mas, quando a sabotagem mútua no sétimo andar da HP começou, foi o sinal para desmontar a barraca e procurar novos horizontes...

Na verdade, não tão novo assim. Voltamos à velha, familiar e agradável Bangalore depois de sete tórridos meses de ausência, na capital de Tamil Nadu. E, obviamente, na mesma empresa de legendagem!

Por todos os deuses hindus, aquilo já estava se tornando ridículo.
Só podia ser carma! E dos ruins!

Mas eu não conseguia entender a lição que devíamos aprender juntas.
A simples menção do nome dela fazia o meu sangue ferver de ódio e os meus pensamentos passaram a girar em torno daquela criatura magricela de voz grave e risada irritante. Juro que eram horas e mais horas contando ao meu então namorado sikh o que ela tinha feito ou dito ou vestido ou comido no escritório. Tinha virado uma ideia fixa, uma obsessão, um vício na minha vida saber de e falar sobre AMV...

Até que um dia, ouvi da pessoa que havia nos contratado que ela estava deixando a empresa, coincidentemente na mesma data que eu havia mandava minha resignação.

Depois de três anos, nove meses e seis dias, eu estava farta da Índia, frustrada com a burocracia corrupta, cansada das constantes crises de diarreia e amargurada com a sufocante e conservadora cultura hindu.
E, em dezembro de 2007, embarquei no voo da British Airways com destino a Londres à moda Carlota Joaquina e, daquela terra, não levei nem o pó. Apenas a sensação de ter falhado na minha missão cármica com a brasileira de Porto Alegre que não representou nada antes nem depois da minha primeira estada no Sub-continente, mas que esteve íntima e cosmicamente ligada à minha vida por três longos anos e três diferentes empregos, (naturalmente) na Índia.

Nunca mais nos vimos, mas ela ainda visita meus pensamentos, em sonhos.
Sua passagem pelo meu caminho foi tão marcante que ela virou símbolo onírico do meu inconsciente e sempre aparece pra mim quando devo dar mais atenção ao meu negligenciado ego; pois egocêntrica é a melhor definição do meu carma brasileiro.

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