domingo, 31 de outubro de 2010

O Cravo brigou com a Rosa...

Não me lembro ao certo quem cantava pra mim as melancólicas cantigas de ninar brasileiras, mas sempre quando embalo minha filha para dormir, é a minha avó materna que vem à mente.


E nenhuma dessas poesias cantadas me deixa mais triste do que a história sobre duas flores que não se davam bem: uma canção popular que deve ter sido inspirada na natureza, já que é difícil encontrar as duas espécies vegetais no mesmo ambiente e sem a interferência do Homem.

Enquanto os craveiros são originários da Europa e precisam de certas condições de solo e clima para se reproduzirem, as roseiras são uma das plantas mais antigas e difundidas do mundo, tendo sido encontradas nos jardins asiáticos, mais de cinco mil anos atrás.

Enquanto o cravo conquistou simbolismos altruístas e libertários (como na revolução portuguesa de 1974), a rosa é uma flor solitária (na maioria das vezes), de poucas pétalas e caule espinhoso, além de ser culturalmente associada às emoções mais intensas do coração.
Como a minha avó e a canção que (possivelmente) me cantava, também tenho uma relação conjugal complicada.

Somos duas espécies de famílias diferentes que produziram uma geração híbrida e delicada, única do gênero. Vivemos artificialmente numa estufa europeia, afastados de nossos habitats de origem e incapazes de florescer sob as condições geográficas e climáticas do outro. Simbolizamos ideias opostas: enquanto um personifica os valores da família e da religião, o outro é a mais pura manifestação da solitude, de uma forma de vida sem raízes e com poucas responsabilidades.

Somos o cravo e a rosa brigando de uma sacada, da sala, da cozinha, do quarto e até de dentro do carro. Somos um cravo (com o orgulho) ferido e uma rosa despedaçada (no chão). Somos um cravo doente (de raiva e frustração) e uma rosa pondo-se a chorar (de ódio pela vida gregária em que se meteu).

E assim como minha avó, eu também ignorava que havia outros quatro versos nesta cantiga. Não sei se expressam o temor por um desfecho trágico para essas duas flores tão diferentes, tornando seu final mais feliz; ou se fazem uso do inevitável epílogo para toda estória infantil, quando envolve uma relação tão cheia de paixões fortes. Mas o fato é que ainda há esperança para esse cravo-da-Índia e essa rosa-brava.
“[...]O cravo fez serenata
 A rosa foi espiar
As flores estão felizes
Porque eles vão casar.”

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O dente (doce) de leite

No final do século XIV, surgiu uma expressão entre a aristocracia inglesa para se referir ao forte desejo que alguns de seus membros possuíam por alimentos e iguarias adocicadas, o sweet tooth (literalmente traduzido como o dente doce).

Mas, na verdade, isso não é nem recente nem limitado à classe nobre da sociedade.

Dizem os evolucionistas da espécie humana que, antes mesmo de qualquer civilização rudimentar ter sido formada, os caçadores e coletores pré-históricos já apresentavam uma visível predileção pelas doçuras oferecidas pela natureza, como maçãs, pêras, bagas silvestres e mel. E a razão não está na cara, mas na camada adiposa da barriga: se era necessário gastar tanto tempo e esforço na procura de alimentos, esses deveriam conter alto valor calórico.

Curiosamente, o doce é um dos mais fracos dos cinco gostos básicos do nosso paladar, enquanto que o amargo é o mais forte. De novo, a culpa é de nossos primos de neandertal que, durante suas buscas por comida, foram percebendo que o amargor sentido ao mastigarem certas plantas estava associado à presença de toxinas potencialmente nocivas à saúde. Dessa forma, fomos criando uma baixíssima tolerância para o sabor amargo e nossas palilas gustativas, um insaciável desejo por doces, balas, bolos, tortas, pudins, chocolates...

E tudo começa pelo morno e adocicado leite materno, farto de lactose. Ou pelo leite em pó, produzido e fabricado para suprir absolutamente todas as carências dos recém-chegados ao mundo dos açúcares. Mas é o próximo estágio no desenvolvimento palatal da criança o que mais assuta: a fase das papinhas.

Felizmente, foi mais fácil que mamão com açúcar e nada parecia causar mais excitação nela do que saborear uma fruta madura e esmagadinha, entregue a colheradas numa boquinha ávida por novas experiências. O problema, mesmo, foi introduzir qualquer outro tipo de comida que não fosse tão doce.

E eu tentei de tudo com a minha filha, desde mingau de arroz, purê de batata, sopa de cenoura, até os mal-cheirosos produtos industrializados para bebês. Ela simplesmente rejeitava qualquer coisa salgada.

Mas, numa inesperada janta em família, a minha menina acabou provando um pouco do nhoque que os pais comiam e, a partir de então, passou a quase “comer” qualquer refeição que também estivéssemos compartilhando. Quase porque ela bem que tentava morder e quebrar o alimento, mas faltavam os dentes e sobravam caretas para concluir, sofregamente, tal tarefa. Onze meses e a minha filha continuava tão banguela quanto quando tinha nascido, e eu continuava dando bolachinhas (inclusive recheadas com chocolate belga), para fazê-la praticar o exercício da mastigação.

Mas, numa inesperada conversa pelo Skype com a família, minha mãe perguntou o que ela estava comendo, sentada no chão, debaixo da mesa com tampo de vidro da sala de jantar. Naquele momento, ao sentir uma saliência cortante na não-mais-tão lisa gengiva inferior, eu sabia.

Sabia que ela estava ficando pronta para saciar, com plenitude e destreza, seu desejo ancestral por doce.

E assim despontou o primeiro dente de leite da minha filha. E tenho minhas suspeitas que é o sweet tooth.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

À beira de um ataque (psicótico) de nervos

Derrick Bird era um motorista de táxi no vilarejo de Cumbria, noroeste da Inglaterra, por mais de vinte anos. Considerado uma pessoa simples e agradável pelos seus colegas de trabalho, ele tinha 52 anos, era divorciado com dois filhos, morava sozinho e possuía porte de arma há mais de duas décadas.


Numa não-tão bela manhã de junho de 2010, ele saiu de casa carregando sua espingarda de caça e seu rifle calibre .22 com mira telescópica, durante uma trágica crise psicótica que acabaria com a vida de treze pessoas.

Durante pouco mais de três horas, sua aberração de conduta em relação aos padrões dominantes da sociedade cumbriana teve início com a morte do seu irmão gêmeo, David, e terminou com a própria, num lugar remoto perto da costa do Mar da Irlanda.

Familiares, amigos, aficcionados por notícias sensasionalistas da imprensa e profissionais da mente humana tentam entender as razões que desencadearam a falha no autocontrole, no comportamento da afetividade, no raciocínio e no senso da realidade de Derrick Bird. E já se especula que o vil metal tenha sido o que, de fato, puxou o gatilho daquelas armas, uma vez que o advogado da família e responsável pelo testamento da mãe de Derrick figurava entre as dezenas de vítimas.

No entanto, não importa muito se tudo aconteceu por causa de uma predisposição genética ou por fatores ambientais, orgânicos ou psicossociais. Desde o surgimento da literatura gótica no século XVIII (na mesma Inglaterra do taxista Bird), com O Castelo de Otranto de Horace Walpole, as psicopatologias (e seus autores) têm se tornado obras de culto no mundo inteiro. Existe inclusive um passeio turístico pelas ruas de Whitechapel, no centro de Londres, onde um certo Jack estrangulou e estripou onze prostitutas por volta de 1888.

Mas hoje, graças aos filmes de ação como Sr. & Sra. Smith (em que, ironicamente, a protagonista é embaixadora das Nações Unidas fora das telas), aos games violentos e à proliferação de blogs do tipo DIY (do it yourself = faça você mesmo), é possível conquistar as manchetes dos jornais mais importantes do planeta e sair do anonimato de uma existência medíocre em questão de horas.

Eu descobri uma combinação ideal de todos os fatores acima mencionados para me manter constantemente à beira de um surto psicótico:

1. Engravide do seu namorado de uma cultura e religião completamente diferentes da sua;
2. Case com esse mesmo namorado de uma cultura e religião completamente diferentes da sua;
3. Conheça os pais extremamente religiosos e conservadores do seu agora marido de uma cultura e religião completamente diferentes da sua;
4. Vá viver no exterior sozinha com sua filha e seu marido de uma cultura e religião completamente diferentes da sua, para ficar longe dos seus sogros extremamente religiosos e conservadores;
5. Passe sete meses cozinhando, limpando casa e cuidando sozinha da sua filha, com uma ajuda mínima do seu ocupado marido de uma cultura e religião completamente diferentes da sua;
6. Escute semanalmente dos seus sogros extremamente religiosos e conservadores o que fazer e não fazer na criação de sua filha;
7. Veja seu ocupado marido de uma cultura e religião completamente diferentes da sua passar as noites de sexta-feira com os colegas de trabalho fazendo “networking”;
8. Seja a primeira a levantar e a última a dormir na família, mesmo nos finais de semana e feriados, porque seu ocupado marido de uma cultura e religião completamente diferentes da sua precisa descansar;
9. Recupere os quilos da gravidez que você demorou a perder, pois seu ocupado marido de uma cultura e religião completamente diferentes da sua não lhe dá tempo pra você mesma nem tem condições de pagar uma babá, e a comida se tornou seu único prazer;
10. Assista ao seu ocupado marido de uma cultura e religião completamente diferentes da sua gastar as economias num carro novo, aumentando, assim, suas chances de voltar a morar com seus sogros extremamente religiosos e conservadores.

Durante a TPM e tendo-se a predisposição genética certa, essa é uma fórmula infalível para despertar seu psicopata adormecido.
http://mulheresimpossiveis.wordpress.com/2008/11/03/como-matar-o-seu-marido/


Obs.: Para as mulheres que já saíram da aceitável beira e estão prestes a ter uma crise psicótica, o texto acima é terminantemente desaconselhável, pois esse post é pura e simplesmente um desabafo, não uma incitação pública ao crime.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

The Baby Group

Ah... Se eu soubesse que era tão saudável para nós duas, eu teria me juntado ao grupo assim que chegamos em Oxfordshire, sete meses atrás.


Mas é difícil para alguém, que desde a idade adulta nunca possuiu nada permanente além do que coubesse numa mala preta de 23 quilos, conseguir cortar o cordão emocional com a criatura mais intrigante que já entrou em sua vida.

Nem mesmo a minha mãe entendeu meu apego àquele velho e calejado modelo de poliéster da Primicia, no aeroporto de Beagá em 2008. Depois de quatro longos anos no exterior, sem Skype nem MSN, eu estava mais preocupada em avistar minha fiel companheira na esteira do terminal doméstico do que atravessar a única porta envidraçada que nos separava e abraçá-la com toda a força de nossa saudade.

Imagino que deve ter parecido um gesto de fria e insensível indiferença ao seu amor materno, mas foi apenas um ato cheio de um outro tipo de sentimento em relação à única constância na minha vida, naquele tempo todo fora do Brasil.

Hoje, eu não daria muita importância para ela em aeroporto algum do mundo, pois tenho algo mais precioso para carregar nos braços. E, pra falar a verdade, ela anda meio encostada desde que a minha pequena família de três se estabeleceu no vilarejo de Kidlington.

Nesses últimos sete meses, é da minha filha que não tiro os olhos nas saídas ao supermecado e nas visitas aos amigos; é dela que me tornei inseparável, vinte-e-quatro horas por dia, sete dias por semana. Sim, aquela mulher livre e independente foi desaparecendo, à medida que a minha mais nova bagagem de mão foi crescendo e aprendendo a gritar e a fazer manha.

Durante esses sete meses, acho que eu precisava passar por todos os bons e maus momentos da maternidade de forma intensa. Eu precisava possuir algo até a total exaustão; até a completa saciedade; até me sentir como Natalie, a personagem de Rowan Coleman, em “The Baby Group”:

Now the capable person she once was is trapped inside a crazy’s woman body, longing for just one decent night’s sleep and words of more than one syllable.
Foi essa inglesa de Hertfordshire e Jenna (a assistente social do município que ouviu, por mais de uma hora, muitas das minhas recentes estórias) que me incentivaram a participar do grupo de mães-e-bebês do Centro Infantil Kaleidoscope. Por duas horas semanais, esse conjunto heterogêneo de pessoas se assemelha muito ao instrumento físico e repleto de espelhos que dá nome ao lugar e que, a cada momento, apresenta diferentes e interessantes combinações. Mas que, no íntimo, é formado pelos mesmos elementos.

Ah... Se eu soubesse que éramos todas iguais em nossos medos, sentimentos e inexperiências, eu teria confessado minha inabilidade de possuir sozinha assim que chegamos em Oxfordshire, sete meses atrás.

Eu teria entendido que liberdade e independência são as melhores heranças que a minha filha pode receber da mulher que eu era, antes de abandonar o velho e calejado modelo de poliéster da Primicia no depósito de casa.

Para conhecer mais sobre a autora, visite o site:

domingo, 3 de outubro de 2010

A Tragédia do Pós-Parto no Reino de William

To pee or not to pee...
Eis a minha questão nefrálgica: será mais nobre
Na preguiça de levantar da cama quentinha sofrer as pontadas
Com que a bexiga cheia e enfurecida me alveja,
Ou insurgir-me contra um mar úrico de provações
E, sem luta, pôr fim à vontade de fazer xixi? Dormir: não mais.
Dizer que acabei com uma corrida ao banheiro a angústia
E as mil pelejas naturais - herança da mulher grávida:
Expelir para dormir... é uma consumação
Que bem merece e desejo com fervor.
Dormir... Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:
Pois quando livre do líquido excrementício,
Novamente no repouso do leito o sonho que eu tenha
Deve fazer-me hesitar: eis a suspeita
Que impõe tão curta vida ao meu fluido renal.
Quem sofreria as incontinências de esforço,
O agravo do cálculo, a afronta das nefropatias,
Todos os tormentos de uma infecção urinária,
As delongas nas filas para os banheiros públicos,
As piadas que dos amigos nulos tenho de suportar
O mérito paciente, quem o sofreria,
Quando alcançaria a mais perfeita quitação
Disfarçada atrás de uma moita? Quem levantaria peso,
Gemendo e suando sob a vida pós-parto,
Se o receio de alguma coisa da bexiga escapar,
–Essa região desconhecida cujos limites
Jamais mulher alguma conquistou de volta –
Não me pusesse a voar para uma confortável peça de louça?
O pensamento assim me acovarda, e assim
É que se cobre meu corpo aquecido
Com o frio da madrugada e muita melancolia;
E desde que me prendam tais cogitações,
Viagens de carro a destinos distantes
Desviam-se de rumo e cessam nos postos de gasolina
Para outro tipo de ação.

Baseado na tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ser_ou_n%C3%A3o_ser