terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Je travaille, donc je suis?

Na metade do século XVII, René Descartes derrubou os alicerces dos sistemas filosóficos clássico e medieval, ao inserir a dúvida em todo o conhecimento humano até então acumulado e (naquela época) disseminado pela Igreja.

Para o pensador francês, as coisas não existiam simplesmente porque tinham de exisitir mas porque podiam ser provadas. E, ao relacionar a existência do próprio eu com seu apetite pelo conhecimento e sua capacidade de duvidar e pensar ("puisque je pense, j'existe" e "je pense, donc je suis"), Descartes acabou fundando as bases da filosofia moderna e da ciência contemporânea.

O que o francês não poderia imaginar é que sua teoria poderia ser desvirtuada, quatro séculos mais tarde, acidental e desintencionadamente por um não-pensador não-ocidental.

Há pouco mais de três semanas em nossa terceira cidade inglesa (desde março de 2010, tivemos três diferentes residências na Inglaterra), meu marido já começou a receber cartas na casa que alugamos e nos mudamos há apenas 11 dias! Comentei com ele minha surpresa e ouvi como resposta: "It's because I work".

Não sou graduada em filosofia e não conheço seus jargões com profundidade, mas passei a me questionar se a dedução lógica dessa não-longamente-pensada afirmação seria, de fato, um novo aforismo desta realidade não somente minha, mas da sociedade ultra-pós-moderna em que vivemos: "Trabalho, logo existo".

Possuo RG, CPF, passaporte e conta bancária (ou seja, posso provar minha existência), mas desde que decidi cuidar da minha filha em tempo integral cerca de dois anos e três meses atrás, tenho passado por aqueles momentos constrangedores de preencher o espaço em branco para a profissão em formulários e fichas cadastrais com o tão pouco lisonjeiro 'dona-de-casa'. Seria mais correto dizer 'mãe-esposa-e-dona-de-casa', mas não sei se o termo seria amplamente aceito. É fato que os afazeres domésticos e conjugais e a maternidade consomem todas as horas do meu dia e parte das noites, mas continuo a inexistir para o resto do mundo porque são atividades que não trazem retorno financeiro, ainda que consigamos economizar bastante ao não contratarmos cozinheiras, faxineiras e babás!

Também não seria nada fácil comprimir numa única linha que sou formada em jornalismo mas dispenso algumas horas por semana como autônoma para uma empresa de legendagem de filmes e séries de TV. Além disso, será que poderia ser considerado como uma profissão? Para mim, soa só como um trabalho...

E as dúvidas sobre minha existência permanecem, já que é um trabalho irregular e mal remunerado. Recebo apenas o suficiente para me dar um presente de vez em quando, com meu próprio e suado dinheirinho! Até os aposentados (já tão socialmente discriminados) têm melhor reputação que as donas-de-casa. Eles, pelo menos, trabalharam e geraram renda por uns 30 anos e a quantia que passaram a receber mensalmente (mesmo que pequena) ainda faz girar as engrenagens da economia.

Assim, após verificar 'as evidências reais e indubitáveis acerca do fenômeno', analisá-las e sintetizá-las, a minha conclusão é que o aforismo está parcialmente correto. A verdade nua e crua do século XXI é: "Trabalho e ganho o bastante para pagar as contas, logo existo. E recebo cartas".

2 comentários:

Anônimo disse...

Nan, agora, aqui, não usamos mais dona de casa e sim "do lar", talvez subentenda-se mais valorização...não sei.
Eunara

Ana Dos Santos disse...

nos estados unidos a cultura criou um termo que eu acho que é universal: "the do society"! nada mais capitalista!