Nos desencontramos deste mundo por apenas dois anos.
Mais precisamente, 671 dias separam a morte de Ricardo Eliécer Neftali Reyes Basolato e o dia do meu nascimento, em julho de 1975.
Bem, talvez seja muita presunção comparar minha vida pouco ilustre com a do jovem chileno que se tornaria Pablo Neruda. Fomos, sem dúvida nenhuma, protagonistas de estórias bem diferentes, mas tivemos, sim, algo em comum: uma vida muito intensa.
E a minha começou bem cedo.
Passei os primeiros anos da minha infância num lugar quente e rico em sabores no Nordeste brasileiro. E nas ruas ainda calmas de Recife eu aprendi a andar de bicicleta e a subir em árvores, gozando de uma liberdade e segurança agora muito raras nas capitais do Brasil.
No entanto, tais direitos logo foram perdidos aos seis anos de idade, quando toda a família voltou ao seu estado de origem e se estabeleceu de vez em Porto Alegre. E, mesmo morando num espaçoso apartamento de três dormitórios e estando mais alta que qualquer árvore das redondezas (no décimo quarto andar do nosso edifício), meu mundo havia se tornado claustrofóbico e inesperadamente frio.
Foi quando as "travessuras" de uma criança entediada e inconsequente começaram... Além dos clássicos trotes telefônicos às pizzarias da cidade envolvendo os coitados dos vizinhos, eu passei a jogar coisas da janela da nossa casa no Bom Fim. E qualquer coisa podia ser um objeto da minha pervertida diversão: moedas, cubos de gelo, camisinhas cheias de água, bergamotas que minha avó trazia do sítio, os discos de vinil do meu pai e até ovos e latas vazias de milho verde!
Eu podia ter seguido com essa brincadeira (engraçada só para mim) por muitos anos, mas fui flagrada pelo zelador do prédio ao lado do nosso e meus pais passaram a ficar mais atentos aos meus atos (de quase) vandalismo. Só não descobriram que, fora de casa e em volta do quarteirão, eu continuava com outro dos meus passatempos maldosos favoritos: golpear as pessoas que caminhavam por nós (sim, nessa época, eu já tinha reunido uma pequena gangue) com uma antena de rádio quebrada e escondê-la rapidamente na manga das roupas que usava.
Eu sei. É terrível e chocante e eu mesma me sinto muito envergonhada, mas igualmente intrigada. Não consigo entender o que aconteceu com a criança feliz que antecedeu aquela adolescente perversa. Será que a perda da liberdade me transformou num monstro?
Por mais simplista que possa parecer, a explicação soa bastante razoável e hoje, depois de ter virado a página desse meu passado há mais de 20 anos e ter me tornado "a true law abiding citizen", me vejo repetindo o antigo padrão de comportamento. Não, não jogo mais nada da janela (nem sequer um fio de cabelo pelo vidro do carro) e não imagino que fim tenha levado a tal antena de rádio, mas voltei a golpear as pessoas ao meu redor (a minha própria família), com palavras tão cruéis e maldosas quanto as batidas fortes e certeiras de um pedaço de metal.
E, mais uma vez, não consigo entender o que aconteceu com aquela mulher que viu pores do sol em diferentes partes do mundo, que andou de camelo e de elefante e que mergulhou os pés descalços em tantos mares para ela se transformar nessa criatura constantemente amarga e ressentida. Será que o casamento e a maternidade também me fazem sentir claustrofóbica e inesperadamente fria? Será que o término da minha livre vida de solteira e o início da outra como consorciada e mãe me entendiam tanto e me deixam inconsequente? Será que vou precisar de algum flagrante para cessar meus atos perversos?
Eu podia procurar mais detalhes na biografia de Neruda e tentar descobrir o que deu errado em seus dois primeiros casamentos e como ele superou o terror do que viu durante a Guerra Civil Espanhola...
Ou talvez pudesse simplesmente confessar a Pablo (e a quem quisesse me ouvir) que eu também vivi e aprontei muito, mas que ainda não aprendi a aceitar as mudanças da vida.
Mais precisamente, 671 dias separam a morte de Ricardo Eliécer Neftali Reyes Basolato e o dia do meu nascimento, em julho de 1975.
Bem, talvez seja muita presunção comparar minha vida pouco ilustre com a do jovem chileno que se tornaria Pablo Neruda. Fomos, sem dúvida nenhuma, protagonistas de estórias bem diferentes, mas tivemos, sim, algo em comum: uma vida muito intensa.
E a minha começou bem cedo.
Passei os primeiros anos da minha infância num lugar quente e rico em sabores no Nordeste brasileiro. E nas ruas ainda calmas de Recife eu aprendi a andar de bicicleta e a subir em árvores, gozando de uma liberdade e segurança agora muito raras nas capitais do Brasil.
No entanto, tais direitos logo foram perdidos aos seis anos de idade, quando toda a família voltou ao seu estado de origem e se estabeleceu de vez em Porto Alegre. E, mesmo morando num espaçoso apartamento de três dormitórios e estando mais alta que qualquer árvore das redondezas (no décimo quarto andar do nosso edifício), meu mundo havia se tornado claustrofóbico e inesperadamente frio.
Foi quando as "travessuras" de uma criança entediada e inconsequente começaram... Além dos clássicos trotes telefônicos às pizzarias da cidade envolvendo os coitados dos vizinhos, eu passei a jogar coisas da janela da nossa casa no Bom Fim. E qualquer coisa podia ser um objeto da minha pervertida diversão: moedas, cubos de gelo, camisinhas cheias de água, bergamotas que minha avó trazia do sítio, os discos de vinil do meu pai e até ovos e latas vazias de milho verde!
Eu podia ter seguido com essa brincadeira (engraçada só para mim) por muitos anos, mas fui flagrada pelo zelador do prédio ao lado do nosso e meus pais passaram a ficar mais atentos aos meus atos (de quase) vandalismo. Só não descobriram que, fora de casa e em volta do quarteirão, eu continuava com outro dos meus passatempos maldosos favoritos: golpear as pessoas que caminhavam por nós (sim, nessa época, eu já tinha reunido uma pequena gangue) com uma antena de rádio quebrada e escondê-la rapidamente na manga das roupas que usava.
Eu sei. É terrível e chocante e eu mesma me sinto muito envergonhada, mas igualmente intrigada. Não consigo entender o que aconteceu com a criança feliz que antecedeu aquela adolescente perversa. Será que a perda da liberdade me transformou num monstro?
Por mais simplista que possa parecer, a explicação soa bastante razoável e hoje, depois de ter virado a página desse meu passado há mais de 20 anos e ter me tornado "a true law abiding citizen", me vejo repetindo o antigo padrão de comportamento. Não, não jogo mais nada da janela (nem sequer um fio de cabelo pelo vidro do carro) e não imagino que fim tenha levado a tal antena de rádio, mas voltei a golpear as pessoas ao meu redor (a minha própria família), com palavras tão cruéis e maldosas quanto as batidas fortes e certeiras de um pedaço de metal.
E, mais uma vez, não consigo entender o que aconteceu com aquela mulher que viu pores do sol em diferentes partes do mundo, que andou de camelo e de elefante e que mergulhou os pés descalços em tantos mares para ela se transformar nessa criatura constantemente amarga e ressentida. Será que o casamento e a maternidade também me fazem sentir claustrofóbica e inesperadamente fria? Será que o término da minha livre vida de solteira e o início da outra como consorciada e mãe me entendiam tanto e me deixam inconsequente? Será que vou precisar de algum flagrante para cessar meus atos perversos?
Eu podia procurar mais detalhes na biografia de Neruda e tentar descobrir o que deu errado em seus dois primeiros casamentos e como ele superou o terror do que viu durante a Guerra Civil Espanhola...
Ou talvez pudesse simplesmente confessar a Pablo (e a quem quisesse me ouvir) que eu também vivi e aprontei muito, mas que ainda não aprendi a aceitar as mudanças da vida.
Um comentário:
Fêeee!!! Eu lembro até hoje dessas vandalismos adolescentes!!!Esses dias entrei em crise de consciência, porque além dos trotes, de jogar coisas pela janela (a antena entrou pra História!!!)nós pegávamos chocolate no supermercado...até que fomos pegos! O que dizer disso tudo? Hormônios em revolta? Falta do que fazer, testar limites? Pura adolescência! E segue a vida! beijos
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