quarta-feira, 31 de março de 2010

O chapatti de cada dia

É feito de farinha integral de trigo de grão duro (o mesmo usado para fazer a semolina para a pasta italiana), água e sal. É fino, redondo e achatado, parecido com uma panqueca, de diversos diâmetros, mas a principal fonte de carboidrato no norte e noroeste da Índia. É grelhado numa frigideira (tawa) sem óleo e, posteriormente, servido com a deliciosa e calórica manteiga clarificada (ghee) e consumido com vários tipos de lentilhas, feijões e legumes.



O pão indiano de cada dia é o chapatti. E, a partir dele e daqueles três ingredientes básicos, foi sendo criada uma variedade de outros pães, igualmente de forma achatada e arredondada.


O roti é feito quase da mesma maneira, mas com farinha de trigo branca. Uma variação é o rumali roti, trazido para a Índia pelos conquistadores Moghuls, e cujo nome, em urdu, significa lenço de bolso. Nada melhor para descrevê-lo, uma vez que esse pão assado em um forno de barro (chamado tandoor) é enorme e servido dobrado tantas vezes que poderia caber no bolso de um paletó.


A paratha (parantha ou ainda porotha) é frita e pode ser recheada com pequenos pedaços de batata cozida, rabanete, couve-flor ou paneer (um tipo de queijo ricota); ao contrário do chapatti, não é acompanhada de leguminosas, mas de alguma variedade de pickle apimentadíssimo (de manga, tomate...).


A kulcha é típica do estado de Punjab, também recheada com batata, mas assada no tandoor e feita com uma farinha de trigo super refinada (a maida flour) e servida com um molho de grão de bico (conhecido como chole ou chana masala).


Ainda mais comum com essa leguminosa é a bhatoora, e os dois juntos formam um clássico prato, criado nas ruas movimentadas de Nova Déli: o chole bhature. É feita com a farinha maida, iogurte, gordura e fermento, e frita em bastante óleo até inchar e parecer uma bola de futebol.


O naan pode ser considerado um parente do árabe pita e é o mais próximo do nosso conceito ocidental de pães, pois é amassado com fermento, colocado à parte para a massa crescer e, depois, assado. Servido ainda quente e com uma generosa porção de manteiga ou ghee e alho é de lamber os dedos. Isso, por sinal, é típico na cultura indiana. Mas dá para entender. Ainda mais se outras inúmeras delícias gastronômicas do sul daquele país, à base de arroz, também fossem nomeadas.


Com tantas variedades e sabores e temperos, era improvável que uma brasileira vegetariana não experimentasse e abusasse do que a culinária da Índia tinha a oferecer por longos 3 anos, 8 meses e 6 dias. Até que a curiosidade se transformasse em gula... Até que o segundo pecado capital do cristianismo levasse à destruição de 28 anos de um organismo acostumado apenas à sal e pimenta... Até que quele período de vício fosse punido e castigado pelas próprias divindades hindus e quase me levasse à condenação... Até que eu fosse obrigada a comer o chapatti que o Diabo tinha amassado, para redimir meus pecados.

Minha Akka indiana

Ela era recém-casada, de outro estado indiano (Andhra Pradesh) e morava a pouco tempo em Bangalore, quando, a caminho de casa num dia igual a qualquer outro, ela ficou intrigada com a minha presença na frente do escritório da FSL e entrou para saber mais sobre a organização. Foi amizade à primeira conversa, e nossa relação fez jus ao nome dela: Kanthi significa afeto.



A minha era uma advogada um ano mais velha que eu, mas já presa no sufocante emaranhado das tradições hindus. Em outras palavras, depois de um casamento arranjado, através de um site matrimonial, ela tinha desistido da carreira profissional, vivia da mesada do marido e não sabia o que fazer com tanta inteligência e tempo livre.


Naquele dia igual a qualquer outro, ela estava se tornando minha primeira “team leader”, inspirada pelo meu exemplo de voluntarismo. Pouco inspirador foi o treinamento dado (por causa do meu inglês fraco e da minha falta de experiência na função) e as experiências passadas na ONG. Mas a amizade restitiu a todos os abalos sísmicos e tsunamis que atigiram a Índia em 2004, 2005, 2006, 2007...


Não apenas uma amiga, a Kanthi foi uma intérprete da cultura daquele estranho e exótico país. Foi ela quem me ensinou a tirar os sapatos e a colocá-los, asseadamente, ao lado da porta da frente, antes de adentrar qualquer casa ou templo indianos. Foi ela quem me ajudou a preparar dosas e a apreciá-las com muito ghee. Foi ela quem me falou das divindades hindus e me apresentou o mais rechonchudo deles (o Lord Ganesh). Foi ela quem primeiro pintou meu rosto no festival das Cores (Holi) e me explicou sobre o das Luzes (Diwali). Foi ela quem me alertou sobre o comportamento dos homens da Índia e o que não esperar de um relacionamento com eles.


Não apenas uma amiga indiana, a Kanthi foi a irmã mais velha que eu nunca tive, minha Akka, sempre cheia de conselhos e cuidados. Não apenas uma irmã de sangue, mas de afinidades, compartilhando os mesmos empregos, as mesmas cidades, as mesmas ideias.


Muitas foram as vezes em que me considerei menos brasileira que a Kanthi. Ou o contrário: tinha a certeza de que ela havia nascido no lugar errado, no país errado, na cultura errada. Quanta inteligência e vontade de viver disperdiçadas num apartamento de dois quartos em Banaswadi e num casamento de conveniências.


Talvez o erro fosse no tempo. Talvez a Índia do século XXI não tenha chegado, de fato, para as mulheres da Índia. Talvez existissem muitas outras Kanthis pelo país, confinadas, resignadamente, a uma vida de escolhas limitadas. Com um destino marcado já no nome. A minha, pelo menos, ao cruzar o meu caminho naquele dia igual a qualquer outro, pôde escolher uma irmã de afeto. Nos e-mails e cartões que recebo da Kanthi, sou sempre a Tangui, a irmã mais nova.

Éramos muitas

No começo de abril, éramos três voluntárias na FSL. Eu, como coordenadora dos acampamentos de curta duração; a Peggy, como coordenadora dos projetos mais longos; e a Sabine, uma ex “team lider” com já alguma experiência na organização e perita em reclamar das coisas da Índia e das “curry leaves”, típicos temperos da culinária de Karnataka.



Éramos três ocupando dois quartos no segundo piso do prédio da ONG: a Peggy – volunatária mais antiga - sozinha em um; eu e a Sabine, no outro. E foram aqueles 40 centímetros que separavam nosssos colchões no chão que, de fato, nos aproximaram. Além de dividir o mesmo espaço físico, passamos a compartilhar confidências, trocadas debaixo do barulhento ventilador de teto.



No fim de abril, chegou a Astrid e, em maio, a Kanako. Éramos quatro num único quarto. Pelo menos, tínhamos mais em comum do que aqueles poucos metros quadrados: o yoga, e bem cedo pela manhã. Era nossa maneira de transcender os problemas diários que se avolumavam (quem seria a primeira no chuveiro; quem limparia o banheiro naquele dia; quem faria as compras da semana; quem cuidaria do almoço e da louça suja) e acalmar nossas mentes e corpos cansados de dormir apertados num colcão sobre o chão duro.


Em junho, a Kanako saiu para liderar um acampamento e chegou a Mareike. No final daquele mesmo mês, era a vez da Sabine voltar pra casa e de recebermos a Uli. No início de julho, perdi a conta... Eram muitos os nomes e rostos novos para memorizar por apenas alguns dias ou semanas. Eram sotaques diferentes, nacionalidades diferentes e roupas diferentes deixadas no varal do segundo piso do prédio da FSL.


Quando o Thiemo e o Charlie (namorado da Astrid) finalmente chegaram de visita, trocamos de quarto com a Peggy e passamos, os quatro, a dividir o mesmo chão e as mesmas quatro paredes. Foi estranho... Quase incestuoso... Mas conseguimos desenvolver estratégias para não atrapalhar o casal vizinho. Quem não gostou muito da troca foi a Peggy. Era ela quem precisava lidar com as voluntárias que chegavam e saíam.


Mas, no escritório da organização, continuávamos três: eu, a Peggy e, agora, a Astrid.
E tínhamos tanto em comum que, no final de agosto, eu e a Astrid deixamos nossos colchões no quarto apertado da ONG e fomos morar sozinhas...

Por pouco tempo. Em dezembro, já éramos muitos.

Piada sem graça

Dia dos Bobos quando embarquei no vôo da British Airways, de Viena, com escala em Lodres, rumo a Mumbai, na Índia. Só tinha me dado conta que era primeiro de abril ao receber meu cartão de embarque com o número do portão e do meu assento.
Soava menos como uma piada e mais como um mau presságio para alguém que nunca tinha acreditado em coincidências e que estava indo para a terra que havia inventado a palavra “carma”.

Minha ansiedade mal cabia no minúsculo banheiro do avião. Não lembro se consegui dormir durante o vôo, mas lembro bem do pavor ao ver o estado do aeroporto internacional de Mumbai, ao sentir o calor do sub-continente asiático e ao me deparar com um mundo desconhecido e com palavras incompreensíveis. Foram horas de espera pelo meu vôo de conexão até Bangalore, capital do estado de Karnataka, meu destino final.


Mas não havia rostos familiares me esperando no saguão de desembarque. Na verdade, não havia ninguém me esperando. Com pudor de acordar o secretário geral da ONG no meio da madrugada, não avisei ninguém sobre o horário da minha chegada. Só não estava mais sozinha, porque minha fiel companheira de tantas aventuras (minha Samsonite de 23 litros que me acompanhava desde 1996) estava sólida e resistente ao meu lado. E foi sentada nela que liguei do telefone público do aeroporto para a FSL e balbucei meu nome num inglês paupérrimo e com sotaque latino.


Estava tão nervosa em atender às expectativas feitas a partir do meu currículo e ansiosa em agradar que não consegui descansar da viagem. Afinal de contas, eles haviam pagado pela minha passagem e eu tinha que mostrar algum trabalho e muita gratidão. E por isso, sem pensar muito nas consequências, acabei assinando (naquela mesma noite do Primeiro de Abril) um contrato ilegal de trabalho com a ONG, cuja quebra de cláusula me obrigava a reimbolsar todos os gastos feitos pela organização, em espécie e com juros.


Na manhã seguinte, não era mais Dia dos Bobos, mas eu me sentia uma completa idiota.
E toda aquela situação soava menos como um mau presságio e mais como um carma a ser pago, parceladamente, nos meus dez meses seguintes.

Bharat


Neste dia Primeiro de Abril de 2010, faz seis anos do meu (re) encontro cármico com a Índia. Depois do Brasil, foi o país no qual mais tempo vivi; foi onde encontrei o pai da minha filha e onde a concebemos; foi o lugar que deixou aflorar o melhor e o pior da minha personalidade; é a terra do meu marido e minha segunda casa.

Por isso, tenho muitas estórias sobre e da Índia: boas, ruins, engraçadas, trágicas... E para celebrar esses seis anos de amor e ódio pela minha Bharat, quero dividir algumas delas aqui.


Mas a primeira dessas estórias começou a se esboçar um pouco antes, em julho de 2003...
Fazia pouco mais de 2 horas que tinha colocado os pés em solo brasileiro e estava cansadíssima depois de um dia inteiro gasto em diferentes aviões e aeroportos, quando um abalo sísmico destruiu o meu mundo.
Tudo parecia estar no mesmo lugar que estava 7 meses atrás...
É a ilusão do viajante: achar que o tempo só passou para ele; que o trem do qual ele desembarcou estaria imóvel na mesma estação, esperando que ele novamente o embarcasse para continuar sua jornada... O meu já tinha partido. E sem qualquer comunicado da empresa ferroviária.
Só tinha ficado um vazio e quase cinco anos de muitas lembranças. Havia nossas impressões digitais espalhadas por todas as esquinas e cantos da cidade...
E eu precisava sair daquela tão familiar e agora dolorosa parte do mundo o mais rápido possível, nem que eu tivesse que ir pra China ou pra Índia, fazer trabalho voluntário numa obscura e suspeita ONG de Bangalore... Ir ao encontro do meu carma.

Swapping Lives

O "Wife Swap" é um reality show independente da TV inglesa que foi ao ar, pela primeira vez, em 2003. Um ano depois, já contava com uma versão americana e hoje é produzido em outros oito países, incluindo a Suécia e a Dinamarca. Recebeu um prêmio Bafta (British Academy of Films and Television Arts), mas parece ter esgotado a paciência (ou o orçamento) dos telespectadores do Channel 4 do Reino Unido que, desde novembro de 2009, não está mais produzindo novos episódios.

Independente do índice de audiência atual, a ideia é simples e fascinante: trocar (swap) de lugar, de família, de marido, de filhos, de cidade por 10 dias. Ter a brevíssima oportunidade de viver uma vida que não foi escolhida por nós nem imposta pelas circunstâncias. Ter permissão legal (provavelmente há algum tipo de contrato com a emissora) de ser outra faceta de si mesmo num contexto diferente.
De maneira geral, os participantes retornam para suas casas emocionalmente exaustos com a experiência, mas convictos de possuírem a família menos problemática do show; felizes por terem conquistado um grande prêmio na loteria da vida! Até que a poeira baixa, a excitação passa e as coisas retomam seu curso normal e rotineiro...

Não fui aquela adolescente que sonhava com véu, grinalda e as qualidades do marido, nem planejava o nome dos filhos e a mobília da sala de jantar. Não fui criada para ser mãe, esposa e dona-de-casa, mas num piscar de olhos me vi submersa na maternidade e num casamento intercultural complicado, vendo as horas dos meus dias serem preenchidas com tarefas enfadonhas e pouco relevantes. Agora, uma terça-feira se parece tanto quanto um sábado, e acabo me esquecendo do dia do mês em que estamos.
É claro que minha Pequena me traz lampejos de alegria e satisfação que rasgam o céu da monotonia. É claro que sei que as noites (e os dias) sem sono, preparando mamadeiras, trocando fraldas e embalando-a para dormir vão diminuir, à medida que ela for crescendo e se tornando independente. É claro que sei que, eventualmente, vou voltar a ter tempo para me depilar e cortar o cabelo, mas há momentos em que a demanda por colo e atenção e a completa incompreensão da razão de ela estar chorando são tão insuportáveis que gostaria de participar do reality show, não por longos 10 dias nem para trocar de família. Gostaria apenas de poder viver, por algumas horas, a minha antiga vida de mulher solteira sem amarras, para, no final, voltar correndo para os braços da minha filha e do meu marido, com lágrimas nos olhos e a certeza no coração de que o MEU número também é premiado.

Até que a poeira baixa, a excitação passa e as coisas retomam seu curso normal e rotineiro...

A razão deste blog...

"Todos os sofrimentos podem ser suportados se conseguimos convertê-los numa história ou se contarmos uma história sobre eles", de Karen Blixen.

Ou ainda se temos uma Pequenina razão (de pouco menos de 5 quilos e 61 centímetros) para nos ocupar e preocupar com até o derradeiro dia de nossas vidas.