Minha sogra é uma mulher de 54 anos sem nenhuma vaidade. Ela tem uma meia dúzia de trajes surrados, cabelos bem grisalhos e dois dentes a menos na boca.
Ela é uma beata que segue as doutrinas da religião à risca e liga, todo santo dia, para o “pároco” da família, a fim de ouvir suas palavras de sabedoria e receber sua bênção por telefone.
Ela pratica a caridade e alimenta os ruminantes sem-donos do bairro com as sobras do almoço e da janta. Ela é uma mulher de 45 quilos, sem vícios nem paixões, que come com extrema moderação e sem uma pitada de prazer.
Além dos seus dois filhos, a única coisa que lhe traz alegria é gritar com os empregados da casa. Seu único pecado é a ira, cometido contra os pobres diabos das castas mais inferiores que dependem daquelas poucas centenas de rúpias e não podem levantar a voz em sua defesa.
Esta é a única maneira que ela conhece para deixar o vapor sair, pois, nas palavras de Tennessee Williams, não se pode acabar com todos os demônios sem também se destruir os anjos que existem em cada um de nós.
Outros que precisariam se aprofundar na obra do escritor norte-americano são seus colonizadores, os ingleses, principalmente os moradores deste pacato vilarejo em Oxfordshire.
As ruas estão sempre limpas e bem-iluminadas. Os canteiros são bem-tratados e arranjados com as flores da estação. O trânsito é organizado e os pedestres jamais atravessam fora da faixa de segurança. Os serviços públicos são eficientes e gratuitos e os servidores, educados.
Mas o que mais impressiona é a coleta de lixo. Há recipientes de diferentes cores, tamanhos e propósitos, recolhidos de forma programada e alternadamente, todas as quartas-feiras: material orgânico para adubo (restos de comida e resíduos de jardim); material semi-orgânico para aterro (fraldas, absorventes internos, cotonetes); vidro branco e marrom, papel e plástico para reciclagem; roupas e sapatos usados e usáveis para doação, etc.
Tudo perfeito, o paraíso na Terra não fossem os demônios dos seus moradores...
E somente aqueles que não compreendem a dualística da natureza humana ficariam chocados com as transgressões que ocorrem nas madrugadas de sábado e domingo, quando o consumo exagerado de álcool e outras drogas abre as portas para as sombras tomarem conta das ruas escuras do condado. Atos de vandalismo podem ser vistos nas manhãs seguintes e os nomes das vítimas de esfaqueamento e estupro, ouvidos e repetidos, maquiavelicamente, nos noticiários da TV e rádio locais.
Porque, debaixo do verniz da polidez, por trás do sorriso cortês, sob a máscara da afabilidade, há um mundo subterrâneo e sulfuroso com águas fétidas e prontas para entrar em ebulição; há um vizinho bisbilhoteiro espiando as pessoas pelas frestas da veneziana; há uma senhora aposentada fazendo fofoca sobre a nora para as amigas do bingo; há um valentão da escola maltratando os mais fracos e diferentes; há uma devota do Babaji infernizando a vida dos criados; há uma estrangeira contaminando o lixo orgânico do município com sacolas pláticas.
Como diz uma música do grupo alemão Rammstein (Gott weiss ich will kein Engel sein), Deus sabe que eu não quero ser anjo, só anjo; não quero ser perfeita; quero apenas manter meus demônios vivos e encontrar uma maneira construtiva de permitir que eles também venham à superfície e se manifestem.
Um comentário:
Excelente!
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