quarta-feira, 31 de março de 2010

Minha Akka indiana

Ela era recém-casada, de outro estado indiano (Andhra Pradesh) e morava a pouco tempo em Bangalore, quando, a caminho de casa num dia igual a qualquer outro, ela ficou intrigada com a minha presença na frente do escritório da FSL e entrou para saber mais sobre a organização. Foi amizade à primeira conversa, e nossa relação fez jus ao nome dela: Kanthi significa afeto.



A minha era uma advogada um ano mais velha que eu, mas já presa no sufocante emaranhado das tradições hindus. Em outras palavras, depois de um casamento arranjado, através de um site matrimonial, ela tinha desistido da carreira profissional, vivia da mesada do marido e não sabia o que fazer com tanta inteligência e tempo livre.


Naquele dia igual a qualquer outro, ela estava se tornando minha primeira “team leader”, inspirada pelo meu exemplo de voluntarismo. Pouco inspirador foi o treinamento dado (por causa do meu inglês fraco e da minha falta de experiência na função) e as experiências passadas na ONG. Mas a amizade restitiu a todos os abalos sísmicos e tsunamis que atigiram a Índia em 2004, 2005, 2006, 2007...


Não apenas uma amiga, a Kanthi foi uma intérprete da cultura daquele estranho e exótico país. Foi ela quem me ensinou a tirar os sapatos e a colocá-los, asseadamente, ao lado da porta da frente, antes de adentrar qualquer casa ou templo indianos. Foi ela quem me ajudou a preparar dosas e a apreciá-las com muito ghee. Foi ela quem me falou das divindades hindus e me apresentou o mais rechonchudo deles (o Lord Ganesh). Foi ela quem primeiro pintou meu rosto no festival das Cores (Holi) e me explicou sobre o das Luzes (Diwali). Foi ela quem me alertou sobre o comportamento dos homens da Índia e o que não esperar de um relacionamento com eles.


Não apenas uma amiga indiana, a Kanthi foi a irmã mais velha que eu nunca tive, minha Akka, sempre cheia de conselhos e cuidados. Não apenas uma irmã de sangue, mas de afinidades, compartilhando os mesmos empregos, as mesmas cidades, as mesmas ideias.


Muitas foram as vezes em que me considerei menos brasileira que a Kanthi. Ou o contrário: tinha a certeza de que ela havia nascido no lugar errado, no país errado, na cultura errada. Quanta inteligência e vontade de viver disperdiçadas num apartamento de dois quartos em Banaswadi e num casamento de conveniências.


Talvez o erro fosse no tempo. Talvez a Índia do século XXI não tenha chegado, de fato, para as mulheres da Índia. Talvez existissem muitas outras Kanthis pelo país, confinadas, resignadamente, a uma vida de escolhas limitadas. Com um destino marcado já no nome. A minha, pelo menos, ao cruzar o meu caminho naquele dia igual a qualquer outro, pôde escolher uma irmã de afeto. Nos e-mails e cartões que recebo da Kanthi, sou sempre a Tangui, a irmã mais nova.

Um comentário:

Ana Dos Santos disse...

tem lugares no mundo que pararam no tempo...