terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Ele existe!

Pela primeira vez em dois anos, um mês e vinte e poucos dias, estou saboreando a maternidade em sua plenitude.

Não passei por essa sensação durante a gravidez.
Ao invés disso, estava me virando sozinha na Índia, trabalhando no turno da noite, sendo despejada do meu apartamento em Bangalore por apresentar uma barriga e (ainda) ser solteira, tentando me unir legalmente ao pai da criança às pressas e às escondidas (já que os pais dele não queriam aceitar o casamento e eu temia um nome em branco na certidão de nascimento da minha filha), me apavorando com o abismo cultural que nos separava e que eu só fui vislumbrar quando meus sogros finalmente abriram a porta da frente da família e eu estava com quase 6 meses de gestação.

Depois, voltei para o Brasil e ela entrou na minha vida com um corte profundo. 
E eu continuava incapaz de ter a tal sensação. O sentimento que realmente começava a se alastrar pelo meu coração era a culpa. Culpa por não conseguir amamentar meu bebê com o leite que empedrava nas minhas mamas, reduzidas dez anos antes. Uma decisão egoísta da juventude estava privando minha filha do tão completo alimento materno.

Mas ela "sobreviveu", ganhou peso e foi se desenvolvendo. E o vínculo que não pôde ser formado durante a amamentação, foi sedimentado nos dois anos seguintes, quando passamos tanto tempo juntas e sozinhas que parecíamos em simbiose.

Ainda assim, eu não me sentia plena com a maternidade.
Pelo contrário, à medida que ela crescia (e aprendia a engatinhar e a caminhar), diminuíam suas horas de sono e aumentavam os espaços da casa que ela explorava  curiosa e avidamente. Eu não tinha mais sossego em deixá-la sozinha. Alguns minutos de seu silêncio podiam representar um grande risco de vida. Só Deus sabia no quê ela podia estar mexendo.

Além disso, sendo sua principal fonte de amor e de atenção, meus momentos de privacidade no banheiro foram se tornando raros e os banhos acontecendo em dias alternados... Minha mãe me via no Skype e me aconselhava a não esperar o marido com cara de empregada. Mas depois de passar o dia cozinhando, limpando, trocando fraldas, lavando roupa, vestindo, penteando cabelo, tentando escovar os dentes da filha e traduzindo durante a única hora de cochilo da criança, quem quer ficar atraente e começar a terceira jornada de trabalho como esposa sensual e cheia de libido? A cama, pra mim, era só para dormir! Mesmo que fossem apenas algumas horinhas, já que ela pedia o mamá duas vezes por noite e eu custava para pegar no sono novamente. Era um inferno... Ou o purgatório, para quitar dívidas antigas e expiar culpas recentes...

Até que chegamos ao Brasil, para passar quatro semanas de férias, e me deparei com os altos e pesados portões do Paraíso, que estiveram cerrados para mim por tanto tempo e que finalmente me abriram uma brecha para entrar! SIM, mães de todas as religiões e nacionalidades do século XXI: a terra que nos prometeram ainda na concepção de nossos filhos existe! E ela se chama a casa dos avós e dos tios (sem crianças), loucos para brincar, cuidar, alimentar, dar banho, vestir, pentear o cabelo e encher de carinho nossos rebentos! Enquanto podíamos colocar o banho em dia, ir no salão, fazer os pés.
Sei que vai ser uma estada breve e que logo retomaremos nossas rotinas purgativas, mas, por enquanto, estamos as duas felizes no meio da vovó, do vovó, da pili, dos cacás, da dinda, do beto, do auau, do miau...

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

My Very Hungry Caterpillar

A última peça infantil a qual fui assistir com minha filha, na Inglaterra, foi uma maravilhosa adaptação com fantoches de algumas das estórias do escritor americano Eric Carle.

Entre elas, a de uma pequena lagarta que emerge, junto com o sol de domingo, de um minúsculo ovo numa árvore. E ela está faminta. Assim, durante toda a semana, de segunda a sexta-feira, ela passa devorando tudo o que vê pela frente: uma maçã, duas peras, três ameixas, quatro morangos, cinco laranjas, além de sorvetes, bolos, tortas, salsichas... Até que acaba se sentindo mal, no sábado, com tanta comida e vai descansar numa árvore, formando um casulo. No domingo, o invólucro arrebenta e, de dentro, sai uma linda borboleta.

Foi um espetáculo super mágico, mas confesso que saí do teatro sem entender muito bem a moral da estória.

Talvez as crianças, para quem The Very Hungry Caterpillar se dirige, se pareçam um pouco com a lagarta de Carle. Elas deixam o "ovo" uterino pequeninas e começam a explorar o mundo, extremamente curiosas e cheias de fome por novidade. Passam os anos da infância devorando tudo o que é estímulo percebido e sentido no exterior, até que se "fecham" na adolescência para digerir tanta informação e saem de suas crisálidas como indivíduos independentes e prontos para voar.

Mal consigo esperar para ver como minha lagarta esfomeada pela vida (mas já com cara de borboleta) vai deixar o seu casulo.




sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

The Sun still doesn't set on the British Empire

Até pouco tempo atrás, existia um império tão vasto e poderoso que sempre havia uma parte de seu território iluminada pela luz do Sol.

Esse era o Império Britânico no seu apogeu (no início do século XX), quando chegou a abranger quase 34 milhões de quilômetros quadrados da área terrestre do nosso planeta e 500 milhões de pessoas! Não é por acaso que o Observatório Real de Greenwich é definido como o ponto do Meridiano Principal, dividindo o mundo em Leste e Oeste.

Entre 1500 e 1997, as feitorias, colônias e protetorados que estavam sob controle desse pequeno país insular na costa noroeste da Europa continental incluíam Afganistão, América do Norte, Austrália, Bahamas, Bahrain, Bangladesh, Barbados, Belize, Botswana, Brunei, Myanmar, Camarões, Canadá, Cingapura, Egito, Fiji, Gambia, Ghana, Iêmen, Índia, Iraque, Irlanda, Jamaica, Kênia, Kuwait, Lesotho, Malásia, Malta, Maurícia, Nigéria, Nova Zelândia, Paquistão, Serra Leoa, Sri Lanka, Tanzânia, Trinidad e Tobago, Uganda (...), além de dezenas de outras ilhas, catorze delas ainda pertencentes ao Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte!

E, mesmo antes do final da II Guerra Mundial, ventos de liberdade começaram a soprar (com a criação de um Estado Livre Irlandês) e nuvens de independência passaram a ofuscar o Sol que parecia nunca se pôr naquele vasto império... E suas nações-colônias foram, aos poucos, saindo do jugo bretão, até culminar com a devolução de Hong Kong à República Popular da China, em 1997.


Além de legar o idioma inglês, o futebol, o críquete, o tênis, o golfe e a direção no lado esquerdo da estrada a cerca de 400 milhões de ex-súditos, o Império Britânico também deixou um rastro de problemas políticos e religiosos para a maioria dos recém-formados governos e seus cidadãos ávidos por direitos civis, provocando uma gigantesca onda migratória rumo ao centro do império. Como consequência, as ruas e a culinária do Reino Unido nunca estiveram tão ricas e "coloridas", desde a ocupação da ilha por celtas, romanos, vikings, germânicos, anglo-saxões, normandos, escoceses, irlandeses, huguenotes e judeus russos...

É por isso que uma explosão pública de racismo (flagrada num bonde de Londres e colocada no YouTube no dia 27 de novembro - http://www.youtube.com/watch?v=i47HoiM0Au8&feature=youtube_gdata_player) atrai tanta atenção e causa tamanho desconforto (pelo menos em mim e nas autoridades locais que prontamente a detiveram por perturbação da ordem pública com comentários racistas - http://www.bbc.co.uk/news/uk-england-london-15923875). Em pouco menos de uma semana, o vídeo que mostra uma mulher branca com uma criança loira no colo e praguejando contra negros, polaneses e os demais passageiros não-britânicos, teve quase 9 milhões de acessos. Esse número excede a população da capital inglesa em mais de um milhão! E o mais chocante é ver quantas pessoas gostaram do que ela fez e disse!

Pois, o que é ser britânico afinal de contas? É falar inglês empolado, tomar uma xícara de chá com biscoitos no meio da tarde ou comer peixe e batatas fritas de uma lanchonete de esquina? Porque tudo isso foi trazido para esta ilha por imigrantes! O inglês (que nem é o idioma de jure do Reino Unido, mas apenas o mais falado) é uma mistura da língua germânica ocidental com palavras de norueguês antigo, francês normando e latim. O hábito de tomar chá à tarde só foi introduzido na Inglaterra por volta de 1840, graças aos mercadores da Companhia Britânica das Índias Orientais e às suas Coffee Houses que popularizaram a bebida entre as classes mais baixas. E o mais tradicional takeaway inglês começou com uma lojinha do judeu Joseph Malin, em Londres, na metade do século XIX.

Tudo bem. São tempos difíceis, o desemprego está alto e os cortes do governo nos benefícios de vários setores da sociedade estão afetando muita gente, inclusive os não-britânicos. Mas culpar os estrangeiros pelos problemas econômicos do país é dar um passo atrás na História e esquecer as lições de um passado não muito distante. A maré virou e todos deste (e do outro)lado do Canal da Mancha parecem estar colhendo os frutos de uma árvore moderna plantada com as Grandes Navegações e o estabelecimento do sistema capitalista.

Não é fácil quebrar uma tradição de quase 500 anos: a de dominar, explorar e arruinar os países de línguas, culturas, religiões e etnias diferentes, em busca de mão-de-obra barata e matéria-prima abundante para fomentar alguma Revolução Industrial. Mais difícil ainda é lidar com os vestígios deixados pelo maior império que o Homem já viu. E seus milhões de despatriados, refugiados e perseguidos.

Ainda mais quando há milhares tropas britânicas no Afeganistão, nos Bálcãs, no Iraque, no Chipre, em Gilbratar, na Irlanda do Norte e nas Ilhas Malvinas, ou melhor, Falkland Islands! E por que cerca de cinco milhões de britânicos civis, morando e trabalhando no exterior, não estão nesta grande Bretanha, enfiados num pub, bebendo a pint of ale e comendo fish'n'chips, mate? Ou só eles têm o direito de buscar uma vida melhor?

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Presto - Ma non troppo

Fazia mais de dois anos que eu não saía sozinha para assitir a uma atividade cultural.

Desde que minha menina nasceu, já fomos os três ao circo, ao teatro, ao aquário, a uma fazenda, a um safari e até à Itália juntos! Mas, em 24 meses, duas semanas e 3 dias, essa foi a primeira vez que saí, sem filha nem marido, para ver um concerto de música clássica: The Four Seasons by Candlelight, um espetáculo suntuoso com a Orquestra Mozart Festival usando perucas e trajes típicos do século XVIII.

Nem no primeiro, muito menos no segundo aniversário dela (celebrado pouco tempo atrás), eu coloquei um vestido tão fino, maquiagem, joias (impossível perto dela) e pintei as unhas dos pés! Tudo para apreciar, por 180 solitários minutos e à luz de pequenas lâmpadas que pareciam velas, a obra mais popular e executada de Antonio Vivaldi.

Foram mais de 30 libras por um lugar bem no meio e a dez filas distantes do palco e, assim que me sentei no assento 23J, me deparei com uma onda de cabeças brancas à minha frente. E à minha direita. E à minha esquerda! Onde quer que eu olhasse, só via pessoas de meia e terceira idades. Algumas inclusive de bengalas, cadeiras de rodas e com enfermeiros de prontidão. Eu nem tirei o casaco! E a fila para o banheiro durante o intervalo estava um horror!

Talvez meu gosto musical seja um pouco antiquado ou é a consciência do tempo também passando para mim. Ou as duas coisas. O fato é que eu nunca realmente havia me preocupado com o número de primaveras que havia vivido, até dar à luz a uma linda menina na minha 34ª, em novembro de 2009. Foi quando eu percebi que, no momento que ela atingir o auge de sua beleza, aos 21 anos, eu vou estar com 55!

Não sou uma entusiasta das cirurgias plásticas para puxar aqui e ali, mas já comecei a usar meu primeiro creme antirrugas e, em breve, vou estar remexendo nas prateleiras da secção geriátrica de famárcias e supermercados, em busca de ofertas nos kits vitamínicos para amenizar os sintomas da menopausa e evitar osteoporose.

Já me sinto como no terceiro movimento do Concerto No. 2 em Sol menor das Quatro Estações. É verão e, de acordo com a interpretação do compositor italiano, uma tempestade se aproxima de maneira muito rápida (presto) para dar fim a esse período do ano e iniciar o outono da minha vida.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

730 e outras razões

Não é fácil explicar um sentimento.
Podemos até descrevê-lo com palavras empoladas e superficiais, mas a menos que consigamos senti-lo com cada batida de nosso coração, não compreenderemos completamente seu significado. O amor, por exemplo, é definido como uma "grande afeição por outra pessoa". Ele pode surgir de repente, à primeira vista, como um lampejo de afeto, mas se essa afeição não for nutrida por pequenos e repetidos gestos, provavelmente nunca vai se tornar grande e real.

Quando minha filha nasceu, eu senti, instantaneamente, essa incrível manifestação de amor por aquele diminuto e delicado ser. É uma das mais inteligentes estratégias da natureza para que cuidemos dessas criaturinhas frágeis logo ao nascerem, porque elas, basicamente, só comem, dormem, fazem cocô e xixi. E choram. Umas mais do que outras, mas todas choram nos primeiros meses de vida (ou ano, quando os dentes de leite começam a rasgar as gengivas e elas voltam ou continuam a chorar).

Ou seja, o começo da maternidade não é muito fácil e há bastante razões para qualquer mulher que sempre sonhou com um filho perder a paciência e a sanidade e "abandoná-lo"... Numa creche, com os avós ou com uma babá.

Mas é aí que a natureza entra em cena mais uma vez, fornecendo aqueles pequenos e repetidos gestos para a paixão inicial da mãe agora cansada de amamentar, de trocar fraldas sem-fim e de noites mal-dormidas se transforme em amor: são olhares e sorrisos intencionados e dirigidos para a progenitora, além de várias outras formas de expressar carinho que são únicas de cada bebê.

Eu amo a minha filha quando ela aperta minha bochecha ou meus polegares, enquanto toma a mamadeira.
Eu amo a minha filha quando ela enrosca as pernas na minha cintura, enquanto está nos meus braços.
Eu amo a minha filha quando ela vem de mão estendida me chamar para dançar na sala.
Eu amo a minha filha quando ela olha para algo novo e abre ainda mais seus imensos olhos castanhos cheios de surpresa.
Eu amo a minha filha quando ela aprende uma palavra nova e a pronuncia ou gesticula à sua maneira.
Eu amo a minha filha quando ela caminha ao meu lado, segurando meu dedo indicador com toda sua mãozinha.
Eu amo a minha filha quando ela se vira de barriga para baixo na sua banheira, desfrutando um delicioso banho de espuma.
Eu amo a minha filha quando ela, brincando com outras crianças ou adultos, vira a cabeça e me procura com seu olhar.
Eu amo a minha filha quando ela vem na minha direção com braços abertos e um sorriso de puro amor e me beija e abraça...

Bem, eu não estava contando, mas acho que já foram mais de 730 deles nesses mais de 730 dias que ela entrou na minha vida. E, por falar nisso, eu amo a minha filha por ter adicionado o mais bonito dos substantivos comuns ao meu mundo: mamãe.

Eu amo a minha filha por ter me tornado sua mãe, pois foi com o Amar que eu concebi o amor da minha vida.

E, apesar dos momentos de muito choro, birra, pirraça e teimosia, eu já sinto uma grande afeição por essa pessoa! Ou como o amor foi definido por Freddie Mercury, com palavras genuínas e profundamente sentidas: 
I was born to love you
With every single beat of my heart
Yes, I was born to take care of you
Every single day of my life

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O Olho do Céu

Para algumas mulheres, a vida realmente começa depois que elas arranjam um emprego, deixam a casa dos pais (ou do ex-marido!) e passam a ter plena liberdade para viver da maneira como desejam, não importa a idade. Outras são levadas a acreditar que é a partir dos 40 e poucos anos (quando as inibições e inseguranças da juventude foram vencidas, os filhos já estão grandinhos e elas têm mais tempo para si mesmas) que podem usufruir das próximas quatro décadas à sua frente (ou mais!).

Mas há ainda as mulheres que apostam todas suas fichas no matrimônio. Aquelas que sonham com vestido de noiva, madrinhas, lista de convidados, e passam anos à procura do homem certo para iniciar uma vida a dois. Me lembram um pouco das personagens de Kate Hudson (Liv) e Anne Hathaway (Emma) em Noivas em Guerra (Bride Wars) de 2009, ao se sentarem diante da ilustre planejadora de casamentos Marion St. Claire (interpretada por Candice Bergen) e ouvirem que estavam mortas até aquele instante, que suas vidas só começariam depois de trocarem alianças e alcançarem o status de "mulheres casadas".

Não importa muito em que categoria nos identificamos, o fato é que o sexo feminino tem, culturalmente, esperado por um agente externo para desencadear seu processo de auto-descobrimento e diferenciação.

Eu esperei por 34 anos e alguns meses para experienciar um renascimento, quando todo meu universo emocional, físico e psicológico estava num estado quente e denso até haver um grande rompimento incisivo na região do ventre e a minha vida recomeçar com um estrondoso choro de bebê.

Mas o início do meu Big Bang Materno foi bastante turbulento devido aos inúmeros aglomerados de emoções contraditórias que giravam em torno do meu átomo primordial. Agora, dois anos depois da grande explosão e com os principais problemas se aproximando de seus desvios para o vermelho, sinto que meu universo se resfriou e consigo vislumbrar a maravilha desta crição.

Agora que minha menina já é capaz de se comunicar com muitos olhares, sorrisos, gestos e algumas palavras, me dou conta de que minha vida estava incompleta sem a dela e que milhões de galáxias inexploradas de sentimentos nasceram junto com ela.

Minha filha não criou meu universo, mas o está expandindo em todas as direções, nos momentos em que ela, por exemplo, vê a lua cheia e redonda no céu escuro e diz: "Olho!" Aos poucos, ela vai me ensinando a perceber o mesmo mundo que eu pensava conhecer há mais de 36 anos através de seus imensos e inocentes olhos castanhos!

E, como um pequeno sistema solar recentemente formado, sou eu que giro em torno desse corpo cheio de energia.

E nas palavras de Adriana Calcanhoto: 
Eu não existo longe de você

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

How I met your father

Pequena, nosso primeiro encontro aconteceu no começo de 2009, perto de quando eu fiquei sabendo que você estava pra chegar.

Ouvi um colega de trabalho comentar com outro, no elevador da empresa, que ele já estava na lista de espera para retirar o próximo DVD da série. Filha, eu também tive que esperar (acho que mais de um mês) para finalmente conhecer Ted, Barney, Robin, Lily e Marshall. Mas valeu a pena. Foi amor logo no primeiro episódio e me tornei mais uma fã aficionada dos cinco inseparáveis amigos e de suas incríveis aventuras narradas com uma precisão pouco confiável. Uma delas (a décima quinta da segunda temporada) surgiu mais uma vez à minha mente e me ajudou a entender como conheci seu pai.

"Lucky Penny" é sobre Ted perdendo não um, mas dois voos para Chicago, onde teria uma importante entrevista de emprego. Ele e Robin tentam recordar os mais recentes eventos do passado e achar o culpado de tal infortúnio.

O primeiro acusado é Barney por ter aceitado uma aposta de Marshall, corrido a maratona de Nova York e ficado "preso" num banco de metrô sem poder mexer as pernas exaustas da corrida. Ted foi em sua ajuda, pulou a catraca da estação sem pagar e teve que comparecer a um tribunal naquela manhã para dar explicações. Por isso, o atraso para pegar seu voo.

Pouco tempo depois, Ted lembra que, na verdade, Robin foi a maior responsável por tudo, porque, se não fosse por ela ter surpreendido Marshall no banheiro, colocando vaselina nos mamilos, ele não teria se assustado, caído, quebrado o dedo do pé e ficado impedido de correr a maratona, fazendo a aposta com Barney...

Robin se defende e diz que Lily é, de fato, a culpada por ele ter perdido o avião, pois se ela não a tivesse convencido a acampar na fila de uma loja de vestidos de noiva em liquidação, Robin não teria ido à casa de Marshall para dormir um pouco e aparecido inoportunamente no banheiro...

Então, os dois se lembram que, se Ted não tivesse achado uma moeda de centavo antiga e vendido-a para um colecionador, eles não teriam ido gastar o dólar e meio conseguido com ela em cachorros-quentes e visto a fila na frente da loja de vestidos de noiva em liquidação... Ou seja, ele próprio tinha colocado em marcha as reações em cadeia que causariam a perda do voo e da entrevista de trabalho em Chicago. Mas, se não fosse por aquele pêni da sorte, Ted não teria ficado em Nova York e não viria a conhecer a futura mãe de seus filhos.

Minha Pequena, o destino também me fez percorrer caminhos bem sinuosos até chegar ao seu pai, em dezembro de 2004. Eu não estaria na Índia naquele momento, se não tivesse terminado um relacionamento anterior um ano antes. E o mesmo relacionamento não teria sido findo, se eu não tivesse ido passar outros seis meses na Europa, em 2003. E, se não fosse a mesma organização de intercâmbio cultural com a qual eu tinha viajado para a Dinamarca, eu não saberia, um ano mais tarde, que haveria outra oportunidade na Índia.

Filha, eu sei que parece confuso e eu própria demorei muito a desenredar esse nó. Mas assim segue a definição de destino (ou sorte, ou sina): "a combinação de circunstâncias ou de acontecimentos que influem de um modo inelutável." Ou se você preferir um termo tirado das religiões da terra do seu pai, nossos caminhos se cruzaram graças a um carma, uma ação sujeita ao encadeamento de outras causas.

Hoje acho que o mais importante não é saber como, mas por que encontrei seu pai. Mas isso eu te conto quando descobrir.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Lições do Setembro Passado - Parte III

Eu tinha um objetivo quando me decidi pelo jornalismo. Eu queria muito contar histórias, fossem elas impressas no papel, congeladas numa imagem fotográfica ou documentadas em vários quadros por segundo.

Mas meus sonhos derreteram diante da implacável realidade do meio jornalístico e nunca fui muito longe nesta carreira. Ironicamente, alguns anos depois de abandonar a profissão, acabei me envolvendo com outros tipos de histórias e outras maneiras de contá-las. Trabalhando na indústria da legendagem, vejo aventuras, dramas, comédias, suspenses, tragédias e romances sendo narrados magicamente, num período que varia de 60 a 180 minutos, numa forma artística que incorporou todas as seis artes anteriores: o cinema.

E de maneira indireta e sutil, eu ofereço uma pequena contribuição no processo de contar essas histórias, quando os espectadores brasileiros compram DVDs e Blu-Rays em território nacional e escolhem a língua portuguesa para as legendas de seus filmes. Na função de tradutora ou revisora de uma determinada obra cinematográfica ou televisiva, constantemente preciso fazer escolhas ou ajudar nas escolhas feitas por outro tradutor para melhor comunicar um dialógo, uma piada ou uma expressão idiomática, de modo preciso e sucinto para que o público consiga lê-los em alguns segundos e ainda conseguir acompanhar a trama.

Não sei se é a paixão pelas histórias, o amor pelo trabalho ou se são ócios do ofício, mas estou sempre pensando em filmes e séries de TV e, dependendo da situação em que estou vivendo, uma fala ou uma cena me vem à cabeça.

Em setembro, compramos uma esteira para eu ter uma alternativa física nos meses vindouros de muito frio e pouco sol. Fazia tanto tempo que eu não sentia uma descarga tão maciça de endorfina na corrente sanguínea que acabei lembrando de Legalmente Loira de 2001, quando a personagem de Reese Witherspoon (a estudante de Direito da Harvard e aspirante a advogada Elle Woods), apresenta seu argumento em defesa de sua cliente. Ela diz que a ré fazia exercícios físicos regularmente e que não poderia, assim, ter matado o marido... A lógica é que ela era feliz!

E eu também estava. Anestesiada com este neurotransmissor pelo resto do dia, passei a não encontrar motivos para discutir com meu marido ou censurar minha filha. E esta foi a terceira lição que aprendi no mês passado: uma hora de caminhada rápida na esteira torna os problemas cotidianos mais toleráveis. Como vírgulas desnecessárias e recorrentes numa tradução excessivamente pontuada.

O que também me fez lembrar de outra citação em outro filme (dez anos mais recente). Em Transformers: Dark of the Moon, o pai de Sam Witwicky lhe diz, com evidente experiência de causa: "Happy wife, happy life!"

Não é a história de muitos casamentos?

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Lições do Setembro Passado - Parte II

Mesmo antes da minha filha nascer, eu já era inundada com uma enxurrada de coisas que eu devia ou não fazer.

Por exemplo: não devia comer mamão ou beber café nos primeiros meses de gravidez, porque podiam ser abortivos; não devia tomar suco de laranja nem chimarrão (ou qualquer outro alimento com bioflavonóides) nos meses finais da gestação, porque podiam prejudicar o coração do bebê; não devia consumir álcool ou remédio quando estava grávida, porque podiam causar má formação no feto. Tudo pela vida e bem-estar da criança! E que a pobre mãe padeça, por semanas a fio, de depressão ou com hemorróidas do tamanho de uvas!

É claro que as descobertas científicas devem ser recebidas com respeito e que as crendices populares têm um fundo de verdade, mas foi o comentário simples e sábio de uma colega de trabalho na Índia (que tinha se tornado mãe aos 40) que proporcionou um pouco de sensatez para eu manter minha dieta equilibrada e meu peso, sob controle: "Com moderação, pode-se comer e fazer qualquer coisa."

Mas se as quarenta semanas de gestação de uma mulher já não bastassem com bombardeios de conselhos (bem-intencionados, mas por vezes contraditórios), eles continuam a ser lançados de todos os lados (como projéteis) quando o rebento finalmente vem ao mundo. Todo mundo tem uma opinião ou ouviu falar ou leu a respeito de como o recém-nascido deve ser segurado, vestido, alimentado, trocado, colocado para dormir... Em certas culturas, não temos nem o direito de escolher o nome dos próprios filhos! É uma batalha diplomática que temos de travar pelo resto de nossas vidas como mães. Tenho certeza que vou escutar, mesmo depois que minha menina tiver se tornado uma mulher adulta, coisas do tipo: "Se você tivesse feito isso, não teria acontecido aquilo..." E o inverso também.
Até que chega o dia em que realmente precisamos deles, dos conselhos alheios: quando nossas crias adoecem.

Esse dia chegou para mim em setembro, quando minha filha ficou muito doente. Ela perdeu o apetite e algum peso e, por mais de duas semanas, vomitava o pouco que comia, além de apresentar uma diarréia aguda que nenhum médico conseguia diagnosticar com precisão. Primeiro, achou-se que ela estava com rotavírus; depois, falou-se em intoxicação alimentar e até na presença de vermes. Por fim, o resultado do exame de fezes (que demorou mais de 10 dias para ficar pronto) revelou que ela estava com criptosporidíase, uma gastroenterite causada por um protozoário da espécie Crytosporidium e sem tratamento com remédios tradicionais. A médica que nos atendeu foi cautelosa e apenas prescreveu sachês de soro caseiro com sabor de groselha, para repor a perda de sais e líquidos e tentar segurar a comida no estômago.

Parecia simples, mas não funcionou. Nem os sucos, nem o leite de soja, nem a batida de banana com leite de soja, nem as maçãs raladas, nem a água de arroz...

Até que fui a um salão retocar a raiz coberta de fios brancos e a cabelereira polonesa (com dois adolescentes em casa) me falou de uma solução impensável e impraticável para muitas mães um pouco mais conscientes a respeito da própria alimentação e a dos filhos: Coca-Cola. Não a Diet, não a Zero, não a Light, nem a Light Plus. A normal mesmo, cheia de calorias, água gaseificada, ácido fosfórico, cafeína e extrato de noz de cola. Resisti à ideia durante o tempo em que estive sentada na cadeira do salão, mas saí dali decidida a tentar. E dei uma latinha de Coca-Cola para a minha filha, por três dias consecutivos.

Funcionou! As crises de diarréia continuaram por outras duas semanas, mas ela parou de vomitar desde o primeiro dia e voltou a tomar as não-tão-aconselháveis-nessas-situações mamadeiras com leite de vaca integral. E sem nenhum problema.

E essa foi minha segunda lição no mês passado. Não posso ser responsabilizada por formar mais uma consumidora da bebida criada por John Pemberton no final do século XIX. Enquanto puder evitar e ela estiver bem de saúde, os produtos desta multi-nacional vão permanecer longe dos imensos olhos castanhos e dos lábios ávidos por açúcar da minha filha.

Mas aprendi outro ensinamento simples e sábio que vai permear meus próximos anos no exercício da maternidade: a "Teoria Materna da Relatividade", ou seja, mães diferentes oferecem visões perfeitamente plausíveis, ainda que diferentes, de um mesmo "remédio". Trocando em miúdos: o que funciona para uma, pode não funcionar para outra, mas, pelo bem-estar da criança, vale a pena tentar tudo.

Com moderação.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Lições do Setembro Passado - Parte I

Nunca pensei que minha história fosse única. A maternidade acontece com quase todas as mulheres e bate à porta mesmo das que não sonhavam, não planejaram nem se preparam para exercer tal função.

Também nunca pensei que minha situação fosse singular. Não é preciso ir muito longe (aqui na Inglaterra) para encontrar mulheres de outras nacionalidades que estão criando seus filhos num país estranho e sem a ajuda de familiares por perto.

No edifício contíguo ao nosso, mora uma pequena família de imigrantes nigerianos: os pais e duas crianças - uma ainda de colo. E, invariavelmente (faça sol, chuva, frio ou calor), vejo aquela mãe passando em frente à janela da minha cozinha e, sofregamente, descendo e subindo um lance de escadas com um carrinho abarrotado de sacolas, mais a menina e o bebê.
Ela não tem um sorriso no rosto nem a cabeça erguida.
Na verdade, os três parecem ser bem quietos e não consigo deixar de imaginar que o silêncio seja o reflexo de uma vida tão melancólica quanto um dia nublado de outono em setembro... Ou talvez seja apenas o vento gelado soprando e impedindo que eles sorriem. Ou pode ainda ser como a música do REM, escrita pelo bateirista Bill Berry (é certo que não exatamente pensando nas mães durante o puerpério, mas no "Portal para o Inferno" dos adolescentes no colegial), tocando ao fundo:

When the day is long and the night
The night is yours alone
When you're sure you've had enough
Of this life, well hang on
Don't let yourself go, 'cause everybody cries
And everybody hurts sometimes
If you're on your own in this life
The days and nights are long
When you think you've had too much
Of this life to hang on
'Cause everybody hurts
Take comfort in your friends

E esta foi a primeira lição que aprendi no mês que passou: encontrar conforto em outras companheiras de jornada, em outras mulheres que atravessam o mesmo turbilhão emocional quando se tornam mães e recebem seus "bundles of joy" e percebem que eles não trazem somente alegria, mas incontáveis momentos de solidão, insegurança, medo e da mais pura loucura! Sim, loucura por acordar numa não tão bela manhã depois do parto e não se reconhecer mais no espelho!
Mas o livro de Laura Gutman, A Maternidade e o Encontro com a Própria Sombra, pode oferecer algum conforto e, no meu caso, muitas lágrimas por me identificar tão dolorosamente bem com a descrição da mulher puérpera nele apresentada.

No entanto, aqui vai o aprendizado de alguém há dois anos nesse estado emocional de loucura pós-parto: o livro serve apenas para restabelecer um pouco de lucidez à mulher, e não vai mudar o comportamento de parentes e familiares cheios de boas intenções, mas ignorantes das reais necessidades emocionais da mãe e seu bebê; não vai mudar a opinião daqueles que acham que os filhos (dos outros) são do mundo e se sentem no direito de reivindicar a parte que lhes cabe logo nos primeiros dias de vida do recém-nascido; não vai aumentar a faculdade de sentir de certos homens e diminuir seu desejo (sexual) de recuperar a mulher "perdida" em noites insones e inundadas com leite, vômito e cocô; não vai parar as engrenagens do sistema econômico descrito por Karl Marx no final do século XIX e sua busca implacável por lucro e por um período capitalisticamente curto e socialmente aceito de licença maternidade.

Não. O livro é somente um feixe de luz lógica para a mulher mergulhada na escuridão de sensações e sentimentos da maternidade. É um despertar racional do pesadelo recorrente (e que muitas de nós acredita interminável) que é a fase do puerpério. As palavras de Laura Gutman até ajudam a colocar os pingos nos "is" da "insegurança", "insensatez" e "incertezas" da recém (ou nem tanto, no meu caso) mãe, mas elas não podem administrar milagres. Ninguém pode. Nem mesmo os remédios antidepressivos prescritos erroneamente por médicos despreparados para entender a revolução emocional e psicológica pela qual passam as mulheres depois do parto.

Depende de cada uma de nós (com ou sem o livro, com ou sem o apoio afetivo de familiares, amigos ou do próprio pai da criança) encontrar algum conforto para as longas e solitárias noites do puerpério, aprender mais sobre nós mesmas e descobrir a melhor maneira de sermos as mães que podemos ser neste exato momento.

Pois como entoa uma grande amiga e também mãe: "Vai passar."

E o sol volta a nascer na manhã seguinte ao puerpério.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Mein Leben nach Rammestein

Gott weiß ich will kein Engel sein
Sex ist ein Schlacht
Liebe ist Krieg
ich tu dir weh und du jammerst laut
Ich warte bis es dunkel ist
die Zeit steht still und es wird Herbst

am Ende bleib ich doch alleine
Keiner hier weiß von meiner Einsamkeit
dieselbe Sache und das alte Leid
die Zeit steht still und mir ist kalt

So you think you can tell

Imaginem um veleiro de pequeno porte, uma chalupa à vela, partindo do Brasil rumo à Inglaterra...

Agora imaginem uma velejadora (literalmente, de primeira viagem) nessa mesma chalupa, atravessando o Oceano Atlântico debaixo de tempestade e com outros dois velejadores igualmente inexperientes.

Sem GPS. Carregando apenas um instrumento rudimentar de orientação: um confuso instinto materno. Mas basta um minúsculo erro no tal aparelho (a mudança hormonal do mês, por exemplo) para este perder a precisão e causar um desvio quase irreparável na rota da embarcação. E se essas imprecisões acontecerem com regularidade, toda a trajetória dos três tripulantes estará comprometida.

Não sei em que momento os erros começaram a ficar óbvios, mas eu tinha traçado uma vida diferente para a minha filha antes de ela nascer.

Nos planos, não havia chupetas ou televisão; tinha muito amor, conversas suaves ao pé do berço e cantigas de ninar; horas de música clássica e pintura em dupla; e, acima de tudo, eu pensava em ter mais entendimento e diálogo e dar menos palmadas e gritos de reprovação. 

Mas a realidade tem sido bem mais complicada e mais cheia de surpresas do que previ... E, quase vinte e dois meses depois de fitar o mundo pela primeira vez, a minha doce e inocente menina não é mais tão doce nem ingênua assim. Ela parece que entendeu que, aqui, só se ganha as coisas no berro e com muito choro e vômito pela casa!

Mas pior do que todas as crises (mal cheirosas) de pirraça da minha filha ou da pesada culpa por me sentir a mãe mais despreparada do planeta é ser julgada por pessoas que nunca deixaram o conforto de seus portos seguros e que assistem à nossa chalupa desviar da rota, colidir em obstáculos e possivelmente naufragar mais adiante, cheias de teorias.

Ah, como eu queria que vocês estivessem aqui...
So, so you think you can tell 
Heaven from Hell,
blue skies from pain.
Can you tell a green field from a cold steel rail?
A smile from a veil?
Do you think you can tell?

We're just 'three' lost souls swimming in a fish bowl,
year after year,
Running over the same old ground.
What have you found? The same old fears.
Wish you were here.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Confissões de uma Histérica

Nossa tão sonhada e planejada viagem de oito dias à Itália começou com o pé direito. Na verdade, com os dois pés. E na sala VIP para viajantes frequentes portadores do cartão fidelidade de platina. Graças ao meu marido, ter acordado às cinco horas da manhã para pegar um táxi e ir até o Terminal 1 do Heathrow valeu muito a pena, e não custou nenhuma das quase 19 libras cobradas por cada pessoa que deseja desfrutar desta sala, sem o tal cartão.

Para ser sincera, tudo o que dependeu do planejamento e da realização antecipada dele saiu com perfeição. Não houve correria de última hora para comprar passagens de trens, não houve supresas desagradáveis nos hotéis reservados, não houve um dia em que ele não gastasse uma boa quantia numa refeição requintada a três.

Mas o calor de 38º do verão italiano (inusitado para quem mora na Inglaterra há 17 meses) foi o suficiente para estragar meu humor...

Em realidade, ele foi apenas mais um pretexto para meus rompantes de cólera contra qualquer incômodo, desde o preço exorbitante de seis raviólis de espinafre e ricota e de uma piadina com tomate e maionese até a falta de civilidade dos garçons italianos! E o que parecia uma qualidade um pouco exagerada de uma típica leonina (a de reagir dramaticamente a qualquer pequeno infortúnio), provou ser a neurosa mais investigada de Sigmund Freud, a histeria. E lá estava eu, gritando palavrões horrendos em inglês para o meu marido nas ruas de Milão, de Florença, de Pisa e pelos canais de Veneza!

Pois é... Desde a adolecência, eu já apresentava o sintoma clássico da histeria dissociativa: o de sentir os estímulos que aconteciam ao meu redor com muita intensidade. Mas foi só em 2005, quando passei da condição de turista a residente legal da Índia, que o quadro se agravou: quando comecei a trabalhar no país e a lidar, diretamente, com a ineficiente burocracia estatal, com os funcionários corruptos do departamento de imigração, com o calor insuportável de Chennai e as monções torrenciais de Bangalore, com o tráfego infernal e a poeira persistente... Enfim, quando meu primeiro ano de paixão intensa pela Índia se transformou em uma relação menos baseada na magia da cultura local e eu percebi todos os problemas diários que uma mulher estrangeira precisava enfrentar naquele país. Com o agravante da minha neurose!

E, assim, faz seis anos que minhas explosões de mau humor aumentam de maneira inversamente proporcional ao pavio da minha paciência! Como fazer, todos os dias, uma tempestade num copo sempre cheio de água.

E, hoje, não sei se é por eu estar num outro país estranho (sem a família e com pouquíssimos amigos por perto para conversar!), casada com uma pessoa tão diferente de mim, cuidando praticamente sozinha da minha menina e de uma casa de dois cômodos e só conseguindo trabalhar de madrugada (quando ela já está dormindo), mas o fato é que tenho tornado a vida de nós três numa crise neurótica constante de gritos insanos e desproporcionais por qualquer mudança mínima de planos ou até de temperatura.

E são as pessoas que mais amo neste mundo as que mais sofrem!

domingo, 12 de junho de 2011

E agora, José?

Desde que minha filha nasceu, tenho quase travado uma luta para tê-la só para mim, ao ponto de logo ter aprendido a ir ao banheiro com um bebê nos braços!

Sim, a pessoa que nunca hesitou em deixar uma cidade e começar tudo de novo em outra, que nunca contemplou a ideia de casar e constituir família e que absolutamente nunca se imaginou como mãe, finalmente capitulou diante da criaturinha mais adorável que já tinha passado pela sua vida, concebida e saída das próprias entranhas.

E eu nunca amei tanto e tão intensamente um ser vivo quanto eu amo a minha Y.  E a recíproca parece verdadeira. Pelo menos até ela tomar plena consciência do mundo ao seu redor e for fazendo novas e mais interessantes amizades. Mas, por enquanto, o amor da minha filha por mim é incondicional. Ela não liga para o meu peso, para a minha aparência, para as minhas fraquezas e os meus erros do passado (e os que continuo cometendo no presente). Tudo o que lhe importa é o agora, a atenção e o carinho que lhe proporciono hoje.

Foi por isso que minha dor não poderia ter sido mais intensa, quando recebi um e-mail contendo um texto supostamente de autoria de José Saramago e me dei conta da finitude desse meu momento com minha Pequena.
Devemos criar os filhos para o mundo. Torná-los autônomos, libertos, até de nossas ordens. A partir de certa idade, só valem conselhos. (...)

Então, filho é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem. Isto mesmo! Ser pai ou mãe é o maior ato de coragem que alguém pode ter, porque é se expor a todo tipo de dor, principalmente da incerteza de estar agindo corretamente e do medo de perder algo tão amado.
Perder? Como? Não é nosso, recordam-se? Foi apenas um empréstimo! Então,
de quem são nossos filhos? Eu acredito que são de Deus, mas com respeito
aos ateus digamos que são deles próprios, donos de suas vidas, porém, um
tempo precisaram ser dependentes dos pais para crescerem, biológica,
sociológica, psicológica e emocionalmente.
E o meu sentimento, a minha dedicação, o meu investimento? Não deveriam
retornar em sorrisos, orgulho, netos e amparo na velhice? Pensar assim é
entender os filhos como nossos e eles, não se esqueçam, são do mundo!
Como seria bom se não fossem apenas empréstimo! Mas é. Eles são do mundo. O problema é que meu coração já é deles. É a mais concreta realidade. Só resta a nós, mães e pais, rezar e aproveitar todos os momentos possíveis ao lado das nossas ‘crias’, que mesmo sendo ‘emprestadas’ são a maior parte de nós !!!

É claro que ela é do mundo! Ela é a própria convergência do Oriente com o Ocidental, o encontro do Sikhismo fervoroso com o cristianismo pouco praticado, a mistura do samba com a música Bhangra, das masalas indianas com o temperinho brasileiro. E talvez seja precisamente essa a razão de eu querer mantê-la no ninho por mais tempo; de eu não desejar dividi-la, principamente com potenciais figuras maternas que podem me substituir; de eu estar com tanto medo deste vasto mundo ao qual ela pertence.

Porque, desde que ela nasceu, esse mesmo mundo se tornou um lugar mais perigoso aos meus olhos. E não são apenas os perigos mais óbvios que me assustam, como doenças e a violência. Toda vez que vamos ao parque brincar no playground da cidade, um tipo de interação com as outras crianças sempre me deixa apreensiva: quando há o empurra-empurra para descer no escorregador ou dirigir o carrinho.
Não sei se ela tem uma natureza mais pacífica ou se, de fato, fica intimidada com os maiores e mais fortes, mas o fato é que ela simplesmente não reage. Ela só se senta e observa os outros. Inerte... Eu posso até encorajá-la a lutar pela sua vez ou tirá-la do meio do caos infantil, mas não vou conseguir protegê-la o tempo todo de todos! E essa impotência me dói profundamente.

O escritor, jornalista, dramartugo, romancista e poeta português passou quase 90 anos nesse mundo, mas não deixou a explicação de como fazer isso: de como retornar o empréstimo de algo que foi intrinsecamente meu por 39 semanas; de como me acostumar a viver novamente sem a exclusividade desse amor incondicional; de como não sentir todas as dores e os sofrimentos passados pela extensão mais preciosa (e, no momento, indefesa) de mim mesma?

(...) E agora, José?
Você que faz versos,
que ama, protesta?
E agora, José?


quinta-feira, 9 de junho de 2011

Admirável Mundo Verde

Até sete anos atrás, eu não acreditaria se alguém me dissesse que existia sabor fora do mundo dos carnívoros.

Sendo uma ovo-lacto-vegetariana desde os 16 anos, passei mais de uma década no Brasil numa monótona dieta de "qualquer coisa" com queijo, além de ter minhas opções cerceadas a um canto afastado nos restaurantes brasileiros (de preferência perto dos banheiros, pois quem está interessado em comer alface numa churrascaria?) ou a cardápios pouco atraentes nos estabelecimentos comerciais para essa crescente minoria (por que a comida integral tem que ser tão insossa no locais "verdes"?)

Até que, em 2004, descobri um universo fantástico e altamente explorado de refeições sem carne nem peixe...
Na Índia, é claro. Na terra onde o vegetarianismo é tão sagrado quanto o próprio Hiduísmo e onde os sacerdotes da casta mais elevada dessa religião, os Brahmins, não podem comer nem ovo para realizar seus rituais nos templos hindus; na cultura que despreza tanto os carnívoros que tem senhorio (especialmente na parte dravidiana do país) que não aluga sua propriedade para não-vegetarianos!

E foi nesse canto do mundo que descobri como um simples arroz branco ganha novo sabor só com um pouco de sementes de cominho; que uma sopa-creme de cenoura se transforma com a adição de gengibre; que beringela e espinafre podem ser saborossímos quando contêm um pequeno pedaço de pimenta; que lentilhas podem ser tão coloridas quanto um arco-íris e não precisam ficar restritas à última refeição do ano.

E mesmo para os que possuem um estômago mais sensível e não toleram muito bem uma comida picante, não é difícil de se encontrar ótimas receitas sem carne. Desde março, quando voltei da minha mais recente visita à casa da sogra (e pude ver meninas com pouca educação prepararem delícias a partir de ingredientes básicos), decidi que não é preciso ser um PhD para ter algum domínio sobre a arte da gastronomia, e literalmente coloquei minhas mãos na massa.

Em cerca de três meses, aprendi a fazer o queijo (paneer) e os pães (chapati e parantha) indianos como se fosse uma nativa e, então, comecei a explorar novos territórios de outras culinárias mais refinadas. Aos poucos, fui descobrindo como também é possível ser extremamente original com comidas já consideradas tradicionais.

Os colonos italianos do sul do Brasil, por exemplo, ficariam surpresos de ver sua polenta grelhada e servida com molho à base de vinagre balsâmico e cogumelos, raspas de queijo parmesão e rúcula! Outros ficariam perplexos em comer torradas com queijo roquefort e pêras grelhadas com azeite e mel!

Delícias que me fizeram perceber como muitos de nós crescem com um tipo de alimento e não imaginam (nem tentam imaginar) que há várias e igualmente saborosas maneiras de comer a mesma coisa. Como um persongem saído das páginas de Aldous Huxley, condicionado biológica e psicologicamente a viver de acordo com as regras (e comidas) de uma sociedade. Mas não fui a única a perceber isso. Até minha sogra ficou deliciada quando experimentou meu molho pesto pela primeira vez em seus 58 anos de muita pimenta e pouco alho. E pediu a receita! E talvez venha a pedir outras.

Porque, para explorar o admirável mundo verde, não é preciso ser bravo. Basta ter fome por boa comida e um estômago aventureiro!

 

quarta-feira, 4 de maio de 2011

As Anas da minha vida

Não vou me gabar. Li apenas um livro de Léo Tolstói.
E aos 19 anos, durante uma crise branda de depressão, no ano mais sombrio da minha adolescência, conheci minha primeira Ana literária, a Karenina.

Essa era uma Ana perturbadoramente satisfeita com sua vida de mãe-esposa-e-dona-de-casa. Pelo menos, na superfície. Mas talvez fosse a única que uma mulher de respeito da Rússia do século XIX podia almejar a si própria...
Uma Ana perfeita levando uma existência perfeita, até que uma inesperada e sedutora tentação surgiu em uniforme militar e abalou todos os alicerces do seu mundo conhecido. E claro que esse romance acabou em tragédia, porque ia contra a ordem natural da sociedade da época que dizia, também nas grandes obras da literatura, que a mulher devia casar, ter filhos e cuidar da sua família, ao invés de buscar outro tipo de felicidade fora do lar e dos sagrados laços do matrimônio.

Mesmo imersa na minha dor juvenil e ainda que impressionada com o final do livro, aquela parecia uma história tão irreal e antiquada quanto seus caramanchões! (Alguém do final do século XX consegue imaginar tal coisa?) E acabou se dissipando na minha memória.

Quase duas décadas depois do meu encontro com a Karenina e, agora, eu mesma na condição de mãe-esposa-e-dona-de-casa, conheci outra Ana. Sem sobrenome.
Pois a Ana de Clarice Lispector pode ser qualquer uma de nós, pode ser uma parte de dentro de nós que está dormente e escondida, apenas esperando o momento certo para se manifestar... Provavelmente a chegada de um filho, quando o corpo engrossa e se torna sólido.

E assim como a Ana de Lispector, eu também caí num destino de mulher por caminhos tortuosos e, muitas vezes, fico incrivelmente "surpresa de nele caber como se o tivesse inventado." (...) A juventude anterior me "parece estranha como uma doeça da vida. Dela aos poucos emergi para descobrir que também sem a felicidade se vivia. (...) O que sucedera comigo antes de ter o lar estava para sempre fora do meu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim o quisera e o escolhera." 

Quase um século separa as personagens desses vizinhos eslavos (Clarice nasceu na Ucrânia). Os anos abrandaram a dramaticidade da mais recente e tornaram-na menos trágica, mas ela é igualmente prisioneira de um destino, aparentemente, já traçado para as Anas de qualquer lugar ou tempo.
A minha deixou as páginas da literatura e tomou conta dos demais cantos do meu ser há pouco mais de um ano. E temo que ela seja mais russa do que ucraniana, pois desde os 19 anos cultivo uma predileção pelo infausto.

Mas enquanto o trem não chega, só sinto a melancolia de uma certa hora da tarde, quando "o mundo se torna de novo um mal-estar".

terça-feira, 19 de abril de 2011

Uma flor no deserto

Tem se tornado cada vez mais difícil passear pelas ruas dessa imensa ilha sem se notar a diferença na fisionomia dos "residentes" mais recentes, sem se ouvir uma língua distinta da inglesa nos parques e supermercados de qualquer cidade pequena, sem se avistar alguém vestindo um traje da Índia, do mundo árabe ou de um colorido país africano.

Então vemos discursos de integração dos governos conservadores, espalhados pelos noticiários da TV e nas capas de jornais, perguntando por que essas pessoas não tentam se encaixar e fazer parte da paisagem em que vivem; por que não guardam as roupas típicas para alguma ocasião especial ou algum tipo de festival folclórico; por que não tentam aprendar o idioma local para poderem se misturar à população nativa? Não acredito que muitos deles estariam aqui, em primeiro lugar, se não fossem por mais discursos desses mesmos governantes sobre outras liberdades...

E é, nessas horas, que lembro como foram meus quatro anos na Índia. Como me senti violentada quando meu corpo foi abusado, diversas vezes, nas vias e nos meios de transporte público de Bangalore, porque não estava suficientemente coberto segundo os padrões indianos. Lembro como a língua oficial de Karnataka (kannada - uma das mais antigas e mais importantes da família das dravídicas) soava grotesca e repulsiva aos meus ouvidos brasileiros e como, com muita relutância, aprendi alguns vocábulos para poder me comunicar com os motoristas de rickshaw. Lembro (e sinto), vividamente, a cólera que corre nas minhas veias sempre que estamos na casa dos meus sogros ou de algum familiar do meu marido, e sou compelida a me transformar, a me vestir, a comer, a falar, a agir, a ser outra pessoa. Não importa se o teatro é só por duas semanas de férias ou duas horas no Skype. É uma violência contra o meu direito de simplesmente ser.

Não é muito diferente do que a Política de Estado do partido nacional-socialista fez na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Não é muito diferente do que os parlamentares franceses fizeram, em 2010, a respeito do uso da burca em público, em nome da igualdade entre os sexos e da liberdade contra a opressão feminina.

Em nome de muitas outras coisas já lutaram os países tecnologicamente superiores do oeste capitalista, cristão, democrático e sempre em busca das riquezas naturais do resto do mundo, mergulhado numa governança tirânica, numa ditadura totalitária, numa religião injusta. Mas os filhos de Judá perseguidos na década de 30 e 40 são os muçulmanos de hoje que, inoportunamente, ocupam terras encharcadas de petróleo e agora destruídas por tantas cruzadas e guerras santas. Por que se recusam a ser como nós, civilizados e instruídos?


Entretanto, no meio do Planalto Iraniano, perdida entre a milenar e cultural Peshawar da Rota da Seda e a atual Peshawar de religiosos extremistas, há uma flor com um sorriso radiante cuja beleza excepcional é cantada, em pashto, por Yasir Rehman: um muçulmano paquistanês que prova como o diferente e o desconhecido podem mexer com a sensibilidade de qualquer um, ainda que incompreensíveis (ou com uma tradução estranha). Porque nossa igualdade como espécie reside nos sentimentos, não apenas nos pensamentos.

Podemos sentir a mesma gama de emoções, mas temos o direito de pensar diferente, de sermos flores únicas no deserto, se assim o quisermos.




terça-feira, 5 de abril de 2011

A bolacha nossa de cada dia...

Eu sabia que, mais cedo mais tarde, isto iria acontecer.
No dia em que a minha filha (que rejeitou todo tipo de papinha insossa que eu havia feito na época do desmame) provou e gostou do nhoque de batata recheado com queijo e coberto com molho de tomate e manjericão que eu e o pai dela comíamos, eu soube que esse momento chegaria. O momento quase bíblico em que os pecados da gula e da ira fariam o nosso pequeno apartamento em Buckinghamshire tremer.

Foi num início de noite fatídico, por volta das 6 horas, quando as duas estavam esperando o chefe da casa chegar para podermos jantar juntos. A minha menina (bem esperta para os seus 16 meses de idade) se prostou na frente do armário (onde ela já sabe que as guloseimas ficam guardadas longe do seu alcance) e começou a grunhir para chamar minha atenção e a apontar para a prateleira mais alta. Eu imediatamente entendi que ela queria uma das bolachinhas amanteigadas com cobertura de chocolate belga que os pais sempre saboream nas tarde de domingo.

Mas só havia uma no pacote...

Cheia de relutância mas persuadida por suas chorosas súplicas, acabei entregando-lhe aquele redondo e delicioso pedaço do Paraíso, grande demais para sua mãozinha mas na medida exata para fazê-la abrir um emorme sorriso de poucos dentes e muita felicidade.

Mas a alegria durou pouco...

A tentação foi mais forte. Num golpe certeiro, quebrei a bolacha e rapidamente abocanhei o que pude. Houve um momento de silêncio só interrompido pelo meu mastigar convulsivo. E a pobrezinha parecia em estado de choque, sem entender o que havia acontecido, olhando ora para mim ora para o que havia sobrado em sua mão minúscula e delicada. Foi então que sua ira se fez ouvir e uma onda de culpa tomou conta do meu corpo. Não por ter tirado doce da minha própria criança (o que é realmente fácil), mas por ter introduzido, muito cedo na vida da minha filha, uma gama de alimentos refinados e saborosos.

Eu que já havia passado a adolescência escondendo comida dos meus irmãos, agora também terei que esconder essas iguarias (e comê-las sozinha durante as horas de cochilo da minha menina) por mais alguns anos, até perder o resto do meu guarda-roupa tamanho 42 ou achar um pingo de vergonha na cara pelos meus pecados da gula. Só não posso culpá-la por já ter desenvolvido, em menos de um ano e meio de existência, um paladar tão pouco infantil, pois ela foi concebida depois de um festim gastronômico no dia 13 de fevereiro de 2009.

Algumas horas antes de São Valentim (que celebra a união entre namorados, em certos países do mundo), eu e o futuro pai da minha filha nos banqueteávamos num restaurante italiano em Bangalore, com uma refeição de três pratos e uma garrafa de vinho tinto cada um. Trinta e nove semanas mais tarde, nasce o fruto de muito amor, comilança e bebedeira. E um fruto que não caiu longe da árvore. Desde seus nove meses, ela tem comido quase tudo que colocamos à sua frente e não duvido que comeria até mosquito, se estivesse bem temperado e diante de seus imensos e gulosos olhos castanhos...

Por isso, enquanto ela não sai desta recente e inusitada fase de só querer tomar leite (provavelmente ainda traumatizada pelo criminoso evento da bolachinha), minhas preces têm pedido ao Pai Nosso que está no Céu, mais pão para o nosso dia, mais ciabatas de azeitona, mais risottos de cogumelo, mais pastelões de espinafre e ricota e, claro, mais pacotes de bolacha belga. E que, por favor, perdoe todas minhas ofensas da gula cometidas contra minha própria filha e que me ajude muito a não mais cair em tentação.
Amém.


quinta-feira, 31 de março de 2011

Uma escolha difícil

No início do século XX, duas importantes ideias foram colocadas em prática.
Ideias essas que mudariam as relações familiares para sempre.

Durante as décadas de 30 e 40, uma série de descobertas tecnológicas permitiram que imagens distantes fossem transmitidas em tempo real e visualizadas numa imensa caixa preta. Era o início da era televisiva que aproximou povos e culturas diferentes, mas (para muitos) afastou membros da mesma família.

Também por volta dessa época, estabelecimentos para o cuidado de crianças estavam sendo formalmente criados pelos governos de alguns países industrializados. E o que começou como lugares (provavelmente tão insalubres quanto as próprias fábricas que os proviam) para manter os filhos das necessárias operárias durante a efervescência da indústria e a Segunda Guerra Mundial, acabou se institucionalizando e recebendo o status de educacional e pedagógico.

Hoje, as creches se tornaram parte normal na vida de uma família moderna cujos pais precisam voltar a trabalhar, mesmo com a recente chegada de um novo e indefeso indivíduo. Na verdade, alguns especialistas na área da educação e da psicologia chegam a afirmar que elas são uma fase fundamental no desenvolvimento da criança que ali aprendem a dividir, a ter estrutura e a socializar com seus pares. Afinal de contas, nas creches só há profissionais treinados em lidar com nossos adoráveis monstrinhos!

Ironicamente, a Inglaterra (talvez um dos primeiros países a criar e estabelecer essa instituição) oferece vários benefícios em dinheiro para as mães cuidarem de seus rebentos até eles completarem 16 anos de idade! Não é muito (o child benefit paga cerca de 20 libras por semana, por filho), mas já é um começo e poderia ser visto como um incentivo para mantê-las mais tempo em casa. E se isso ainda não é suficiente, um extensivo estudo realizado em 2005, no sistema de saúde britânico, concluiu que as crianças cuidadas por suas mães ou pais (não pelos avós, tios, babás ou professorinhas) nos primeiros três anos de vida são emocionalmente melhores desenvolvidas que as demais que acabam, sim, sendo negligenciadas numa creche. De acordo com a pesquisa, sem o contato físico dos progenitores, as crianças que passam a infância (algumas delas das 9h às 15h, cinco dias por semana) nessas instituições repletas de brincadeiras e atividades pedagógicas acabam se transformando em pequenos seres antissociais!

Infelizmente, a grande maioria das mães não tem o luxo de poder ficar com seus filhos e precisam retornar o mais rápido possível ao trabalho. Por outro lado, largar o emprego e sacrificar alguns anos em prol do desenvolvimento emocional do filho pode deixar sequelas profundas na mulher. Sim, porque antes de virar mães, passamos toda uma existência formando nossas personalidades e lutando como pessoas do sexo feminino contra as injustiças de gênero (no meu caso, foram 34 anos). E não é fácil colocar todo o resto do que éramos antes da maternidade em pausa para sermos simplesmente mães por três longos anos, principalmente quando não se conta com a ajuda dos avós, tios e até do marido ocupadíssimo para criar um filho.

No último ano, tenho passado por momentos cada vez mais frequentes de melancolia e culpa, por não conseguir mais doar tanto tempo da minha vida unicamente para minha filha sem ficar com raiva. Ainda faltam outros 18 meses até ela chegar na idade "correta" para frequentar uma escolinha, mas às vezes penso em recorrer aos profissionais da pedagogia infantil e deixá-la meio-turno numa creche. Mas sempre que tento recordar meus tempos de maternal (e segundo a minha mãe, eu já chegava lá chorando), não me lembro de nada significativamente bom, de ninguém em especial. Na verdade, só me lembro de três traumatizantes incidentes em que rolei abaixo um lance de escada, vomitei com o cheio nauseante de tinta numa aula de artes e no dia em que meu nariz sangrou ao descer no escorregador da instituição. E em todos eles, eu estava sozinha, me sentindo sozinha, sem meus pais por perto e sem a menor ideia de quem me socorreu.

No entanto, eu me lembro vividamente das horas lúdicas assistindo ao Sítio do Picapau Amarelo (e morrendo de medo da Cuca e do Saci Pererê), à novela Chispita, ao Chavez e Chapolin, ao Balão Mágico, além de uma série de desenhos animados no programa da Xuxa. Não sei se passei tempo demais na frente da TV e sofri alguma lavagem cerebral das empresas multinacionais que anunciavam nos intervalos comerciais. Acho que não. Só tive uma boneca Barbie e absolutamente nunca me vesti como a Rainha dos Baixinhos, mas hoje ganho dinheiro trabalhando na tradução e revisão de filmes e séries de TV!!!
Então, por que condenar o meio e seu conteúdo irrestritamente?

Para mim, a boa, velha e tão impopular TV continua sendo a melhor invenção do século XX para distrair a minha filha enquanto tomo conta dos outros afazeres domésticos, principalmente a programação infantil da respeitável televisão pública do Reino Unido, a BBC. Assim, nas manhãs de segunda a sexta-feira, deixo que a minha Pequena assista não a uma loira-modelo-e-manequim com roupas sensuais e desenhos que giram em torno do Bem contra o Mal, mas sim a vários apresentadores de diversas etnias e corpos imperfeitos (um deles inclusive é deficiente físico), com animações cuidadosamente produzidas para estimular as crianças e passar um tipo distinto de moral: o que explica que há outros povos e culturas no mundo, que não devemos maltratar os animais e que a diferença é extremamente saudável.

Essas três horas matinais diante do aparelho de televisão não significam que arranjei uma babá mais barata para cuidar e educar minha filha (já que, neste país, todos pagam uma licença anual para ver os canais de TV abertos). Quando o tempo permite, saímos para ir ao parque onde ela aprende a dividir os brinquedos, a esperar pela sua vez no escorregador e a socializar com outras crianças de cores e idiomas diferentes do dela. Além disso, a minha menina também tem aulas de música nos sábados, mas acompanhada dos pais e de outras famílias igualmente preocupadas em entregar seus filhos para o mundo de maneira gradual e assistida.

Que me perdoem os críticos dessa maravilha (muitas vezes maquiavelicamente utilizada), mas o melhor ajudante desta Homo Maternalis tem sido o programa infantil Cbeebies. Até para conseguir cortar as unhas da minha irrequieta filha.
  

terça-feira, 15 de março de 2011

Uma Produção B&J

Em 1972, o então desconhecido e pouco experiente diretor Geoge Lucas travava uma luta contra toda a indústria cinematográfica de Hollywood para escrever, produzir e lançar um despretensioso filme sobre sua adolescência durante o final dos anos 50, numa pequena cidade da Califórnia. Filmado com um orçamento baixíssimo e um roteiro extremamente incomum para a época, American Graffiti foi um sucesso de bilheteria, arrecadando cerca de US$ 100 milhões e tirando o jovem cineasta do anonimato.

Isso pode ser visto e ouvido diretamento do diretor, no DVD que marca o aniversário de quase 40 anos da película. Mas não foi a história bem-sucedida deste garoto de Modesto que chamou minha atenção, e sim uma de suas últimas observações feitas durante o comentário do filme sobre algumas das gratas surpresas que se consegue ao se lançar numa empreitada dessas. E não consegui evitar a analogia com minha situação atual.

Neste 7 de março, fez um ano que nossa pequena família de três desembarcou nesta ilha já tão cheia de imigrantes (segundo as estatísticas oficiais, eles são um em cada cinco residentes legais da Inglaterra), não em busca de uma vida melhor, mas de uma vida mais tranquila, longe principalmente dos parentes do marido. E mesmo sendo ambos experientes em viver no exterior, criar sozinhos um bebê de apenas quatro meses (afastados de qualquer rosto amigo, fora da terra natal e sem o conforto da língua materna) tem sido a decisão mais difícil que já tomamos.

E uma luta constante, travada sem a ajuda da família (a minha, é claro), sem os conselhos dos amigos numa posição semelhante e sem a simpatia da população local xenófoba. Aqui, também, os recursos humanos e financeiros são limitados, não há tempo para ensaios e não conseguimos seguir o roteiro original, porque nossa filha desde cedo mostrou sinais de ter personalidade própria e de querer atuar seu papel como lhe dá na veneta.

Por isso, vamos improvisando à medida que as coisas inesperadas da vida vão surgindo a cada passo que damos no árduo caminho da mater/paternidade. Não é fácil e quando finalmente temos uma fase atrás de nós, uma nova, mais barulhenta e emporcalhada aparece no horizonte. E sou um exemplo clássico (sempre dando dores de cabeça aos meus pais) de que elas são quase sem fim como a tal linha que separa o céu da terra...

Mas há as gratas surpresas que fazem cada noite mal-dormida, cada choro de birra, cada crise de pirraça da nossa B&J Produção valer muito a pena: nos momentos em que ela entende e reage (na maioria das vezes, contrariamente) ao que falamos; quando nos acorda nas manhãs das noites mal-dormidas, ainda sonolenta mas cheia de carinho para oferecer; e principalmente quando demanda meu colo para sentar e poder lamber a ponta do meu nariz ou beliscar minhas bochechas.

No entanto, ela é certamente digna de um Oscar pela melhor e mais inusitada performance na hora das refeições. Não acredito que haja muitas crianças que comem, desde os 9 meses de idade, espinafre com ricota, risotto de cogumelo, pasta al pesto e várias iguarias apimentadas da Índia.

Eu não preciso esperar 40 anos para dizer que a minha filha já é meu maior orgulho e que ela nos tirou não do anonimato, mas de uma existência quase medíocre. E, apesar de não carregar meu sobrenome, ela é verdadeira e legitimamente uma produção sikh-brasileira independente, de baixo orçamento e sem nenhuma experiência.

sexta-feira, 4 de março de 2011

A Desperate Housewife

Andei desaparecida nas últimas semanas porque meu dia estava tendo mais do que 24 horas. Para os outros.

Além de mãe-e-dona-de-casa (a função de esposa passou a ser exercida uma única vez a cada sete dias, quando meu corpo está exausto e quase inerte na cama e minha mente não tem mais energia para inventar desculpas), tenho trabalhado cansavelmente como tradutora e revisora de filmes e séries de TV das 9 às 5. Mas das 9 da noite às 5 da manhã, quando minha filha finalmente me dá uma trégua para ser a profissional que eu costumava ser antes de ela surgir no meu mundo.

E por falar na gravidez, foi também por essa época a última vez que devo ter conseguido dormir por longas 8, 9, 10 horas, sem interrupção, choro de fome ou vontade de ir ao banheiro. Trinta e nove semanas e dezesseis meses depois (mas ainda com muito do peso ganho durante a gestação), minha vida está de pernas (gordas) para o ar.

Não sei se tenho o direito de reclamar. Sou duplamente afortunada porque tenho um marido que pode sustentar a família para que eu possa ficar em casa e cuidar de nossa filha e tenho um trabalho como freelancer que me dá muito prazer (às vezes mais do que o de esposa) e as condições de exercê-lo de casa para que eu possa cuidar da nossa filha. Só não tenho o tempo para fazer as duas coisas bem.

Passo as horas claras do dia limpando, cozinhando, aspirando, lavando, alimentando, dando banho, trocando fraldas, tirando cochilos depois do almoço e tentando não perder a paciência, a esportiva e a razão e gritar com os dois únicos membros da minha família neste continente. Já nas horas sem sol, fico sentada diante do meu computador tentando me concentrar no episódio à minha frente e procurando esquecer a culpa por não ter levado minha menina ao parque no primeiro dia sem chuva em semanas.

E o clima neste reino frio, cinzento, depressivo e cheio de bolor é realmente digno das tragédias de Shakespeare. Não sei se é pior tentar ser mais forte que a Natureza e desbravar os espaços abertos e melancólicos desta terra ou testemunhar a vitória final Dela sobre o Homem e ver colônias inteiras de fungos filamentosos se alastrando pelos espaços úmidos, quentes e internos da casa.

Melhor mergulhar nas obras de ficção que sou paga para assistir e traduzir e escapar um pouco da realidade. O problema é que elas têm se parecido tanto com a minha! Talvez eu esteja apenas trabalhando demais. Ou me identificando excessivamente com a personagem de Felicity Huffman (Lynette Scavo) em Desperate Housewives que, na temporada 7, aparece com mais um bebê para cuidar. (Quem consegue manter aquele corpo ou a sanidade ou tomar banho diariamente depois de cinco filhos?) Ou talvez eu ainda esteja muito impressionada com algumas falas de Tina Fey no filme Date Night (traduzido como Uma Noite Fora de Série), mas o fato é que na maior parte do tempo que dedico à minha família, tenho uma vontade (crescente e quase irresistível) de largar o que estou fazendo e sair correndo porta afora. E só voltar depois de uma semana...

Não sei quantas temporadas eu vou aguentar nesse papel de mãe-dona-de-casa-e-ocasionalmente-esposa desesperada e em extrema necessidade de tempo para si própria. Não para me empanturrar com risotto de cogumelos nem para ficar num quarto escuro de hotel, tomando um refrigerante dietético. Mas simplesmente para dormir umas 12 horas sem interrupção alguma. E colocar o banho em dia.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Um pra lá, dois pra cá

Ultimamente, não tenho achado nada mais apropriado para definir o casamento (ou uma relação estável entre duas pessoas) do que as danças de salão.

Não importa se é algo tradicional e conservador como a valsa ou a polca, se é movido por profundas paixões como o tango, se é mais temperado como a salsa, ou se é um sensual balançar de coxas como a gafieira; as danças de salão são sempre executadas socialmente por um casal e o sucesso dessa executação depende da sintonia entre os dois membros do par.

Mesmo sem uma mesa de jurados nem um auditório para aplaudir e dar seu voto, se eles não estiverem afinadíssimos, acabam por perder pontos no relacionamento. E tudo se complica um pouco mais quando há um terceiro dançarino, porque é preciso ensiná-lo os passos de uma dança que ainda se está aprendendo.

Há quinze meses, nossa menina se juntou à dupla e continuamos a nos sentir extremamente inseguros na pista do salão. Será que estamos fazendo certo? Será que estamos lhe ensinando o que é certo? Será que estamos lhe dando muito amor e colo e tornando-a uma menina emocionalmente dependente?

Sete semanas de férias no Brasil e outras duas na Índia foram uma prova difícil e quase colocaram 10 meses de aprendizado em risco de desclassificação. Num ambiente estranho e com pessoas pouco conhecidas, ela voltou a dormir comigo, na mesma cama. Era como dar um passo pra frente e dois pra trás, estragando todo o ensaio anterior. E eu sinceramente temia que precisaríamos de um longo tempo para retomar do ponto onde havíamos parado.

Felizmente, minha filha provou ter um talento que nós dois desconhecíamos e acabou nos surpreendendo alguns dias após voltarmos pra casa, em definitivo. Agora, não apenas ela só dorme no próprio berço, como já mostra sinais de estar incomodada com a lâmpada de cabeceira acesa e de querer a luz apagada na hora de se entregar ao sono. Além disso, depois de, acidentalmente, jogar pra fora do carrinho as duas únicas chupetas brasileiras que havíamos trazido para a Inglaterra, ela deu mais um passo em direção à independência emocional e hoje é uma criança livre de qualquer calmante artificial aceitável pra sua idade, seja ele um bico, um polegar ou a ponta de um travesseiro.

Mas o que de fato colocou nosso trio amador de dançarinos de volta às pistas de dança e com boas chances de arrancar aplausos da plateia é a coreografia solo da minha filha: apesar de ainda parecer um pequeno ser com alto grau de embriaguez, ela já dá seus próprios passos sozinhas e tão logo reconheça o ritmo de uma valsa, tango, samba ou bhangra mostra o gingado que tem nos pés.