sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Resoluções de Ano Novo

Este ano, o Natal chegou mais cedo pra mim.
Foi no dia 22 de dezembro, durante o aniversário de quatro anos da filha de uma amiga minha. Não que o Papai Noel tenha caducado de vez e entrado pela chaminé da casa da Salisbury Road antes do previsto. O meu presente foi, na verdade, algumas das comidas servidas na festa.
Logo que chegamos no lugar, dei uma olhada rápida na mesa posta e cheia de doces coloridos e salgadinhos artificiais e achei que teria problemas diplomáticos com a mãe da aniversariante, ao tentar explicar para minha filha por que ela não poderia ingerir aquele tipo de 'alimento'. Mas minha menina ficou tão ocupada com os jogos e as brincadeira da festinha que não passou nem perto do 'canto proibido'.
Quem foi seduzida, em várias oportunidades, pela serpente da gula fui eu mesma.
E o diabo com a bandeja tentadora não vestia Prada, mas tinha um sorriso redondo e convidativo nos lábios ao me convencer a provar os sanduíches que ela tinha feito em casa, especialmente para mim.
Assim, depois de mais de dois meses sem comprar nem consumir ovos (e passando - com sucesso - por uma torturante e sofrível fase de síndrome de abstinência), eu finalmente sucumbi àqueles deliciosos triângulos de pão integral, recheados com maionese e ovos cozidos. Não uma, nem duas, mas três pecaminosas vezes. Alguns ainda tinham queijo, o que consequentemente aumentou o peso da minha culpa.
Mas espera aí. Culpa? Por comer laticínios e ovos cozidos? Não eram nem fritos! Além do mais, a gema já foi absolvida pelos médicos e não eleva o mau colesterol! Ninguém saiu prejudicado, então por que a culpa?
Bem, já é bastante difícil explicar as razões por trás do veganismo para os indianos acostumados à ideia do vegetarianismo. Como refutar o sólido argumento de que o leite de vaca bebido pelo rei Rama (o sétimo avatar do deus Vishnu, segundo as escrituras sagradas hindus) é igualmente puro e, portanto, digno de ser consumido? Como contestar a crença religiosa milenar de que tudo que vem do tal quadrúpide ruminante da família dos bovídeos é sagrado? Como destruir a ilusão de que, desde a metade do século passado, os mamíferos das raças leiteiras também são tratados com crueldade na Índia, para que a indústria alimentícia consiga dar conta (com lucro) da alta demanda de seus produtos e derivados no país.
Agora, imaginem como é complicado tocar no assunto com não-vegetarianos, ainda mais quando a alimentação de uma menina de três anos está em jogo!
Se antes da minha filha começar a desmamar eu já sofria críticas sobre a minha decisão de não oferecer carne de espécie alguma a ela, depois que me resolvi pelo veganismo a censura à minha irresponsabilidade tem sido ainda maior. Mas me parece que o que as pessoas, na verdade, condenam na minha atitude não é a questão da saúde dela a longo prazo (porque a maioria sabe que eu me preocupo muito em dar a ela uma dieta diversificada e colorida, rica em frutas, verduras, leguminosas e cereais integrais), mas no fato de que está sendo 'privada' das coisas boas da vida e de que ela deveria ser a responsável por essa escolha, não a mãe!
Sim, no tempo certo ela vai ser.
Eu optei pelo vegetarianismo aos 16 anos, mas ela só tem três e, por mais esperta que seja, não apresenta condições intelectuais para tomar uma decisão dessas no momento!
E esse é o real dever dos pais: ensinar o certo do errado (mesmo que seja errado só para eles). Não é função nossa nos sentarmos com os filhos e mandá-los decorarem o alfabeto ou a tabuada. Isso eles vão aprender na escola. Mas é em casa que se formam os hábitos alimentares e é no prato que pretendo passar para minha filha o mais importante (e negligenciado) dos dez mandamentos: não matarás. Nem uma vida. Pois é possível viver a sua própria de maneira saudável e saborosa, sem prejudicar a dos outros, a das outras espécies.
E foi isso que ganhei de Natal esse ano: o pecado, a culpa e o arrependimento.
Sim, eu sinto muita falta de queijo e ovos e meu mundo vai ficar bem diferente sem pizzas e sorvetes 'tradicionais'. Mas ceder aos prazeres da carne (e da pequena porção de carne restrita ao interior da boca e à língua) pelo sacrifício de outros tipos de carne não é mais uma opção pra mim.
Mas essa resolução de Ano Novo minha já tinha sido tomada em meados de setembro. A nova é que não vou mais me deixar levar pela tentação com medo de ferir os sentimentos de amigos não-vegetarianos. 
 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A química da maternidade


No segundo grau, eu detestava química. Mais precisamente a química inorgânica.
Eu simplesmente não conseguia entender aquele monte de equações e nomenclaturas monstruosas como, por exemplo, a CNTP.
Mas a culpa não foi do meu professor que, por mais apaixonado que fosse pela disciplina em questão, não conseguiu me transmitir gosto nem entendimento sobre química e eu acabava decorando (ou colando) regras e fórmulas matemáticas para passar nas provas e me ver livre de pressão atmosférica, graus Kelvin e outros conceitos impermeáveis à minha mente de então.
E essa foi provavelmente a causa do meu dissabor pela matéria. É  muito difícil para qualquer adolescente de 15, 16 anos (com pouca ou nenhuma experiência real de vida) absorver ideias tão distantes do seu cotidiano como os termos isobárico ou adiabático.
Ainda hoje, vinte anos depois de finda minha educação secundária, preciso realizar um esforço intelectual extraordinário para imaginar o que aconteceria com o volume de uma substância em estado gasoso, se a pressão ou a temperatura do recipiente que a contém sofressem alguma variação. Eu só consigo fazer associações com o feijão que coloco na panela de pressão para virar nosso almoço. Basta usar muito calor e pouca água e me resta apenas comida congelada para alimentar minha família.
Outro exemplo em que as condições anormais de temperatura e pressão podem resultar em grandes prejuízos a um ou mais corpos é o casamento com filho (s).
Dois anos e meio criando uma menina longe de parentes e amigos, numa terra estranha e falando uma língua diferente da materna mudaram as variáveis da fórmula da mãe ideal.
Talvez se eu tivesse as oito horas requeridas de sono por noite; talvez se eu conseguisse tomar um banho morno e solitário diariamente; talvez se eu pudesse ler aquele livro juntando poeira na cabeceira da cama; talvez se eu morasse em outro lugar com outro clima; talvez se eu tivesse os amigos certos por perto; talvez se eu contassse com a ajuda da família ou apoio emocional do marido; talvez se a pressão de criar uma criança praticamente sozinha fosse menor e a depressiva temperatura da Inglaterra fosse maior...
Não, provavelmente seu seria a mesma mãe, histérica e impaciente.
Não importa se o pai da minha filha faz o que pode (dentro das limitações indianas em que está inserido) para tornar nossas vidas mais confortáveis. Não importa se recebo conselhos e mensagens de encorajamento à distância. Não importa se orgânica como a maternidade ou inorgânica como a escolar, a química não parece ser o meu forte.
E nas provas diárias dessa matéria, não tem como usar a cola.
 

Ode à culpa

Where do I take this pain of mine
I run but it stays right by my side

So tear me open and pour me out
There's things inside that scream and shout
And the pain still hates me
So hold me until it sleeps

Just like the curse, just like the stray
You feed it once and now it stays
Now it stays

So tear me open but beware
There's things inside without a care
And the dirt still stains me
So wash me until I'm clean

It grips you so hold me
It stains you so hold me
It hates you so hold me
It holds you so hold me
Until it sleeps

I don't want it, I don't want it, want it, want it, want it, want it, noo..


By Metallica

domingo, 30 de setembro de 2012

I wish I wasn't your mother


Dia desses, quando estava na Biblioteca Central de Watford procurando por um livro que tivesse significado na minha vida atual, bati os olhos na obra de estreia de Carole Patti Clarke e tive certeza de que tinha encontrado a leitura que precisava naquele momento.
Mas eu não consegui passar das primeiras páginas.
O título (I wish you weren't my Mummy) era tão forte e doloroso quanto a estória (supostamente baseada em fatos verídicos) de Lorne - uma menina que teve uma infância de maus tratos num remoto vilarejo da Inglaterra, durante a década de 60.
O sumário soava tragicamente familiar.
De natureza dócil e imaginativa, Lorne era filha de um irlandês e uma indiana que cresceu sofrendo os abusos da mãe, até conseguir escapar do jugo materno e das quatro paredes do lar violento e da mistura cultural-religiosa insuportável.
Eu retornei o livro à biblioteca logo depois de pegá-lo emprestado, sem ter, de fato, começado a leitura.
Mas estava tão obscecada por ele que acabei comprando uma cópia só pra mim.
Só para poder passar a mão, quando me desse vontade, pelas páginas carregadas de um drama já tão experimentado e revivido.
Ou quando me batesse a culpa.

Não sei ao certo.
Só sei que é apenas isso o que tenho feito, porque ainda não tive coragem de mergulhar em sua narrativa triste e cheia de violência, e ele meio que se perdeu entre as montanhas de roupa do meu guarda-roupa.
Ainda não tive coragem de ouvir a voz de Lorne contando sua estória por uma boca que eu conheço há quase três anos.
Y., como eu queria que não tivesse sido a tua mãe!
Tu merecias alguém melhor.

 

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Different is good

Não consegui traçar a origem exata desta tradição, mas meu palpite é que o baile de debutante (ou "the coming-out party", em inglês) tenha raízes tão remotas quanta a mais antiga das monarquias européias, a Família Real Dinamarquesa. E essa ligação fica mais evidente quando se descobre que o costume de apresentar, formalmente à sociedade, as jovens da nobreza em idade de casar era tão importante em algumas cortes (como a londrina do século XIX) que marcavam o início da temporada social daquele país.
Com o passar dos anos, no entanto, a prática foi perdendo prestígio e significado até perder, por completo, o apoio da Rainha Elizabeth II e ser abolida dos salões reais da Grã Bretanha em 1958.
E, apesar de ainda persistir em ciclos menos nobres da sociedade de diversas partes do mundo, o outrora importante baile deu origem linguística a outro fenômeno social mais contemporâneo. "Coming-out of the closet" se tornou uma figura de linguagem para as minorias que assumíam, publicamente, uma diferente orientação sexual ou identidade de gênero.
E tudo começou em 1869, quando o alemão Karl Heinrich Ulrichs defendeu, pela primeira vez na História, os direitos dos homossexuais e pregou a ideia de "sair do armário" como uma forma de emancipação e de mudança na opinião pública.
Quase 150 anos mais tarde, o movimento ainda está em sua infância e muito ainda precisa ser feito para se alterar antigos preconceitos e difundir o slogan de que "gay is good".
E parece que o maior obstáculo sempre começa em casa, num ambiente familiar rigoroso.
Não importa muito se a questão é sexual, religiosa ou relacionada com a cultura, tudo o que é diferente e se opõe ao modo de pensar e de agir daquele determinado grupo de pessoas acaba virando tabu (e uma batalha pessoal a ser travada).
A minha começou três anos atrás, no dia em que entrei para uma nova família pelas portas do casamento e passei a fazer várias coisas (como deixar o cabelo crescer), para ser aceita entre os membros da religião do sikhismo. E lá se foram mais de mil dias da minha vida tentando me encaixar num armário pequeno demais para conter minhas largas medidas de liberdade e ousadia.
Até o 23 de agosto, quando as longas madeixas de mulher (praticamente) indiana deram lugar aos curtos fios da tomboy brasileira.
Foi um alívio pôr fim ao fingimento.
Foi uma alegria redescobrir minha identidade e rever meu redemoinho.
Foi muito bom voltar.
Mas ainda não saí do armário.
Meus sogros ainda não viram minha drástica mudança capilar e ainda não tive meu baile de debutante para ser devidamente apresentada à sociedade Sikh. O que eles conhecem é a grávida de cinco meses que se converteu e se casou às pressas, fazendo um monte de promessas incabíveis num idioma que não entendia, só para dar um pai à criança que esperava.
Está na hora de eles terem um encontro com a gaúcha de 37 anos que nasceu acidentalmente no Rio; vegetariana; católica nada-praticante; ex-jornalista; diarista da família em tempo integral e mãe da neta deles (que carrega metade dos meus genes e da minha cultura).
Está na hora de esses seguidores do sikhismo (cujas escrituras sagradas "enfatizam o princípio da igualdade de todos os seres humanos e rejeitam a discriminação por sexo, casta e credo) provarem que o diferente também é muito bom.
 

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A Medalha de Prata

Eu só vim conhecer Andy Murray no começo de julho de 2012, quando a imprensa britânica iniciava sua intensa campanha para promover (para as grandes massas incultas - eu incluída) a conquista deste escocês que entraria para a história do tênis nacional.
Segundo as manchetes dos jornais e as chamadas na TV, o jovem de 25 anos era o primeiro, em mais de 70 anos, a colocar o Reino Unido numa final de Wimbledon. Ou seja, desde 1936 (em 38, Bunny Austin conseguiu apenas o segundo lugar), quando Fred Perry venceu o torneio mais antigo e prestigiado do mundo pela última vez, a bandeira da Union Jack não era içada no pódio daquele estádio.
Mas o garoto de Dunblane que havia sobrevivido ao massacre na Escola Primária do vilarejo, em 1996 (no qual 16 crianças e uma professora foram mortas a tiros por Thomas Hamilton), não escapou à carnificina esportiva que tomou conta da quadra central de Wimbledon, no dia oito de julho de 2012.
Ali, do outro lado da rede, a experiência de Roger Federer (com, então, 16 títulos em Grand Slams) viravam o jogo contra um homem e toda a sua nação de maneira tão elegante e comedida que parecia que o suíço era desprovido de qualquer sentimento. Até o ponto final, quando Federer desabou no chão em lágrimas e retribuiu os aplausos da plateia com vários dos seus cativantes sorrisos.
Quem também chorou muito com o resultado foi o próprio Murray, que sentiu ter desapontado quinze mil amantes do esporte em Wimbledon e outros quinze milhões de espectadores que assistiam à partida pela TV e o incentivavam com palavras de apoio do tipo Go Andy! Mas, num discurso emocionado antes da entrega dos troféus, o escocês consolou os fãs britânicos dizendo que estava próximo de um título.
Parecia um presságio.
Andy estava mais perto de uma vitória do que todos podiam imaginar.
Menos de um mês depois da final do Torneio, os dois se encontrariam novamente no mesmo campo de batalha, a sudoeste de Londres. Mas, desta vez, o prêmio que estava em disputa era uma medalha olímpica. E o jovem Murray lutou muito em uma hora e 56 minutos de jogo e mereceu cada uma das seis gramas de ouro da peça de metal que conquistou para pendurar no pescoço.
Suas lágrimas, naquele domingo, pareciam mais de alívio do que de alegria, pelo fim da responsabilidade de atender às expectativas de mais de 60 milhões de britânicos. No dia cinco de agosto de 2012, Andrew Murray se tornava o primeiro cidadão da Grã Bretanha a ganhar uma medalha de ouro no tênis masculino, desde 1908. E a primeira pessoa que ele foi procurar na arquibancada para dividir sua vitória não foi o pai (com quem viveu desde os 9 anos, depois da separação dos progenitores) nem a mãe (ex-jogadora e treinadora do esporte na Escócia), mas a namorada Kim Sears.
E foi naquele momento que esta brasileira chorou.
Chorei por Judy Murray. 
Chorei porque também sou mãe e sei das coisas que fazemos ou deixamos de fazer por eles; chorei pelas noites mal-dormidas e pelos dias do mais debilitante cansaço; chorei pelas alegrias e tristezas que nos dão; e chorei pelos erros que cometemos e cometeremos, imaginando ser o melhor para nossas crianças.
Sim, Judy pode ter sido uma mãe severa e uma profissional rigorosa, pode ter tido demasiada influência no filho e pode ter tomado as decisões erradas que atrasaram a carreira de Andy, mas, naquele dourado domingo de agosto, ela ficou com o amargo segundo lugar.
E foi por isso que eu chorei.
Não importa quanta dedicação e amor coloquemos nesta relação, chega um dia, na vida de nossos filhos, que ficamos apenas com a medalha de prata em seus corações.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Alguns dias são melhores que outros

Paul David Hewson conheceu Alison Stewart aos quinze anos, em Dublin, 1975, e os dois acabaram se casando sete anos mais tarde.
Três décadas depois e quatro filhos em comum, os dois continuam juntos. Mas, certamente, durante todo esse tempo e com uma família tão numerosa, Bono deve ter entendido que alguns dias são melhores que outros.

Some days take less, but most days take more
Some slip through your fingers and onto the floor
Some days you're quick, but most days you're speedy
Some days you use more force than is necessary
Some days just drop in on us
Some days are better than others
Some days you wake up with her complaining
Some sunny days you wish it was raining
Some days are sulky, some days have a grin
Some days have bouncers and won't let you in
Some days are honest, some days are not
Some days you're thankful for what you've got
Some days you wake up in the army
And some days it's the enemy
Some days are work, most days you're lazy
Some days you feel like a bit of a baby
Lookin' for Jesus and His mother
Some days are better than others
Some days you feel ahead
You're making sense of what she said
Some days are better than others
Some days you hear a voice
Taking you to another place
Some days are better than others

Eu só tenho uma menina e meu casamento recém fechou seu terceiro ano, mas eu também sei o quê o humor flutuante de uma criança pode fazer nas vinte e quatro horas do meu dia.
Quando ela faz manha para tirar o pijama e colocar uma roupa assim que acorda; ou a mesma pirraça para escovar os dentes de manhã e à noite; quando chora para pentear o cabelo;  quando abre um berreiro para não tomar banho e, depois, outro para não sair dele; quando tenho que ir atrás dela com uma colher cheia de comida, implorar para ela comer alguma coisa e ameaçá-la de não dar a mamadeira naquela noite; ou quando tenho que ser firme, ouvir uma choradeira e dizer que o chocolate acabou; quando ela pinta as paredes da casa que alugamos ou entope os brinquedos com massinha de modelar; quando ela não consegue e também não me deixa dormir à noite nem no meio da tarde.
É claro que tenho dias melhores que outros e, em muitos, sou extremamente grata por ter na minha vida um ser tão cheio de amor, curiosidade, inteligência, energia e de uma lógica infantil maravilhosamente singular.
Mas, nos outros, eu peço que eles terminem bem rápido, porque me sinto um pouco como um bebê, procurando pelo consolo de Jesus e da Virgem Maria.

A little splash of happiness

Estávamos todos no carro, a caminho de Harrow, e o sol parecia um pouco acanhado, mesmo num agradável e ensolarado fim de tarde de junho. Minha filha, na sua maravilhosa confusão linguística e sempre muito conversadora, disse do seu assento no banco de trás do carro que o "sol play hide and seek co' nuvem." Ou seja, o sol estava brincando de esconde-esconde com os imensos conjuntos de partículas de água suspensos no céu de Hertfordshire.
E este foi um breve momento feliz que eu tive naquele dia; um curtíssimo período no espaço e no tempo em que sorri para mim mesma cheia de um contentamento passageiro.
Pois assim parece ser a mais real e tangível noção de felicidade que podemos ter: a de uma sensação boa mas extremamente fugaz. Ou, nas palavras da escritora escocesa Isla Dewar em seu livro "The Consequences of Marriage": um pequeno respingo.
E um respingo geralmente sentido enquanto fazemos algo que gostamos.
Como tomar um banho morno no final de um dia cansativo; comer um pedaço de pão quentinho com uma generosa porção de manteiga derretendo; dividir a cama de casal com a filha, tirando um cochilo no meio da tarde; ficar mesmerizada com uma torrente de palavras em três idiomas dessa mesma menina; ter um vislumbre do céu azul e sentir o brando calor do sol na pele depois de várias semanas de tempo nublado; ouvir os pingos da chuva batendo na janela de casa; saborear chocolate e vinho tinto no café da manhã.
Sim, logo pela manhã, como fez e ponderou a respeito a personagem septuagenária da tal obra de Isla Dewar, Bibi Sanders, que levou uma vida difícil mas muito intensa. Segundo sua lógica de mulher sábia que teve cinco filhos e um casamento de 40 anos, se ambos fazem bem para a pressão sanguínea, por que limitar seu consumo só pela noite? Por que nos conter, nos restringir, nos aprazar?
Já que ser feliz se resume a apenas alguns respingos efêmeros numa longa jornada de 50, 60, 70 anos, vamos entornar um balde deles diariamente, fazendo o que nos enche de contentamento e nos coloca um largo e genuíno sorriso no rosto. Vamos brincar de esconde-esconde com nossas crianças e com o sol e com as nuvens e com o que mais elas descobrirem para nos encharcar de felicidade

terça-feira, 5 de junho de 2012

Os versos da minha maternidade

Durante todos os meus anos como mulher adulta, eu costumava olhar para os erros, enganos e desvios cometidos no meu caminho como 'blessings in disguise', bênçãos disfarçadas que me tornavam um ser humano melhor e mais experiente. Nunca houve espaço para arrependimento.
As pessoas entravam e saíam da minha vida por alguma razão; eu entrava e saía de lugares por algum motivo; acertos e desacertos aconteciam para provocar alguma reação; e eu seguia a jornada com feridas bem cicatrizadas ou alguns quelóides dolorosos.
Até que, no meio da minha estrada evolutiva, a porta para a maternidade se abriu e, com ela, entrou o dever winnicottiano de ser uma "mãe suficientemente boa", de não fazer nada aquém nem além do necessário para o pleno desenvolvimento das potencialidades da minha criança, de criar um ambiente seguro e afetivo para o meu bebê crescer, piscológica e fisicamente, da maneira mais saudável possível.
Foi neste momento, dois anos e 7 meses atrás, que caminhões e mais caminhões de remorso e culpa começaram a se acumular no canto mais precioso do meu coração, porque não consigo ser a mãe idealizada pelo pediatra inglês Donald Winnicott. Não consigo nem ser razoavelmente boa, apesar de todo o amor que tenho pela minha filha.
Sou um produto neurótico do meu meio familiar, um ato falho materno e, mesmo errando com as melhores das intenções, já sinto nos ombros o peso saturniano das faltas cometidas contra minha própria prole; já vejo outro inglês, o poeta Philip Larkin, sentado na quinta casa do meu mapa astral, me olhando por trás das lentes de seus óculos e com um sorriso cínico no canto da boca a me sussurrar: "This be the verse [of your motherhood]."

They fuck you up, your mum and dad.
  They may not mean to, but they do.
They fill you with the faults they had
  And add some extra, just for you.

But they were fucked up in their turn
  By fools in old-style hats and coats,
Who half the time were soppy-stern
  And half at one another's throats.

Man hands on misery to man.
  It deepens like a coastal shelf.
Get out as early as you can,
  And don't have any kids yourself.

Só espero que algum dia, depois de sair de casa cheia de traumas, neuroses e rancores pelas faltas da mãe, minha filha possa me compreender e me perdoar. Porque, ainda que eu mesma tenha sido 'fodida' na cabeça, nunca me arrependi da porta que se abriu no meio da minha estrada evolutiva.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Parafraseando Sartre...

Há pessoas que acham que a gravidez, o ato de dar à luz e a maternidade são os momentos mais profundos e femininos na vida de uma mulher.
Pessoalmente, não acredito que esses eventos estejam restritos ao gênero e acho que eles sejam, de fato, uma experiência cármica de proporções cósmicas imensuráveis, que abalam as trajetórias de evolução de dois ou mais espíritos, mútua e constantemente.
Eu planejei minha cesária. Eu escolhi o nome e o dia em que minha filha viria ao mundo, com base no melhor resultado que a numerologia online podia me oferecer. Eu consegui intervir ainda mais e cheguei a marcar a hora que ela iria nascer; mas os minutos e segundos que determinariam o arranjo planetário do exato instante em que ela fosse inspirar o prana pela primeira vez estavam absolutamente fora do meu controle.
Assim, a fotografia do céu (com sua distribuição de signos, planetas e aspectos pelas doze casas do seu zodíaco), ou seja, o mapa astrológico da minha filha troxe formações e elementos inesperados. Parecia um aviso divino dizendo que, mesmo podendo conceber uma vida, eu não era Deus; parecia um lembrete, tatuado num plano superior, do que precisávamos retomar de um passado em comum.
E lá estava minha menina com sua Lua em Câncer, fazendo quadratura com Saturno.
Para quem não entende de astrologia, essa é uma posição extremamente desfavorável e tem repercussões profundas na psique da criança, além de ser uma das piores culpas para uma mãe carregar. Segundo a interpretação dada pelo próprio site que me mostrou o aspecto planetário:
"Her relationship with her mother is disturbing and difficult, she has considerable family problems. This is the standard aspect for children who are abandoned or lack maternal love."
Estranhamente, desde que ela nasceu, tenho ouvido, mais ou menos, o mesmo tipo de comentário de pessoas próximas a mim ou não: "Tão bonitinha! Se não quiser, pode me dar que eu cuido!"
Nunca descobri se isso é uma coisa comum de uma mãe ouvir ou se a maldita quadratura já pairava acima da minha cabeça, mas o fato é que venho, desde então, me perguntando se eu seria capaz de abrir mão daquele bebê que eu tanto queria só para mim.
E, em abril, quando me deparei com o livro de Margaret Forster, "Shadow Baby", sobre duas meninas abandonadas pelas mães por razões e em épocas diferentes, achei que entenderia os motivos 'maternos' para um ato desses.
Apesar do abalo sísmico que a leitura me causou, não consegui me identificar com o perfil psicológico das protagonistas. Eu não era jovem nem estava economicamente desamparada quando engravidei da minha menina, e também não a acusei de ser o resultado de uma entrega amorosa ingênua.
Pouco mais tarde, encontrei outro título que chamou minha atenção: "The Child Inside" de Suzanne Bugler, que narrava a estória, em primeira pessoa, de uma mulher de 40 anos, insatisfeita com a vida de mãe-esposa-e-dona-de-casa após perder o segundo bebê com 7 meses de gestação. Não passei por tal perda, mas o descontentamento e a amargura de Rachel me soaram muito familiares e me mostraram que o relacionamento ruim entre os pais pode, igualmente, desestruturar o emocional da criança.
E foi então que eu entendi.
Em qualquer lugar no mapa astral, Saturno é um planeta muito difícil, limitante, castrador; e uma quadratura com a Lua pode mostrar uma figura materna com características semelhantes. Dessa forma, ao invés de um desapego total (que levaria ao abandono), eu desenvolvi um amor quase patológico pela minha filha, mantendo-a só para mim; tirando-a, deliberadamente, do convívio com os avôs paternos; negando sua herança indiana; e, principalmente, limitando o número de pessoas que podem competir comigo por seu carinho e atenção.
Eu acabei me tornando uma mãe saturniana, pronta para devorar meu filhote.

Não vai ser nada fácil, mas é aqui que tenho o poder (e o dever) de, mais uma vez, intervir nos nossos destinos e criar um carma positivo para nós duas, pois o que está escrito nas estrelas e nas doze casas zodiacais de cada indivíduo não é uma sentença final e definitiva.
Ter a lucidez de que nosso encontro espiritual não foi casual (mas causal) é o início para poder melhorá-lo.
E, parafraseando o filósofo existencialista:
Não importa o que foi escrito para mim (ou minha filha); o que importa, é como vou agir com aquilo que escreveram para nós.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

What is the cure?

Eu tinha apenas um ano quando a banda inglesa de rock alternativo The Cure era formada na pequena cidade de Crawley, em West Sussex, mas algumas das músicas de Robert Smith acabaram fazendo parte da trilha sonora da minha adolescência, no final dos anos 80.
O irônico é que, somente agora, vinte e poucos anos depois, as letras atormentadas do vocalista e compositor gótico passaram a fazer sentido na minha vida, como "In Between Days" :
"Yesterday I got so old
I felt like I could die
Yesterday I got so old
It made me want to cry [...]"
Então, resolvi entender melhor essa sensação e descobrir se meu corpo está realmente tão velho quanto o coração o sente, e fiz um teste online para saber minha idade interior (http://www.idadeinterior.com.br/). O resultado foi perturbador e, segundo o tal site, já tenho 40 anos! 
Mas acho que envelheci não apenas por ter me tornado mãe e parado de fazer as atividades físicas que eu fazia antes da gravidez (ou durante! Eu corria na esteira até um mês antes da minha filha nascer). Também não foi por eu ter largado o emprego recentemente e qualquer outro tipo de hobby e só estar me dedicando à casa, à cozinha e à Pequena.
O problema é bem mais antigo, mas só começou a me incomodar com a chegada da minha menina, quando se tornou impossível conviver com os sintomas.
Faz muitos e muitos anos que sofro de solidão.
Não, não é depressão. É solidão mesmo. É um estado emocional que me torna incapaz de me conectar intimamente com as pessoas e acaba me distanciando e isolando delas.
Na adolescência, o excesso de peso foi o disfarce que ela usou para me encurralar nos cantos das salas de aula e das reuniões dançantes, sempre me cobrindo com uma roupagem de inadequação e baixa auto-estima.
Eu simplesmente não conseguia pertencer a nenhum grupo.
E logo cedo fui procurar refúgio em longas viagens ao exterior, em países que eu não compreendia a língua nem a cultura e que passaram a me dar a perfeita desculpa para fermentar, ainda mais, o sentimento de solidão.
Mas fuji por muito tempo e fui longe demais, e acabei me casando e concebendo uma criança com um homem tão diferente de mim que não conseguimos nos entender nos menores assuntos dos breves momentos familiares que compartilhamos.
Não concordamos em quase nada, mas decidimos, juntos, viver distante da família dele, num território neutro, para criarmos nossa filha, aparentemente nosso único ponto em comum.
E foi quando meu estado se agravou.
Nunca senti mais solidão do que nas 10, 11, 12 horas que passava sozinha por dia com um bebê (meu primeiro bebê) de apenas 4 meses, sem parentes, sem amigos, sem um marido que compreendesse o quê nem como eu estava me sentindo num país estranho, frio, cinzento e nada amigável com estrangeiros.
E, agora que minha filha está com idade de socializar com seus pares e frequentar a pré-escola, sou novamente tomada pela sensação de inadequação e baixa auto-estima. Dessa vez, não por causa do meu peso, mas por causa do meu inglês incorreto e pouco fluente.
Continuo a não pertencer. Continuo no canto das salas, ouvindo as mães inglesas falarem, animadamente, sobre um tipo de vida que não tem nada a ver com o meu.
E volto a sentir a solidão, com toda sua força.
Branqueando meus cabelos, descalcificando meus ossos, manchando minhas mãos com senilidade.
Não sei se Robert Smith teria a cura. 
Talvez se tivesse prestado atenção em outra de suas músicas, "Cut Here", as coisas tivessem sido diferentes. "But 'If only' is a wish too late."

"I should've stopped to think - I should've made the time
I could've had that drink - I could've talked a while
I would've done it right - I would've moved us on
But I didn't - now it's all too late
It's over
And you're gone.
"

terça-feira, 15 de maio de 2012

Minha carteira e poeta

Obra literária do chileno Antonio Skármeta que foi adaptada para o cinema, em 1994, e ganhou fama e aclamação internacionais (mas apenas prêmios pela trilha sonora), Il Postino é uma comovente estória de amizade. E de uma amizade praticamente improvável entre um expatriado tão polido e renomado quanto Pablo Neruda e um carteiro tão simplório e de pouca educação como Mario Ruoppolo.
No entanto, havia uma coisa em comum entre esses dois personagens quase antagônicos: ambos distribuíam mensagens. Mario de maneira literal, por certo. Mas, com o progredir da narrativa e graças à ajuda do poeta, ele vai descobrindo a arte de fazer versos e tomando gosto pelas palavras inspiradas por sua amada Beatrice.
E Neruda também se transforma. O sábio e experiente mestre se vê profundamente tocado pelo inocente maravilhamento e rápido aprendizado do pupilo inculto...
Como uma mãe de meia-idade vendo o já tão conhecido mundo pela retina virgem e desacostumada dos rebentos; vendo as cartas passadas mecanicamente através da fresta da porta pelo funcionário da British Royal Mail e caídas no chão serem, ávida e prontamente, entregues pelas mãos de minha filha; vendo os envelhecidos versos brancos da minha vida se encherem novamente de rimas, de significados.
Assim, me desculpe saudoso Pablo, mas as palavras de Mario Ruoppolo estavam corretas("Poetry doesn't belong to those who write it; it belongs to those who need it"), e um de seus poemas, equivocado.
Quem chegou para me buscar não foi a poesía, mas minha filha: minha carteira e poeta, distribuindo novas mensagens.

Llegó "mi hija"a buscarme. [...]
Yo no sabía qué decir, mi boca
no sabía
nombrar,
mis ojos eran ciegos,
y algo golpeaba en mi alma [...]

Y yo, mínimo ser,
ebrio del gran vacío
constelado,
a semejanza, a imagen
del misterio,
me sentí parte pura
del abismo,
rodé con las estrellas,
mi corazón se desató en el viento.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Servants with benefits

Em 2011, telas de cinema do mundo inteiro apresentavam a estória de Dylan e Jamie (em Friends with benefits), dois amigos que tinham terminado um relacionamento recentemente e não queriam nenhum envolvimento emocional. Mas, como eles estavam solteiros e solitários e precisavam muito de sexo, decidiram levar sua amizade a um estágio mais íntimo e menos romântico, tirando, assim, o maior proveito possível de uma relação com afeto mas sem complicações.
É claro que elas (as tais das complicações) foram surgindo no progredir dessa situação, porque os sentimentos são energias independentes e quase nunca obedecem às racionalizações da cabeça.
Ou quase nunca.
Como explicar o aparente sucesso secular dos casamentos arranjados na Índia?
Eles são tão friamente planejados pelos pais dos noivos que há pouco espaço para o amor entrar na vida dos recém-casados. Mesmo assim, é uma tradição passada de geração para geração sem muita contestação ou debate, talvez porque seja fundamentada no alto grau de compatibilidade entre o futuro casal. Uma união só é abençoada (inclusive com o aval de astrólogos e sacerdotes brâmanes), se as partes envolvidas são da mesma religião, pertencem à mesma casta e falam a mesma língua.
Mas as afinidades tendem a terminar por aí. Mulheres com níveis cultural e educacional semelhantes aos dos homens não são desejáveis para serem desposadas e as solteiras com PhD têm muita dificuldade em mudar seu estado civil.
Por quê? Pela óbvia razão de que um QI alto numa mente feminina pode representar um risco real à harmonia do matrimônio e desestabilizar a 'ordem natural' do mundo criado, dominado e ditado pelo gênero masculino. 
Então, se não é o amor que une os noivos indianos e não vai haver muitas chances de se desenvolver uma amizade entre eles, como definir a relação de marido e mulher na Índia?
Com outra estória.
Uma que ainda não virou filme de Hollywood, mas que é baseada em fatos verídicos e nomes fictícios.
E essa teve um início bem inusitado, uma vez que Reeta e Ajay já se conheciam da faculdade, em Delhi, e começaram a namorar em segredo. Bem, pelo menos os pais de ambos não sabiam dessa relação que teve um prólogo feliz e acabou em casamento, pois os três requisitos acima mencionados (religião, casta e língua em comuns) foram atendidos. Mas o casal apaixonado não ficou muito tempo em sua terra natal e, três semanas depois de trocarem guirlandas com notas de rúpias, migraram para a Inglaterra onde o serviço de cozinheiras e faxineiras é oneroso e apenas os membros da realeza têm condições financeiras de pagar por eles diariamente.
E foi nesse ponto da trama que a estória de Reeta passou a ter o mesmo enredo que as demais indianas: ela acordava às 6h da manhã para ir à academia por 45 minutos e, então, voltava para casa para tomar banho, se arrumar, fazer o café-da-manhã de dois e partir para o escritório na cidade vizinha, onde ficava até às cinco da tarde.
Ajay só saía da cama às 8h45 e já tinha a comida pronta a lhe esperar; ele trabalhava de casa e almoçava o que havia sobrado da noite anterior; passava o dia no telefone, diante do computador ou na frente da geladeira beslicando, e não parecia ter tempo para ajudar nos afazeres domésticos. Nem a louça suja do desjejum e almoço conseguiam desviar sua atenção do árduo trabalho em que se concentrava e alcançavam a pia da cozinha!
Somente quando Reeta retornava à casa, ouvia-se o barulho de água escorrendo por pratos e talheres e sentia-se o o cheiro de comida fresca sendo preparada. Depois da janta, ela ainda conseguia esticar as horas produtivas de seu dia, recolhendo as roupas secas nos radiadores do apartamento e lavando as que se empilhavam num canto do banheiro. E, já na cama, quando pensava que poderia dar um pouco de repouso ao corpo fatigado, lá vinha Ajay demandar seus direitos de marido.
Mas Reeta não tinha do quê reclamar. Ela havia crescido num mundo em que, para a mulher, é mais importante aprender a cozinhar do que a ler; numa cultura em que o homem é criado para se casar não com o amor de sua vida nem com sua melhor amiga, mas com empregadas.
Servants with benefits.
And I've got already my apron on...

sexta-feira, 13 de abril de 2012

As mãos de minha filha

"Todos aqueles homens e mulheres ali no quarto escuro pareciam sombras de um submundo, criaturas sem voz nem movimento, prisioneiros de algum perverso sortilégio." E todos os olhares estavam fitos na zona central da cama, com a atenção presa nas feições desenhadas do pequenino rosto da recém-nascida: nos seus imensos olhos castanho-esverdeados e nos seus lábios que mais pareciam um botão de rosa...
Claro que eles sempre foram os primeiros a serem notados. Talvez os únicos.
No início, poucas pessoas conseguiam perceber seus finos cabelos da cor da árvore da castanheira ou suas brancas mãos de pianista, com dedos longos e delgados como os dos pai.
Só não sei se elas vão, algum dia, chegar perto de um piano ou de qualquer outro instrumento musical, mas as mãos de minha filha foram logo reparadas por sua mãe. E por ela mesma.
Desde cedo, aquele bebê já brincava com as extremidades dos seus braços e das suas pernas, realizando movimentos contorcionistas quase circenses. Deitada no berço, ela agarrava um dos pés com as duas mãos e trazia-o até a boca com uma agilidade e flexibilidade espantosas.
Mas quando o espanto e a admiração com essa parte do corpo passou, as mãos de minha filha começaram a dedilhar minhas bochechas, numa composição de afeto de autoria própria. E, com delicados beliscões, ia apertando-as (ora a esquerda ora a direita) enquanto tomava a mamadeira nos meus braços. Ela parecia fazer um reconhecimento táctil da face que a contemplava; parecia sua primeira forma de demonstrar carinho pela figura que a alimentava.
Entretanto, nossa mais intensa (e por vezes dolorosa) troca de amor acontece na hora de dormir. Seja no cochilo do meio do dia na minha cama ou à noite na sua, quatro longos e delgados dedinhos da mão de minha filha cobrem meu polegar enquanto seu próprio pólex o pressiona vigorosamente, até seus imensos olhos castanho-esverdeados se fixarem num ponto só visível para ela na penumbra do quarto. Aos poucos, vou sentindo as pressões diminuírem de intensidade e frequência e sei que ela está entrando no torpor hipnótico do deus grego do sono. Então, ela se entrega aos braços de Morfeu  sem mais resistência e adormece.
Não amamentei aquele pequenino bebê com feições desenhadas, mas nosso profundo vínculo emocial foi formado pelas mãos de minha filha.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Confissões a Pablo

Nos desencontramos deste mundo por apenas dois anos. 
Mais precisamente, 671 dias separam a morte de Ricardo Eliécer Neftali Reyes Basolato e o dia do meu nascimento, em julho de 1975.
Bem, talvez seja muita presunção comparar minha vida pouco ilustre com a do jovem chileno que se tornaria Pablo Neruda. Fomos, sem dúvida nenhuma, protagonistas de estórias bem diferentes, mas tivemos, sim, algo em comum: uma vida muito intensa.
E a minha começou bem cedo.
Passei os primeiros anos da minha infância num lugar quente e rico em sabores no Nordeste brasileiro. E nas ruas ainda calmas de Recife eu aprendi a andar de bicicleta e a subir em árvores, gozando de uma liberdade e segurança agora muito raras nas capitais do Brasil.
No entanto, tais direitos logo foram perdidos aos seis anos de idade, quando toda a família voltou ao seu estado de origem e se estabeleceu de vez em Porto Alegre. E, mesmo morando num espaçoso apartamento de três dormitórios e estando mais alta que qualquer árvore das redondezas (no décimo quarto andar do nosso edifício), meu mundo havia se tornado claustrofóbico e inesperadamente frio.
Foi quando as "travessuras" de uma criança entediada e inconsequente começaram... Além dos clássicos trotes telefônicos às pizzarias da cidade envolvendo os coitados dos vizinhos, eu passei a jogar coisas da janela da nossa casa no Bom Fim. E qualquer coisa podia ser um objeto da minha pervertida diversão: moedas, cubos de gelo, camisinhas cheias de água, bergamotas que minha avó trazia do sítio, os discos de vinil do meu pai e até ovos e latas vazias de milho verde!
Eu podia ter seguido com essa brincadeira (engraçada só para mim) por muitos anos, mas fui flagrada pelo zelador do prédio ao lado do nosso e meus pais passaram a ficar mais atentos aos meus atos (de quase) vandalismo. Só não descobriram que, fora de casa e em volta do quarteirão, eu continuava com outro dos meus passatempos maldosos favoritos: golpear as pessoas que caminhavam por nós (sim, nessa época, eu já tinha reunido uma pequena gangue) com uma antena de rádio quebrada e escondê-la rapidamente na manga das roupas que usava.
Eu sei. É terrível e chocante e eu mesma me sinto muito envergonhada, mas igualmente intrigada. Não consigo entender o que aconteceu com a criança feliz que antecedeu aquela adolescente perversa. Será que a perda da liberdade me transformou num monstro?
Por mais simplista que possa parecer, a explicação soa bastante razoável e hoje, depois de ter virado a página desse meu passado há mais de 20 anos e ter me tornado "a true law abiding citizen", me vejo repetindo o antigo padrão de comportamento. Não, não jogo mais nada da janela (nem sequer um fio de cabelo pelo vidro do carro) e não imagino que fim tenha levado a tal antena de rádio, mas voltei a golpear as pessoas ao meu redor (a minha própria família), com palavras tão cruéis e maldosas quanto as batidas fortes e certeiras de um pedaço de metal.
E, mais uma vez, não consigo entender o que aconteceu com aquela mulher que viu pores do sol em diferentes partes do mundo, que andou de camelo e de elefante e que mergulhou os pés descalços em tantos mares para ela se transformar nessa criatura constantemente amarga e ressentida. Será que o casamento e a maternidade também me fazem sentir claustrofóbica e inesperadamente fria? Será que o término da minha livre vida de solteira e o início da outra como consorciada e mãe me entendiam tanto e me deixam inconsequente? Será que vou precisar de algum flagrante para cessar meus atos perversos?
Eu podia procurar mais detalhes na biografia de Neruda e tentar descobrir o que deu errado em seus dois primeiros casamentos e como ele superou o terror do que viu durante a Guerra Civil Espanhola...
Ou talvez pudesse simplesmente confessar a Pablo  (e a quem quisesse me ouvir) que eu também vivi e aprontei muito, mas que ainda não aprendi a aceitar as mudanças da vida.

terça-feira, 3 de abril de 2012

The Orange Brigade

A primeira vez que ouvi falar da Brigada Laranja foi em 2008, quando a ideia de ter um marido e uma filha ainda era distante e eu vivia, sem o saber, minha última grande aventura sozinha, em Londres.
Logo vim a descobrir que essa não era uma facção da Fraternidade Protestante da Irlanda do Norte (The Orange Order), nem os fiéis assinantes da empresa de telefonia móvel 'Orange'. No entanto, tal expressão parecia mais uma brincadeira entre colegas de profissão, quando o mais respeitável dos nossos professores de inglês explicou, com risadinhas contidas, que esse era o nome pelo qual eram conhecidas as mulheres que se submetiam ao bronzeamento artificial durante os rigorosos meses de inverno no Reino Unido.
Sim, eu mesma já tinha visto rostos exageradamente alaranjados passeando pelas ruas movimentadas de Oxford St e Regent St, mas imaginar que já havia uma palavra para designar um mero modismo feminino era um absurdo. Soava mais como uma lenda urbana do país...
Três anos depois, eu voltava ao cenário londrino para passar o carnaval de Notting Hill com a minha recém formada família e me deparei com o verdadeiro destaque da festa.
Caía uma garoa fina naquele domingo quente de agosto e, ao meu lado, estava uma mulher de meia-idade dançando ao ritmo dos caminhões de som que embalavam a multidão nas ruas do Condado Real de Kensignton e Chelsea. Ela usava um espartilho bege e uma calça branca extremamente colados ao corpo e tinha o cabelo preso com uma fita para esconder a emenda dos fios naturais com as falsas madeixas.
Em poucos minutos, junto com a água da chuva, escorria um líquido alaranjado pelo rosto e pelos braços roliços daquela mulher, desde a testa até o colo descoberto, maculando suas vestimentas claras de maneira inapropriada e lamentável. Mas ela continuou remexendo os quadris, indiferente ou ignorante ao espetáculo patético que encenava, talvez na esperança de que ninguém mais o notasse.
Infelizmente, eu estava ali para notar e imediatamente me lembrei da expressão de 2008.
Mas segui com minha vida, porque a Brigada Laranja não fazia parte dela...
Até seis meses mais tarde eu me encontrar numa loja de cosméticos no único shopping centre de Watford e me ver comprando, enganadamente pelas luzes artificiais do lugar, o pó compacto errado para minha tonalidade de pele.
Só me dei conta do engano no dia seguinte (e nos que a ele se seguiram), quando empurrava o carrinho da minha filha pela St Albans Road e tinha o rosto apresentando os tons daquela cor terciária. Mantive a cabeça erguida, não cheia de orgulho, apenas cuidando o céu para voltar rapidamente para casa ao menor sinal de chuva.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Il dolce far niente

Segundo o dicionário online MacMillan, "lady of leisure" é uma mulher que não precisa trabalhar, ou porque o marido ganha bem ou porque ela vive de alguma herança ou ainda porque tem um 'protetor' endinheirado. No sentido figurado e bastante contemporâneo, também pode significar uma pessoa do sexo feminino que está desempregada ou até uma prostituta (quando a ênfase cai mais sobre a palavra 'leisure').
A origem dessa expressão, no entanto, é desconhecida, mas tenho um palpite que ela é tão antiga quanto as sociedades greco-romanas da Antiguidade, em que havia trabalho escravo  em abundância e as senhoras dos então cidadãos estavam livres de obrigações e responsabilidades domésticas e podiam despender seu tempo ocioso em outras atividades de lazer.
Desde que nos mudamos para a Inglaterra (em 2010) e minha filha tinha apenas 4 meses de vida, meu marido insitia para que eu não ficasse, desnecessariamente, estressada com o prazo de entrega dos trabalhos de revisão e tradução que eu teimava em continuar aceitando e me dedicasse à criação de nossa menina e à manutenção de nossa casa. Afinal de contas, o que eu recebia não tinha muito impacto nas finanças da família...
Mas isso era algo impensável para mim, mesmo com a terrível descarga de adrenalina que eu sentia ao me dividir entre os cuidados da minha Pequena e o término de um arquivo no tempo estabelecido.
Eu já tinha abandonado, por causa da maternidade, a ideia de um emprego convencional, das 9h às 18h, num lugar remotamente parecido com ou que pudesse ser chamado de escritório. Desistir do meu último vínculo com o mundo fora da minha tríade atual (mãe-esposa-e-dona-de-casa) parecia um passo atrás na minha História pessoal e outro dentro de culturas retrógradas e conservadoras, ainda que morando num país desenvolvido e que oferece benefícios em dinheiro para as mães cuidarem de suas crianças em casa.
Mas a vida é cheia de surpresas e, desde que retornamos para a Inglaterra (em janeiro de 2012 e depois de quase dois meses de 'férias' entre o Brasil e a Índia), meu computador de quatro anos deu seu derradeiro suspiro eletrônico e não ligou mais.
Com o coração repleto de tristeza pela perda repentina de um velho companheiro, fui obrigada a estender meu período de inatividade, indefinitivamente, na empresa para a qual fazia serviços freelance de tradução e revisão e passei a ter mais horas sobrando no meu dia, para empregá-las em outras atividades.
A lady of leisure at last? Well, not quite! É difícil enquadrar o glamour dessa expressão nas tarefas domésticas que continuam a se avolumar diariamente e que eu continuo a executar sozinha, sem vigorosos escravos à minha disposição.
Entretanto, não preciso mais representar o papel daquela tríade feminina às pressas. E a simples ideia de poder realizar a limpeza da casa ou fazer a comida para a família ou sentar no sofá com a minha filha, com calma, sem prazos para cumprir, é libertadora.
E talvez seja esse o real significado da expressão inglesa (do latim,  licēre quer dizer 'ser permitida'): "lady of leisure" é a mulher que tem permissão de desfrutar os confortos da casa e, principalmente, de apreciar a companhia dos filhos, ou porque o marido ganha bem ou porque ela vive de alguma herança ou ainda porque tem um 'protetor' endinheirado.
Graças ao meu marido, nunca curti tanto nossa menina e nossos momentos juntas, em frente à televisão, saboreando uma refeição maravilhosa, no mais puro estilo do dolce far niente.

sábado, 17 de março de 2012

Os superpoderes de uma mãe

A mãe de Milo é como todas as outras mães: ela tem um cabelo comum, ela usa roupas comuns e ela possui um sorriso simpático. 

Com a exceção do fato de Milo ter certeza de que ela é dotada de um superpoder: a visão de raio-X. Pois, mesmo sem estar por perto, ela consegue "ver" o que Milo está fazendo e com o quê está brincando.
No entanto, ele quer uma prova definitiva para contar para sua amiga Lola e, no sábado, depois de voltar para casa do mercado, ele sobe as escadas, entra no quarto de sua mãe e se esconde dentro do armário. 
Milo espera e espera que ela diga, lá debaixo, para ele sair do seu esconderijo. 
Em vão. 
"Talvez minha mãe não consiga ver dentro de armários ou através de paredes", Milo pensa. Ele espera e espera mais... E nada. "Talvez ela não tenha nenhum superpoder", ele diz para Lola desapontado. "Ela é apenas uma mãe comum, como todas as outras".  
Mas quando os dois saíam para brincar no quintal, a mãe de Milo o surpreende dizendo para não esconder o pacote de salgadinhos debaixo do suéter. Feliz com o flagrante, ele divide sua descoberta com Lola cheio de excitação: "Não, minha mãe não tem visão de raio-X. Ela tem olhos atrás da cabeça!"
A mãe de Y também é como todas as outras mães: ela tem um cabelo comum (já com vários fios brancos e sempre preso num rabo-de-cavalo para ficar com mais cara de mãe), ela usa roupas comuns (cobertas com um avental desbotado e cheias de nódoas de comida nas mangas) e ela possui um sorriso simpático (ainda que, na maioria das vezes, ele esteja enterrado debaixo de camadas e camadas de cansaço).
E, provavelmente para Y, sua mãe também é dotada de algum superpoder, pois, mesmo sem estar por perto, ela consegue "ver" o que Y está fazendo e com o quê está brincando. 
Mas, diferente da estória da autora infantil Angela McAllister, a mãe de Y não tem visão de raio-X nem olhos atrás da cabeça. Ela tem um instinto agora-aguçado e extremamente bem desenvolvido, graças às inúmeras surpresas desagradáveis do passado.
A mãe de Y aprendeu da maneira mais repugnante possível que, se há silêncio na casa, há desordem em progresso. 
E, de onde estiver, ela interrompe a cessação do ruído e da arteirice da filha com sua voz superpoderosa e sua capacidade sobrenatural de antecipar acidentes:
- "Mocinha, nada de bagunça!"
E Y, surpreendida com o flagrante, vai correndo ao encontro de sua mãe, que a olha como todas as outras mães: com um cabelo comum (já com vários fios brancos e sempre preso num rabo-de-cavalo para ficar com mais cara de mãe), com roupas comuns (cobertas com um avental desbotado e cheias de nódoas de comida nas mangas) e com um sorriso agora mais do que simpático (porque tem a consciência de possuir o super-instinto de mãe).

quarta-feira, 14 de março de 2012

Genug ist genug!

A ideia foi inteiramente minha: colocar minha filha em aulas de natação antes mesmo que completasse 2 anos de idade, para que pudesse aprender a nadar desde cedo.
Nas primeiras doze semanas (ainda morando em High Wycombe), ela não parecia gostar muito de ficar de costas boiando com o apoio das mãos da mãe nem de bater os braços e as pernas como um cachorrinho, mas adorava as outras "brincadeiras" dentro d'água e já conseguia se segurar sozinha na beira da piscina. 
Então, vieram as intermináveis férias no Brasil e na Índia e, quando retomamos as aulas em Watford, duas semanas atrás, fiquei completamente desanimada com seu desempenho.
É certo que a turma atual é composta de crianças maiores e que o horário tem exigido energia de adulto para ela se manter acordada por tantas horas sem o habitual cochilo da tarde, mas minha pequena simplesmente não largou do pescoço do pai naqueles preciosos trinta minutos. Preciosos sem dúvida! Pagamos onze libras por meia hora de aula por semana! Tão preciosamente caras que acabei caindo na primeira armadilha da natação: a de fazer, mentalmente, as mesmas cobranças que eu tanto escutei na adolescência; a de esperar, inconscientemente, por resultados imediatos de uma menina que não nadava de maneira não-amadora há quase três meses; a de exigir, friamente, um retorno palpável e visível pelo nosso investimento financeiro.
Quanta crueldade com um serzinho de apenas dois anos e 4 meses! 
E, quando, finalmente, me dei conta - horrorizada - da pressão que já colocava nos diminutos ombros de minha filha, eu consegui relaxar os músculos da testa e sorrir para ela do banco que dividia com outros pais, tios e avós, cantarolando a estrofe de uma canção há muito esquecida do grupo alemão Die Fantastischen Vier: "Nein, nie wieder, niemals, niemehr"
Não posso repetir os erros da minha infância!!!
Foi quando pude, de fato, perceber um bebê no colo de sua mãe ao meu lado. Apesar da falta de cabelo, a menina não apresentava mais aquela aparência pouco-agradável dos recém-nascidos e tinha lindos olhos azuis e era tão pequenina e adorável que fiquei com uma vontade enorme, incomensurável de pedir para segurá-la... Só um pouquinho... Só para matar a saudade...
E quase acabei caindo na segunda armadilha da natação: a de querer, de forma inconsequente, ter outro filho; a de sonhar, impensadamente, com mais uma criança nos braços; a de imaginar, ingenuamente, que eu poderia passar por tudo isso de novo sem perder de vez a sanidade!
Não, dona Natureza, não me venha com outras artimanhas para perpetuar a espécie.
Pois vou gritar bem alto:
"Nein, nie wieder, niemals, niemehr. Ich sage nein. Genug ist genug!"

sábado, 3 de março de 2012

Never let 'that feeling' go

Por mais de um ano, aquele livro ficou "esquecido" na minha mesinha de cabeceira, fosse ela na Inglaterra, no Brasil, na Índia ou de volta ao Reino Unido.
Quer dizer, não tão esquecido e não logo no começo. Às vezes, eu o olhava de relance, às pressas, entre uma tarefa doméstica e outra, e ele sustentava meu olhar, ansioso, impaciente, esperando uma ação minha, uma reação ao seu chamado. E eu o respondi (no começo) e folhei suas primeiras páginas com avidez e voracidade. Mas, à medida que eu mergulhava fundo na estória de Kazuo Ishiguro, meu ritmo de leitura diminuía. 
Por medo.
Tem sido tão difícil, pra mim, encontrar obras que toquem minha essência e sussurrem para meu coração, que fiquei com medo de prosseguir rápido demais e me deparar com mais um período de vácuo literário. Então, usei ardilosamente da desculpa da falta de tempo e deixei que o tempo me fizesse esquecer do livro.
E do filme (de Mark Romanek) que também não tive coragem de assistir. Por outro tipo de medo. Por aquele temor de leitor purista que quer imaginar os personagens e os cenários sozinho; que quer percorrer os caminhos emocionais da trama de mãos dadas apenas com o autor, sem ser guiado pela interpretação de um terceiro sujeito.
Assim, mais de um ano se passou e eu já tinha me esquecido resignadamente dos dois (mesmo com o livro de volta à minha mesinha de cabeceira), até me deparar com seu título na programação da TV a cabo, algumas noites atrás... 
E, finalmente, atendi ao seu clamor, esqueci meus medos e me entreguei à estória, com minha filha sentada no meu colo, sem me dar sossego.
Mas não foi difícil me envolver com os três protagonistas e me emocionar com suas descobertas, perdas e reencontros amorosos, apesar da Pequena demandar minha atenção integral durante aqueles cem minutos de filme. Não foi difícil compartilhar da mesma urgência e do mesmo desejo por uma vida vivida com plenitude, ainda que haja outros planos traçados para nós.
Que esse sentimento jamais me abandone.

E toca a campainha

Uma vez por ano, no Hemisfério Norte, a Natureza recebe a tão esperada visita do senhor Inverno. E ele nunca chega sem aviso.

Pouco antes, bate à porta da matriarca atemporal seu acompanhante menos taciturno, o Outuno, que se ocupa com os preparativos da casa. Assim que ele se instala, o Sol passa a fazer sua caminhada diária pelos aposentos com um olhar oblíquo, tímido e sem muita força, como se quisesse evitar o acanhamento de qualquer uma das partes em relação à dança erótica que está prestes a ser encenada.

Primeiro são os adornos primaveril e veranil, presenteados por visitantes anteriores, a serem retirados de seus membros galhudos e troncosos.Depois, as árvores se despem de seus pesados trajes verdes e permanecem, apenas, com uma vestimenta mais leve e sensual, que pode variar entre as cores amarela, laranja e vermelha. 

Então, é o Sol que fica acanhado diante da nudez da Natureza e faz caminhadas cada vez mais curtas e distantes... Ele parece estar tão longe que ninguém mais é capaz de sentir o calor de sua presença. Ou de ver o brilho de sua luz! É quando os quartos da casa se enchem de breu e as árvores, protegidas pela escuridão, despojam de suas últimas folhas de inibição e esperam a chegada iminente de seu amante sorumbático completamente nuas e vulneráveis.

Por certo, o senhor Inverno pode não ser tão apaixonado como o Verão, mas ele é muito atencioso com sua senhora e adentra a morada da Natureza trazendo seu cobertor branco e macio, preparado para uma longa noite de amor... 

E os dois namorados se amam e se demoram preguiçosamente no leito, até o Sol voltar a aparecer na janela e seus pequenos rebentos anunciarem o momento da partida. É hora de se vestir e se arrumar para receber a prima Vera, que já está na soleira da porta, pronta para tocar a campainha.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Nem princesa nem loba

Era uma vez, num reino criado pela escritora inglesa Babette Cole, uma princesa fora dos padrões fabulosos: ela mantinha criaturas gigantes e asquerosas como animais de estimação, não queria se casar de forma alguma e desafiava os pretendentes à sua mão com maratonas pouco comuns.

Uma estória perfeita para feministas de qualquer idade ou país, mas longe de ter um final feliz para as mães das meninas que decidem seguir as façanhas inconsequentes da Princesa Smartypants e quebrar todas as regras. Especialmente num Reino de verdade, cujos membros da realeza e seus súditos se orgulham de seguir tradições centenárias e outras boas maneiras adquiridas mais recentemente.

Confesso que tenho uma opinião, parcialmente, semelhante à da autora infatil e sempre tive muita aversão a rótulos. Tanto que nunca dei uma boneca para minha filha, nem me preocupei com o fato de ela jogar bola ou brincar com trens, aviões e carrinhos. E também não ficaria sem dormir se ela permanecesse solteira por toda a sua vida. No entanto, Miss Cole, há certas regras (como as de cortesia) que não podem ser quebradas de maneira alguma, nem por personalidades régias nem plebleias (muito menos por beldades endinheiradas!), com o risco de afetar o relacionamento entre as pessoas de modo irremediável.

Mesmo com dois anos e quase quatro meses, minha menina ainda engatinha na demonstração pública de boas-maneiras e isso já começa a me causar preocupação e constrangimento.

E a culpa é inteiramente minha. Não apenas sou um terrível exemplo a ser copiado dentro de casa (pois já perdi todo o recato em relação aos chamados e assobios da Natureza, inclusive na frente do marido), como também não tenho oferecido muitas oportunidades a ela para copiar as crianças bem-comportadas e treinadas (uma vez que nunca frequentou creches ou berçários).

Além disso, como é a Choti Maharani - Pequena Rainha - nos lados materno e paterno da família, minha filha recebe atenção integral, amor não-dividido e tudo o mais que puder ser conseguido à base de choro, grito e pirraça. Por isso, até agora não precisou aprender a dizer 'por favor' e 'obrigada', nem a formar fila e esperar pela vez. Não sabe o que é rotina, não consegue ficar sentada por muito tempo nem à mesa e só obedece à mãe na marra...

É... Eu sei... A culpa continua sendo só minha e, para me redimir um pouco dela, já coloquei minha filha em aulas rigorosamente estruturadas de dança, artes e natação, além de fazê-la participar e ouvir Stories & Rhymes for the Under 5s comportadamente, por meia hora, na biblioteca central de Watford (sem tentar arrancar o livro das mãos da bibliotecária e me encher de vergonha na frente das outras mães) e deixá-la resolver seus pequenos conflitos nos playgrounds da cidade sozinha. 

E tenho esperança de que ainda haja tempo para moldar esse serzinho selvagem e cheio de personalidade e conduzir minha menina loba de volta à civilização, antes que ela encontre algum urso Balu pelo caminho ou se transforme, de vez, numa choti Smartypants.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

We need to talk about Eva

Não planejei nem consegui curtir minha gravidez com plenitude, pois estava numa corrida contra o tempo e contra os caprichos da minha sogra para me unir com o co-produtor do meu bebê e evitar o termo 'pai desconhecido' na sua certidão de nascimento. Mas, assim que minha filha nasceu, também floresceu um amor maternal por ela que foi aumentando junto com seus 49 centímetros.

No entanto, só isso não me qualifica como uma boa mãe. Na verdade, não chego nem a pontuar como mediana, porque não sigo nenhuma cartilha. Graças a filósofos da Antiguidade, pensadores franceses, poetas de todas as épocas e psicólogos modernos, além dos predicados instrínsecos já culturalmente atribuídos à figura materna (como abnegação pessoal e sacrifício extremado pela prole), outros deveres e responsabilidades foram sendo adicionados à lista da mãe ideal.

É do grego Pitágoras a frase: "Educa as crianças e não precisarás castigar os homens."

Para Vitor Hugo, "Os braços de uma mãe são feitos de ternura e os filhos dormem profundamente neles."

Vinicius de Moraes escreveu: "Repousa a luz amiga dos teus olhos / Nos meus olhos sem luz e sem repouso / Aninha-me em teu colo como outrora / Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas / Dorme em sossego, que tua mãe não dorme."

Segundo o inglês D.W. Winnicott (um dos discípulos de Freud), a mãe deve não apenas amamentar com tranquilidade, dar aconchego e carinho ao seu bebê, mas também é fundamental para a constituição do self da criança que ela a segure no colo e a carregue de maneira 'correta', para "dar-lhe a continuidade entre o inato, a realidade psíquica e um esquema corporal pessoal."

Minha Nossa Senhora! Se, para as mulheres que sempre sonharam com as formas arredondadas da gestação e com um 'embrulhinho' enrolado nos braços fica cada vez mais complicado de se ter um filho (à medida que novos estudos científicos em relação à maternidade são publicados), imaginem a cabeça daquelas que não possuem o "gene materno"; daquelas que não quiseram ser mães mas foram 'abençoadas' com uma criança indesejada que não conseguem amar!

Essa é a estória do filme We need to talk about Kevin (baseado no romance de mesmo nome de Lionel Shriver), que faz coro a muitas das teorias modernas da psicologia e simula o que de pior pode acontecer com um adolescente que não teve o amor materno.

Para mim, foram 112 dolorosos minutos de assistir, porque a atormentada personagem de Eva é veementemente condenada pelos habitantes da pequena cidade onde vive, por ter falhado no seu mais importante papel como um indivíduo do sexo feminino. E ela aceita a culpa com uma verdadeira resignação materna.

Meu sentimento para com essa mulher foi o da mais profunda simpatia, porque carregamos um fardo pesadíssimo e extremamente idealizado desde o momento que concebemos uma nova vida.

De acordo com os padrões inatingíveis da sociedade contemporânea, somos responsáveis por tudo o que envolve nossos filhos: por uma amamentação tranquila, uma relação amorosa e um saco de paciência sem-fim; por uma alimentação consciente, frutas e verduras orgânicas, ovos caipiras e alimentos não-modificados geneticamente; por suas boas maneiras à mesa e boas notas na escola; por suas roupas limpas, cabelos penteados e dentes escovados; pela linha pedagógica da escola, pelo conteúdo visto na TV e acessado na Internet e pela escolha de seus amigos... Enfim, somos culpadas e respondemos por todos os atos de nossas crianças, inclusive os criminosos.

É por isso que precisamos falar sobre esta e todas as demais Evas, igualmente falhas como sua homônima bíblica e expulsas do Paraíso por outro pecado original: o de não amarem o ser saído das próprias entranhas da maneira e com a intensidade que a cultura, a religião, a família e até o parceiro demandaram delas. 

Precisamos falar e mudar a imagem criada da mãe ideal, adicionando-a carne, osso e neuroses mal resolvidas, porque também nós somos o produto de outras mães e pais imperfeitos. E, antes que púdessemos resolver nossos defeitos de fábrica, muitas de nós se vêem na linha de montagem causando novos desajustes na geração seguinte. Desajustes esses que devem ter começado com a primeira mulher criada por Deus e que deu à luz a Caim (o primeiro homicida da Humanidade) e Abel.


Ah, tomara que se fale muito sobre Kevin e Eva, para que possamos ser capazes de tirar as figuras mitificadas de seus altares (inclusive a da criança pura e inocente) e discutir com mais honestidade sobre a maternidade e seus problemas reais no mundo atual.

Talvez então possamos ser melhores mães ou exercer o direito de não o ser se assim o desejarmos. Sem culpa nem execração pública.