quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Emoção sobre três rodas

Inventado no Japão no final do século 18 por um missionário europeu, rickshaw significa na língua da Terra do Sol Nascente: veículo propulsionado por um homem.

Ele foi levado à Índia ainda no tempo do Império Britânico, em 1880, para servir à corte inglesa na cidade de campo para a realeza, Simla. E, em poucas décadas, espalhou-se por todo o Sub-continente. Em Calcutá (antiga capital indiana), foram comerciantes chineses que solicitaram do governo a permissão de usá-los para o transporte de mercadorias, primeiramente, e de pessoas, logo a seguir.

Os anos se passaram e os rickshaws foram se modernizando (ou quase todos, pois ainda hoje é possivel ver homens esquálidos carregando qualquer coisa nessa anacrônica bicicleta de três rodas) e incorporando motor e taxímetro, que serve mais para decoração do que para medir a distância percorrida pelo veículo.
E a explicação para esta prática é que, desde que a Índia conquistou sua independência em 1947, o governo diminuiu o número de licenças para operá-los. Assim, oficialmente, há alguns milhares deles no país, mas na caótica e ilegal realidade urbana, há milhões trafegando por todo o território indiano. O pior é que boa parte do dinheiro que os motoristas fazem num dia vai para as propinas dos policiais não os tirarem das ruas.

Mas, sinceramente, sem eles a Índia perderia um pouco da sua identidade. Talvez nada seja tão pitoresco que a longa discussão entre motorista e passageiro a respeito do preço a se pagar. E podem apostar que eles sempre começam pedindo o dobro do que é justo. E se uma das partes não está satisfeita com o valor final, vê-se o motorista fazendo gestos e amaldiçoando o cliente perdido e o passageiro abordando outro rickshaw wallah. Minha lógica é bem simples: sempre há dezenas deles em cada esquina e, mais cedo ou mais tarde, alguém aceita o meu preço.

O que é impagável são os divertidíssimos episódios que já passei dentro desses veículos, como minha segunda mudança em Chennai, em que consegui colocar três malas cheias, dois baldes com produtos de limpeza e uma vassoura, além de mim mesma e outra acompanhante, num espaço que não devia ter 2 metros quadrados. Sem falar no meu colchão de algodão de 18 quilos amarrado com um barbante na parte superior do carrinho, que vim segurando durante todo o tortuoso caminho! Tudo isso porque o motorista foi ganancioso e não quis dividir o dinheiro que eu ofereci por dois rickshaws.

Mas é na época das monções que eles se tornam imprescindíveis. Não existe maior certeza do que ficar completamente encharcado dentro de um rickshaw na estação das chuvas, pois ele não possui portas ou janelas, apenas uma proteção de lona preta presa à uma carcaça de metal e sobre três rodas.

A escolha, ao se pegar um rickshaw em tais condições, é voltar para casa menos ensopado que fazendo o mesmo caminho de ônibus ou a pé.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Minha Capitolina

Em 1899, a literatura brasileira ganhou uma de suas personagens femininas mais controversas dos últimos cento e dez anos. E não foi por causa de suas ideias revolucionárias ou feministas, nem devido a um comportamento inapropriado para a época.

Pelo contrário. A menina de 14 anos apresentada por Machado de Assis, em Dom Casmurro, não tinha(quase) nada de extraordinário, nem na aparência física nem nas faculdades intelectuais. Na verdade, Capitu era, sim, dona de uma personalidade forte, mas seria apenas mais uma morena num vestido de chita desbotado do século XIX, se não fossem seus olhos profundos e inexplicáveis, como o refluxo das águas do mar. Foram eles que materializaram a natureza dúbia e misteriosa da mulher no romance machadiano.

Em 2009, o meu mundo feminino ganhou mais uma personagem, a mais controversa de todas e fruto de um relacionamento pouco comum: a minha filha meia-indiana, que ainda é muito jovem para chamar a atenção por seus atributos físicos ou intelectuais, mas que, assim como na obra de Machado de Assis, seduz as pessoas com seus imensos olhos castanhos e sua natureza ambígua e fluida (transitando entre dois mundos diferentes).

E foram eles que despertaram o meu amor materno pela minha Pequena.

Não é toda mulher grávida que acaricia a barriga e sente esse intenso e incondicional afeto pelo seu bebê ainda no ventre. É claro que eu me emocionava, durante as ultrassonografias, com as batidas rápidas do coração e o desenvolvimento dos dedinhos das mãos e dos pés, mas eu também estava mergulhada em outros sentimentos (de muito medo e angústia) e não conseguia simplesmente amar aquele ser desconhecido e em crescimento no meu útero.

Até que ela deu as caras, mas, novamente, eu fiquei tão ocupada com a dor pós-parto, o sangramento incessante, a cicatrização do corte, o leite empedrado, o choro frequente, a falta de sono, a exaustiva rotina de alimentar o recém-nascido a cada 2-3 horas, a troca de fraldas em ritmo industrial (...), que eu só fui conhecer a minha filha semanas depois do seu nascimento. E tudo o que eu via (assustadíssima) era uma menina com estrabismo neonatal (uma vez que os bebês ainda não possuem coordenação motora nem nos músculos oculares)!

Então, numa despretensiosa noite, tendo ela deitada no meu peito, com a cabeça próxima ao meu ombro esquerdo, eu vislumbrei toda a doçura e inocência do seu olhar, toda a magia da criação através de sua íris ainda sem cor definida.

Eram como ondas do mar arrebentando na beira da praia.

E foi naquele momento que o meu coração se encheu com um amor que eu jamais havia sentido por outra pessoa. Mas também foi naquele momento que me tornei Dona Casmurra: possessiva e ciumenta, com medo de perder minha Capitolina e seus imensos, profundos e inexplicáveis olhos de ressaca.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

O retrato de ÉfeBiKei

Um ano e vite e quatro dias.
Esse é o intervalo de tempo que transcorreu desde que a minha filha deixou o útero materno e a condição de ser simbiótico e iniciou sua jornada única e pessoal em direção ao pleno desenvolvimento de sua personalidade. E a individuação começou bem cedo aqui em casa.

Nesses quase trezes meses de vida, não lembro quando foi a última vez que ela se comportou da maneira como os pais (ou qualquer outro adulto de relevância) queriam, sem alguma manifestação de protesto.

Ela sempre mostrou uma certa resistência na hora de se vestir, mas, ultimamente, também tem travado uma batalha pra permanecer sentada no carrinho, tomar banho, comer, trocar a fralda e, é claro, dormir (esta digna da arena principal do Coliseu).

Mas uma boa mãe seria paciente e entenderia que essas mudanças de humor são normais durante o crescimento de qualquer criança; que, à medida que elas crescem, adquirem vontade, opiniões e gostos próprios, certo? Errado.

Duvido que algum progenitor já tenha passado na face desta Terra sem ter feito planos, sem ter pensado nos seus sacrifícios ou sonhado com as conquistas deles, sem ter traçado toda a vida dos filhos mentalmente, assim que os segurou nos braços pela primeira vez.

Porque esta parece ser a verdadeira razão para concebê-los: a chance de reviver, através deles, tudo o que não conseguimos ou pudemos viver como nós mesmos. E o adestramento começa bem cedo em qualquer casa.

Por isso, além de ensinarmos como se comportar e quando se vestir, tomar banho, fazer cocô e xixi e dormir, ainda escolhemos seus nomes, suas roupas, seu corte de cabelo, suas escolas e, em casos muito extremos, até seus amigos e namorado(a)s. Sempre com a (conveniente) desculpa de termos mais experiência e de sabermos o que é melhor para eles.

Estranhamente, em momentos assim, me lembro de um trecho do único romance de Oscar Wilde, quando o mentor intelectual de Dorian Grey, Lord Henry Wotton, diz que não há nada mais valioso no mundo que a juventude (quando não desperdiçada):
"The moment I met you I saw that you were quite unconscious of what you really are, of what you really might be. There was so much in you that charmed me that I felt I must tell you something about yourself. I thought how tragic it would be if you were wasted. For there is such a little time that your youth will last--such a little time. [...] We degenerate into hideous puppets, haunted by the memory of the passions of which we were too much afraid, and the exquisite temptations that we had not the courage to yield to. Youth! Youth! There is absolutely nothing in the world but youth!"
Mas quem precisa de um quadro sobrenatural, se podemos ter filhos e criá-los à nossa semelhança? Se podemos ser pequenos deuses egocêntricos e fazer nossa juventude perdurar através deles? Se podemos esquecer que eles têm o direito de ser? Se podemos ignorar que existe uma razão cármica para esse poderosíssimo laço afetivo entre pai-e-filho?

Pessoalmente, vai ser um longo e difícil aprendizado, porque, mesmo sem se parecer muito comigo, eu já sonhava que a minha fosse o retrato de ÉfeBiKei: vegetariana, feminista, independente, não-convencional, cidadã do mundo... E por falar nele, com todas as pessoas e influências que tem à sua volta, acho que já ficaria muito orgulhosa do meu rebento, se ela não se tornasse o retrato dos Jeis.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Em busca de uma pedrinha

Doze de março de 2007. Tinha chegado o momento.

Depois de encostar na pontinha da África, aportar na Europa, atravessar o Oriente Médio, chegar às portas da Ásia e viver no Sub-continente Indiano por quase 3 anos, eu precisava de algo para me fazer lembrar dessa longa estada. Não importava se fosse uma cicatriz ou uma tatuagem, mas precisava ser algo permanente e visível o suficinte para despertar a curiosidade de amigos e desconhecidos, de filhos e netos por-vir, a fim de que este capítulo da minha vida surgisse de forma natural e não pudesse ser apagado nas areias do tempo.

A minha opção acabou sendo por uma recordação que, a princípio, parecia ser a menos dolorosa e a mais perfeita homenagem à Índia e a um dos meus autores brasileiros favoritos: Amyr Klink. Tal como ele, havia entendido que a minha jornada entre dois mundos diferentes tinha sido em busca de uma pedrinha, um piercing de prata.

Foi assim que, naquela segunda-feira de março, deixei a empresa no horário do almoço em direção à Comercial Street: a parte central de Bangalore onde se encontram as roupas baratas da China e as lojas muçulmanas de jóias e bijuteirias.

Gastei não mais do que 50 rúpias numa peça única prateada com uma ponta em forma de flecha e perguntei onde poderia furar o nariz. Tudo parecia correr mais fácil do que tinha imaginado porque, na mesma quadra, havia um hindu fazendo o serviço bem baratinho.

Sentei, mostrei a narina esquerda e quase me arrependi do que estava pedindo ao lhe entregar o piercing de prata e vislumbrar um objeto metálico na mesa ao lado.

Inútil. Uma estranha inércia me impediu de me levantar e ir embora. Ou talvez tenha sido a ilusão de que nada poderia ser pior do que tudo o que já havia vivido nessa terra.

Não podia estar mais enganada...
A dor provocada por aquele artefato medieval atravessando a cartilagem do meu nariz provocou lágrimas e súplicas para que ele não fosse adiante. Mas não adiantou. Ele só parou na segunda tentativa, quando o piercing saiu pela outra extremidade.

A tortura é que não havia terminado por ali.

Depois de duas dolorosas semanas e da quase certeza de que perderia parte da minha narina esquerda (devido à quantidade de pus que saia do buraco inflamado), tinha chegado mais um momento decisivo. Era hora de esquecer aquela homenagem sem sentido e deixar o furo fechar ou de passar por outros instantes de angústia e trocar a pedrinha.

A minha decisão acabou sendo por um delicado piercing de ouro.

Apenas o de prata estava no caminho, resistindo e se recusando a deixar o furo sem uma luta, travada durante intermináveis minutos diante do espelho do quarto e que lhe custaria a extremidade em forma de flecha.

Quando o dourado finalmente tomou seu lugar, senti um alívio.
O alívio de ter cumprido minha tarefa na Índia, de ter vivenciado e vencido meu carma indiano e de ter (assim como Klink) merecido minha pedrinha. Já podia içar velas e partir para novos mares.

Não podia estar mais enganada...
As areias do tempo mudaram com o vento e ofuscaram minha visão do horizonte. Foi dois anos mais tarde que descobri o que eu realmente estava buscando: uma sementinha.

sábado, 20 de novembro de 2010

Amar: meu verbo transitivo

Era 15 de dezembro de 2004.
Eu recém havia terminado, por e-mail, um relacionamento com um austríaco 8 anos mais moço, além de outros encontros sem muita importância com alguns indianos.

Por isso, estava sem muita vontade de sair.

Mas era o aniversário de um dos voluntários da ONG em que eu trabalha (FSL) e fomos a um clube noturno super badalado de Bangalore para comemorar.

Era comum encontrar outros estrangeiros nesses lugares. Incomum era ser abordada por um nativo de turbante, um Sikh. 

Assim, não criei muitas fantasias quando ele pediu meu telefone. Não depois de ele ter passado quase duas horas falando de ex-namoradas e soar mais interessado em conhecer a FSL do que eu mesma. Na verdade, ele tinha enfatizado o quão solitário se sentia numa cidade estranha (era de Nova Déi e estava a pouco tempo em Bangalore) e como queria fazer novas amizades.

Saímos juntos todas as noites durante os nove dias seguintes e eu me sentia extremamente confortável na companhia dele, sem a pressão nem as expectativas de um relacionamento afetivo. Éramos simples amigos.

Até a véspera do Natal.

Depois de comermos a ceia na sede da ONG, fomos a outro clube noturno e a minha curiosidade em desvendar o que estava escondido debaixo daquele turbante transformou nossa amizade para sempre.

Fui ficando na Índia, começando a procurar emprego e um apartamento. E continuamos a sair juntos todas as noites seguintes àquele 24 de dezembro de 2004. Não mais como simples amigos, mas como um casal estranho que acabou se casando porque, ao contrário da ideia de Mário de Andrade, o meu Amar é um verbo transitivo e precisa de complemento.
E de um lindo predicado de imensos olhos castanhos.

Massagem Tailandesa

Tudo o que eu queria era uma recompensa.

Recompensa por caminhar cerca de 8 horas diárias, durante uma semana, pelas ruas de Bangkok e arredores, num calor úmido insuportável e sob a pressão psicológica de conseguir meu primeiro visto de trabalho para a Hewlett-Packard de Chennai,
na Índia.

É óbvio que também estava curiosíssima para experimentar a famosa e tão propagandeada massagem tailandesa. E não perdi a chance quando encontrei um lugar limpo e decente com um preço que parecia caído dos céus budistas.

Assim, no meu último dia na Tailândia gastei meus últimos cem baths numa hora de massagem thai.

Só devia ter deixado do lado de fora do spa (junto com meus sapatos) a ideia ocidental de sentir mãos fortes e macias, espalhando um óleo aromático em movimentos sensuais,
pelo meu corpo nu e só coberto com uma toalhinha.

A típica massagem tailandesa é a seco e a única coisa que não passa pela cabeça são pensamentos eróticos. Durante 60 minutos, numa sala escura e deitada sobre um tipo de colchão no chão de madeira, uma pequena massagista tailandesa me dobrou, me esticou, me torceu e me apertou tanto que verti lágrimas de dor e (acho que) aprendi a dizer em tailandês o que o meu corpo estava sentindo (เจ็บ) naquela interminável hora em que ela só faltou me morder ou puxar meus cabelos.

E não usou apenas os dedos e as mãos, mas também os cotovelos, os joelhos e até os pés. A cada puxão ou pisada que dava, eu ficava esperando ouvir o estalo de uma junta fora do lugar ou de um osso partido. E já podia até me imaginar voltando de ambulância pro meu hotel e de gesso pra Índia.

Mas no fim, não sei se completamente anestesiada pela dor ou se a relação sado-masoquista já tinha sido estabelecida, mas estava me sentindo tão bem que recuperei meus pensamentos eróticos e só queria beijar aquela mulher minúscula e com mãos poderosas e carregá-la comigo para Bangalore!

E, apesar de ter saído da sessão sem marcas roxas pelo corpo, aquela foi uma experiência marcante na minha vida. E prometi pra mim mesma que retornaria a terceira vez para Bangkok, só para me profissionalizar nessa prática legalizada e bem remunerada de tortura física.

Melhor que aquilo, só mesmo a brasileiríssima depilação com cera quente a cada 15 dias.

domingo, 31 de outubro de 2010

O Cravo brigou com a Rosa...

Não me lembro ao certo quem cantava pra mim as melancólicas cantigas de ninar brasileiras, mas sempre quando embalo minha filha para dormir, é a minha avó materna que vem à mente.


E nenhuma dessas poesias cantadas me deixa mais triste do que a história sobre duas flores que não se davam bem: uma canção popular que deve ter sido inspirada na natureza, já que é difícil encontrar as duas espécies vegetais no mesmo ambiente e sem a interferência do Homem.

Enquanto os craveiros são originários da Europa e precisam de certas condições de solo e clima para se reproduzirem, as roseiras são uma das plantas mais antigas e difundidas do mundo, tendo sido encontradas nos jardins asiáticos, mais de cinco mil anos atrás.

Enquanto o cravo conquistou simbolismos altruístas e libertários (como na revolução portuguesa de 1974), a rosa é uma flor solitária (na maioria das vezes), de poucas pétalas e caule espinhoso, além de ser culturalmente associada às emoções mais intensas do coração.
Como a minha avó e a canção que (possivelmente) me cantava, também tenho uma relação conjugal complicada.

Somos duas espécies de famílias diferentes que produziram uma geração híbrida e delicada, única do gênero. Vivemos artificialmente numa estufa europeia, afastados de nossos habitats de origem e incapazes de florescer sob as condições geográficas e climáticas do outro. Simbolizamos ideias opostas: enquanto um personifica os valores da família e da religião, o outro é a mais pura manifestação da solitude, de uma forma de vida sem raízes e com poucas responsabilidades.

Somos o cravo e a rosa brigando de uma sacada, da sala, da cozinha, do quarto e até de dentro do carro. Somos um cravo (com o orgulho) ferido e uma rosa despedaçada (no chão). Somos um cravo doente (de raiva e frustração) e uma rosa pondo-se a chorar (de ódio pela vida gregária em que se meteu).

E assim como minha avó, eu também ignorava que havia outros quatro versos nesta cantiga. Não sei se expressam o temor por um desfecho trágico para essas duas flores tão diferentes, tornando seu final mais feliz; ou se fazem uso do inevitável epílogo para toda estória infantil, quando envolve uma relação tão cheia de paixões fortes. Mas o fato é que ainda há esperança para esse cravo-da-Índia e essa rosa-brava.
“[...]O cravo fez serenata
 A rosa foi espiar
As flores estão felizes
Porque eles vão casar.”

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O dente (doce) de leite

No final do século XIV, surgiu uma expressão entre a aristocracia inglesa para se referir ao forte desejo que alguns de seus membros possuíam por alimentos e iguarias adocicadas, o sweet tooth (literalmente traduzido como o dente doce).

Mas, na verdade, isso não é nem recente nem limitado à classe nobre da sociedade.

Dizem os evolucionistas da espécie humana que, antes mesmo de qualquer civilização rudimentar ter sido formada, os caçadores e coletores pré-históricos já apresentavam uma visível predileção pelas doçuras oferecidas pela natureza, como maçãs, pêras, bagas silvestres e mel. E a razão não está na cara, mas na camada adiposa da barriga: se era necessário gastar tanto tempo e esforço na procura de alimentos, esses deveriam conter alto valor calórico.

Curiosamente, o doce é um dos mais fracos dos cinco gostos básicos do nosso paladar, enquanto que o amargo é o mais forte. De novo, a culpa é de nossos primos de neandertal que, durante suas buscas por comida, foram percebendo que o amargor sentido ao mastigarem certas plantas estava associado à presença de toxinas potencialmente nocivas à saúde. Dessa forma, fomos criando uma baixíssima tolerância para o sabor amargo e nossas palilas gustativas, um insaciável desejo por doces, balas, bolos, tortas, pudins, chocolates...

E tudo começa pelo morno e adocicado leite materno, farto de lactose. Ou pelo leite em pó, produzido e fabricado para suprir absolutamente todas as carências dos recém-chegados ao mundo dos açúcares. Mas é o próximo estágio no desenvolvimento palatal da criança o que mais assuta: a fase das papinhas.

Felizmente, foi mais fácil que mamão com açúcar e nada parecia causar mais excitação nela do que saborear uma fruta madura e esmagadinha, entregue a colheradas numa boquinha ávida por novas experiências. O problema, mesmo, foi introduzir qualquer outro tipo de comida que não fosse tão doce.

E eu tentei de tudo com a minha filha, desde mingau de arroz, purê de batata, sopa de cenoura, até os mal-cheirosos produtos industrializados para bebês. Ela simplesmente rejeitava qualquer coisa salgada.

Mas, numa inesperada janta em família, a minha menina acabou provando um pouco do nhoque que os pais comiam e, a partir de então, passou a quase “comer” qualquer refeição que também estivéssemos compartilhando. Quase porque ela bem que tentava morder e quebrar o alimento, mas faltavam os dentes e sobravam caretas para concluir, sofregamente, tal tarefa. Onze meses e a minha filha continuava tão banguela quanto quando tinha nascido, e eu continuava dando bolachinhas (inclusive recheadas com chocolate belga), para fazê-la praticar o exercício da mastigação.

Mas, numa inesperada conversa pelo Skype com a família, minha mãe perguntou o que ela estava comendo, sentada no chão, debaixo da mesa com tampo de vidro da sala de jantar. Naquele momento, ao sentir uma saliência cortante na não-mais-tão lisa gengiva inferior, eu sabia.

Sabia que ela estava ficando pronta para saciar, com plenitude e destreza, seu desejo ancestral por doce.

E assim despontou o primeiro dente de leite da minha filha. E tenho minhas suspeitas que é o sweet tooth.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

À beira de um ataque (psicótico) de nervos

Derrick Bird era um motorista de táxi no vilarejo de Cumbria, noroeste da Inglaterra, por mais de vinte anos. Considerado uma pessoa simples e agradável pelos seus colegas de trabalho, ele tinha 52 anos, era divorciado com dois filhos, morava sozinho e possuía porte de arma há mais de duas décadas.


Numa não-tão bela manhã de junho de 2010, ele saiu de casa carregando sua espingarda de caça e seu rifle calibre .22 com mira telescópica, durante uma trágica crise psicótica que acabaria com a vida de treze pessoas.

Durante pouco mais de três horas, sua aberração de conduta em relação aos padrões dominantes da sociedade cumbriana teve início com a morte do seu irmão gêmeo, David, e terminou com a própria, num lugar remoto perto da costa do Mar da Irlanda.

Familiares, amigos, aficcionados por notícias sensasionalistas da imprensa e profissionais da mente humana tentam entender as razões que desencadearam a falha no autocontrole, no comportamento da afetividade, no raciocínio e no senso da realidade de Derrick Bird. E já se especula que o vil metal tenha sido o que, de fato, puxou o gatilho daquelas armas, uma vez que o advogado da família e responsável pelo testamento da mãe de Derrick figurava entre as dezenas de vítimas.

No entanto, não importa muito se tudo aconteceu por causa de uma predisposição genética ou por fatores ambientais, orgânicos ou psicossociais. Desde o surgimento da literatura gótica no século XVIII (na mesma Inglaterra do taxista Bird), com O Castelo de Otranto de Horace Walpole, as psicopatologias (e seus autores) têm se tornado obras de culto no mundo inteiro. Existe inclusive um passeio turístico pelas ruas de Whitechapel, no centro de Londres, onde um certo Jack estrangulou e estripou onze prostitutas por volta de 1888.

Mas hoje, graças aos filmes de ação como Sr. & Sra. Smith (em que, ironicamente, a protagonista é embaixadora das Nações Unidas fora das telas), aos games violentos e à proliferação de blogs do tipo DIY (do it yourself = faça você mesmo), é possível conquistar as manchetes dos jornais mais importantes do planeta e sair do anonimato de uma existência medíocre em questão de horas.

Eu descobri uma combinação ideal de todos os fatores acima mencionados para me manter constantemente à beira de um surto psicótico:

1. Engravide do seu namorado de uma cultura e religião completamente diferentes da sua;
2. Case com esse mesmo namorado de uma cultura e religião completamente diferentes da sua;
3. Conheça os pais extremamente religiosos e conservadores do seu agora marido de uma cultura e religião completamente diferentes da sua;
4. Vá viver no exterior sozinha com sua filha e seu marido de uma cultura e religião completamente diferentes da sua, para ficar longe dos seus sogros extremamente religiosos e conservadores;
5. Passe sete meses cozinhando, limpando casa e cuidando sozinha da sua filha, com uma ajuda mínima do seu ocupado marido de uma cultura e religião completamente diferentes da sua;
6. Escute semanalmente dos seus sogros extremamente religiosos e conservadores o que fazer e não fazer na criação de sua filha;
7. Veja seu ocupado marido de uma cultura e religião completamente diferentes da sua passar as noites de sexta-feira com os colegas de trabalho fazendo “networking”;
8. Seja a primeira a levantar e a última a dormir na família, mesmo nos finais de semana e feriados, porque seu ocupado marido de uma cultura e religião completamente diferentes da sua precisa descansar;
9. Recupere os quilos da gravidez que você demorou a perder, pois seu ocupado marido de uma cultura e religião completamente diferentes da sua não lhe dá tempo pra você mesma nem tem condições de pagar uma babá, e a comida se tornou seu único prazer;
10. Assista ao seu ocupado marido de uma cultura e religião completamente diferentes da sua gastar as economias num carro novo, aumentando, assim, suas chances de voltar a morar com seus sogros extremamente religiosos e conservadores.

Durante a TPM e tendo-se a predisposição genética certa, essa é uma fórmula infalível para despertar seu psicopata adormecido.
http://mulheresimpossiveis.wordpress.com/2008/11/03/como-matar-o-seu-marido/


Obs.: Para as mulheres que já saíram da aceitável beira e estão prestes a ter uma crise psicótica, o texto acima é terminantemente desaconselhável, pois esse post é pura e simplesmente um desabafo, não uma incitação pública ao crime.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

The Baby Group

Ah... Se eu soubesse que era tão saudável para nós duas, eu teria me juntado ao grupo assim que chegamos em Oxfordshire, sete meses atrás.


Mas é difícil para alguém, que desde a idade adulta nunca possuiu nada permanente além do que coubesse numa mala preta de 23 quilos, conseguir cortar o cordão emocional com a criatura mais intrigante que já entrou em sua vida.

Nem mesmo a minha mãe entendeu meu apego àquele velho e calejado modelo de poliéster da Primicia, no aeroporto de Beagá em 2008. Depois de quatro longos anos no exterior, sem Skype nem MSN, eu estava mais preocupada em avistar minha fiel companheira na esteira do terminal doméstico do que atravessar a única porta envidraçada que nos separava e abraçá-la com toda a força de nossa saudade.

Imagino que deve ter parecido um gesto de fria e insensível indiferença ao seu amor materno, mas foi apenas um ato cheio de um outro tipo de sentimento em relação à única constância na minha vida, naquele tempo todo fora do Brasil.

Hoje, eu não daria muita importância para ela em aeroporto algum do mundo, pois tenho algo mais precioso para carregar nos braços. E, pra falar a verdade, ela anda meio encostada desde que a minha pequena família de três se estabeleceu no vilarejo de Kidlington.

Nesses últimos sete meses, é da minha filha que não tiro os olhos nas saídas ao supermecado e nas visitas aos amigos; é dela que me tornei inseparável, vinte-e-quatro horas por dia, sete dias por semana. Sim, aquela mulher livre e independente foi desaparecendo, à medida que a minha mais nova bagagem de mão foi crescendo e aprendendo a gritar e a fazer manha.

Durante esses sete meses, acho que eu precisava passar por todos os bons e maus momentos da maternidade de forma intensa. Eu precisava possuir algo até a total exaustão; até a completa saciedade; até me sentir como Natalie, a personagem de Rowan Coleman, em “The Baby Group”:

Now the capable person she once was is trapped inside a crazy’s woman body, longing for just one decent night’s sleep and words of more than one syllable.
Foi essa inglesa de Hertfordshire e Jenna (a assistente social do município que ouviu, por mais de uma hora, muitas das minhas recentes estórias) que me incentivaram a participar do grupo de mães-e-bebês do Centro Infantil Kaleidoscope. Por duas horas semanais, esse conjunto heterogêneo de pessoas se assemelha muito ao instrumento físico e repleto de espelhos que dá nome ao lugar e que, a cada momento, apresenta diferentes e interessantes combinações. Mas que, no íntimo, é formado pelos mesmos elementos.

Ah... Se eu soubesse que éramos todas iguais em nossos medos, sentimentos e inexperiências, eu teria confessado minha inabilidade de possuir sozinha assim que chegamos em Oxfordshire, sete meses atrás.

Eu teria entendido que liberdade e independência são as melhores heranças que a minha filha pode receber da mulher que eu era, antes de abandonar o velho e calejado modelo de poliéster da Primicia no depósito de casa.

Para conhecer mais sobre a autora, visite o site:

domingo, 3 de outubro de 2010

A Tragédia do Pós-Parto no Reino de William

To pee or not to pee...
Eis a minha questão nefrálgica: será mais nobre
Na preguiça de levantar da cama quentinha sofrer as pontadas
Com que a bexiga cheia e enfurecida me alveja,
Ou insurgir-me contra um mar úrico de provações
E, sem luta, pôr fim à vontade de fazer xixi? Dormir: não mais.
Dizer que acabei com uma corrida ao banheiro a angústia
E as mil pelejas naturais - herança da mulher grávida:
Expelir para dormir... é uma consumação
Que bem merece e desejo com fervor.
Dormir... Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:
Pois quando livre do líquido excrementício,
Novamente no repouso do leito o sonho que eu tenha
Deve fazer-me hesitar: eis a suspeita
Que impõe tão curta vida ao meu fluido renal.
Quem sofreria as incontinências de esforço,
O agravo do cálculo, a afronta das nefropatias,
Todos os tormentos de uma infecção urinária,
As delongas nas filas para os banheiros públicos,
As piadas que dos amigos nulos tenho de suportar
O mérito paciente, quem o sofreria,
Quando alcançaria a mais perfeita quitação
Disfarçada atrás de uma moita? Quem levantaria peso,
Gemendo e suando sob a vida pós-parto,
Se o receio de alguma coisa da bexiga escapar,
–Essa região desconhecida cujos limites
Jamais mulher alguma conquistou de volta –
Não me pusesse a voar para uma confortável peça de louça?
O pensamento assim me acovarda, e assim
É que se cobre meu corpo aquecido
Com o frio da madrugada e muita melancolia;
E desde que me prendam tais cogitações,
Viagens de carro a destinos distantes
Desviam-se de rumo e cessam nos postos de gasolina
Para outro tipo de ação.

Baseado na tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ser_ou_n%C3%A3o_ser

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Sopa de letrinhas

Não é canja de galinha nem creme de ervilha, mas, desde os dezesseis anos, sou eu que estou boiando numa sopa de emoções, temperada com meus próprios hormônios.


E em nenhum momento, desde aquela época, a refeição foi tão indigesta do que nas minhas 39 semanas de gravidez. Como se as crises de identidade e as dúvidas sobre a maternidade não fossem suficientes para desestabilizar a saúde mental de qualquer mulher, ainda tive que lidar com um caldo hormonal difícil de engolir.

Assim, além dos conhecidos estrógeno, progesterona e testosterona, minha corrente sanguínea foi inundada com o folículo estimulante, o beta-HCG, o melanotrófico, a aldosterona e o lactogênio placentário humano. Só não experimentei uma pitada da dolorosa oxitocina, porque optei pela cesariana antes de entrar em trabalho de parto.

Mas o que ajudou bastante, naquele período, foi inserir mais uma letrinha à sopa de hormônios femininos: a endorfina. Não produzida pelo consumo de chocolate (já que passei por uma estranha e inusitada fase salgada durante a gestação), mas com a prática excessivamente desaconselhável de exercícios físicos. Acho que frequentei a esteira do condomínio até um mês antes de dar à luz.

Entretanto, quase onze meses mais tarde, ainda sofro de indigestão a cada quatro semanas, agora de volta aos ingredientes básicos do caldo hormonal. E sempre quando meu marido está incomunicável e cheio de trabalho e eu estou em casa, a sós com a minha filha... Já sem paciência, sem energia e sem condições emocionais de segurar o choro. De repente, o mundo inteiro se transforma num lugar cruel e inóspito e a minha vida, num beco sem saída. Permaneço ali, ao lado dela, prostrada no chão e sem forças para reagir, apenas permitindo que as lágrimas saiam e corram pela face, até se cansarem sozinhas e cessarem.

Por experiência própria, sei que isso não é algo muito nobre para se testemunhar. Parece muito mais com um momento de fraqueza do que de fragilidade. E eu só fui entender a minha mãe depois que me tornei uma.

Espero, somente, que o meu estoque de sopa esteja perto do final, para que a minha menina não precise ter os próprios filhos e sentir, no corpo todo, os efeitos que as letrinhas hormonais podem causar.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Assim caminha a humanidade

Tudo aconteceu do jeitinho que a natureza tinha planejado que deveria ser.

Primeiro, ela firmou o pescoço e passou a sustentar a própria cabeça. Depois ela tentava ficar sentada, com e sem apoio nas costas. De bruços, ela começou com chutes para impulsionar o corpo pra frente até que conseguiu sair do lugar rastejando e, mais tarde, engatinhando. Em pouco tempo, ela foi se agarrando nos pés das cadeiras, nos cantos do sofá e nas alças das gavetas para ficar de pé. E não vai demorar muito para dar os primeiros passos sozinha.

É claro que houve alguns solavancos pelo caminho e incontáveis tombos, mas tudo transcorreu da maneira mais natural possível, graças aos aminoácidos de 23 pares de cromossomos, sintetizados e programados para desencadear o maravilhoso processo de desenvolvimento no organismo do ser humano. Mas os únicos maravilhados com o incrível trabalho dessas microscópicas substâncias celulares são os pais da criança e não a própria, que age com a mais infantil naturalidade e quase indiferença às mudanças pelas quais passa o próprio corpo.

Pra ela, o que de fato causa maravilhamento são outras minúsculas descobertas no mundo exterior: um fio de cabelo, um farelo de bolacha, um fiapo de roupa achados ao acaso no chão, durante suas expedições exploratórias pelos cantinhos da casa.

No entanto, nada é tão fascinante pra minha filha do que um dos mais simples e extraordinários elementos da natureza, formado por duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio, a água.

E a água do banho parece ser fonte inesgotável de espanto e admiração.

E arrisco a dizer que são os melhores e mais esperados quinze minutos do seu dia. Ela se diverte mais numa banheira repleta desse líquido informe, incolor, insípido e inodoro do que com qualquer outro brinquedo de última geração, cheio de luzes estroboscópicas e sons espalhafatosos. Mas o que mais diverte sua mãe são suas tentativas ingênuas de segurar a água correndo da torneira com seus dedos pequeninos e aflitos e seu olhar intrigado com essa maravilha da natureza.

E durante aqueles quinze minutos diários, sentada ao seu lado e contemplando o encantamento sem fim no rosto da minha filha, duvido que aminoácido algum seja o verdadeiro responsável pelo o que dá impulso à caminhada do Homem: a curiosidade.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Ode Às Fezes

As pessoas que me conhecem e sabem da minha obsessão por escatologia (só não gosto de estórias de vômito, porque, desde a gravidez, esse é um tópico que não me desce muito bem) já devem estar se sentindo desconfortáveis com a frequência com a qual abordo o assunto. Consigo até ver minha mãe balançando a cabeça em reprovação toda vez que ela se depara com um texto meu nesse sentido e dizendo, cheia de culpa, que deveria ter me deixado brincar mais com terra durante a minha fase anal...

E, mesmo tentando escrever com certa elegância e evitando palavras de baixo calão, quem não me conhece deve ficar, no mínimo, surpreso, senão horrorizado com a recorrência do tema neste espaço.

Mas, pra mim, é inevitável.

Se antes da minha filha nascer ele já se encontrava entre os meus cinco favoritos, desde que a Pequena entrou na minha vida, há quase onze meses, a maior parte do meu tempo tem sido dedicada à função ou de trocar fraldas sujas ou de me preocupar se o cocô dela está da cor e da consistência adequadas: nem muito verde nem muito mole, sinais de um organismo não saudável.

E isso foi algo que eu descobri na labuta materna diária com a minha menina, pois raríssimas são as pessoas que têm conhecimento disso ou tocam no assunto abertamente e poucos são os pediatras que aconselham os pais de primeira viagem a prestarem atenção nas fezes dos filhos. Alguém por acaso sabe quantas vezes, por dia, é normal para um bebê fazer cocô? Uma? Duas? Depois de cada mamada?

Não sei se há muita gente interessada na conversa. Ninguém quer ver. Ninguém quer sequer chegar perto. Que puxem logo a descarga e levem para bem longe a prova de nossa animalidade (ou a de nossa prole).

Sim, pensamos e sentimos, mas também fazemos cocô, como qualquer animal irracional. E, na verdade, para os estudiosos e praticantes da yoga, só conseguimos pensar com clareza e sentir com profundidade se fizermos cocô. Não para purificar o corpo, mas para mantê-lo funcionando sem bloqueios e de maneira sadia: nem muito, nem pouco; nem muito duro, nem muito mole.

Assim, da próxima vez que você (que me conhece ou não) se deparar com um texto meu não-tão-elegante sobre escatologia, não faça cara feia nem se sinta ofendido. Fazer cocô é um prazer gratuito e se a questão for analisada com frieza, chega-se à mesma conclusão do meu sábio pai: “É a merda que sustenta o Homem.”

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A Escala 007

Na década de 50, quando James Bond entrou para o inconsciente coletivo e universal como o estereótipo do perfeito espião, Sir Ian Lancaster Fleming havia imaginado um personagem elegante, refinado e charmoso, além de ter todas aquelas habilidades de um verdadeiro agente secreto do MI-6.
Um oficial da Inteligência Militar britânica com licença da Rainha para matar e capacidade de executar suas missões de maneira eficaz e sutil.


Da mesma forma, há anos imagino a progressão da intimidade (escatológica) nos meus relacionamentos amorosos ao estilo 007.
A condição básica a respeitar é a de que se pode falar sobre tudo, mas deve-se agir com a maior discrição possível. Pois, ainda que seja parte normalíssima do sistema digestimo do Homem (toda pessoa coloca para fora, de 12 a 25 vezes por dia, cerca de um litro de uma mistura gasosa contendo sulfetos, ácidos graxos e enxofre), nenhuma arma é mais mortífera, nenhum golpe é mais letal, nenhum dispositivo tecnológico é mais poderoso para aniquilar a magia e o romance de um casamento do que liberar o conteúdo comprimido na ampola retal violenta e ruidasamente.

Então, como deixar a natureza seguir seu curso sem começar uma guerra fria doméstica e transformar o ambiente familiar num campo de batalha fétido e pestilento?

Sem dúvida, é quase uma missão impossível, mas como cinéfila profissional e apaixonada por boas estórias de espionagem, resolvi implementar as regras fleminguianas na minha casa e adotar a escala 007, quando o assunto envolver os sub-produtos da digestão.

Tenho certeza de que o jornalista e escritor londrino pensou um pouco em si próprio (ele mesmo fez parte do Serviço de Inteligência da Marinha britânica durante a Segunda Guerra Mundial), quando descreveu seu personagem fictício e, provavelmente, ficaria desapontado em ver a mais recente versão de James Bond.
Na verdade, o criador do agente 007 morreu em 1964 e só pode ter visto a adaptação cinematográfica de Dr. No, lançada dois anos antes.

Até hoje, foram seis os atores “oficiais” que personificaram o espião de Fleming (Sean Connery, George Lazenby, Roger Moore, Timothy Dalton, Pierce Brosnan e Daniel Craig) e, à medida que o tempo passou, eles parecem ter se tornado mais vulgares e grosseiros e menos elegantes e sofisticados.

Como num casamento... Quando o charme e a sedução iniciais dão lugar ao hábito e à indiferença. É por isso que a utilização da escala 007 pode ser muito útil para avaliar o nível de romance num relacionamento. Quanto mais próximo do galã escocês, melhor. Porque sua atuação é uma prova de que não é preciso explosões e efeitos especiais para completar a mal-vista e mal-cheirosa missão digestiva. Bastam astúcia e discrição.
E menos feijão, repolho, carnes e ovos na dieta.

E se o barulho for inevitável e você for flagrado e surpreendido em plena ação, sem tempo para o plano de fuga, desvie a atenção do inimigo com um romântico e inesperado beijo à moda de Bond, James Bond.
Pois sempre haverá Um Novo Dia Para Morrer.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

A minha razão

Nunca sonhei em ser mãe. Ou em ter uma família.

Desde os quinze anos, a única coisa que eu desejava ardentemente era visitar cada cantinho singular deste imenso e diversificado planeta.
Mas não superficialmente.

Eu queria ser uma “quase” nativa e conhecer os atalhos mais secretos do lugar e os mercados e restaurantes mais bem guardados dos estrangeiros.

Eu queria atravessar o Saara num camelo, dormir no deserto com os Tuaregues e me perder nas ruas da maior cidade do mundo árabe, o Cairo. Eu queria descer a América do Sul num furgão, de Machu Picchu até o Ushuaia, dando um mergulho na Laguna Verde boliviana e dançando um tango em Buenos Aires.

Queria ser uma japonesa de quimono, uma padeira italiana e uma fabricante de camembert no noroeste da França.

Eu queria ser muitas pessoas e ter muitas vidas, mas hoje eu sou apenas uma mãe, brasileira de 35 anos, casada e morando num vilarejo da Inglaterra. Uma mulher que já desempenhou outros papéis e que não tem mais certeza de poder atuar em outros cenários, desde que permitiu a entrada de outros dois importantes personagens na sua vida.

Sim, eu me deixei engravidar porque estava cansada do monólogo.

A excitação de pisar em palcos diferentes, apenas com a minha inseparável mala de 23 quilos, estava desaparencendo. A ideia de acordar em cidades exuberantes, de comer e beber coisas típicas e de presenciar o pôr-do-sol sozinha não mais me fascinava.

Faltava algo... Alguém... Ela... A minha família.

Mas, desde a gravidez, eu me perguntava o motivo de ser ter filhos.
Por que passar por nove torturantes meses de enjoo, azia, dor nas costas, constipação e noites sem sono? Não pode simplesmente ser para a perpetuação da espécie! Ou não haveria adoção. Também não pode ser apenas a satisfação do instinto materno de amamentar, cuidar e educar. Senão, só haveria a adoção de bebês e não precisaríamos de creches ou escolas. E não pode ser para dar uma razão à vida do casal, pois há milhares de mães (e pais solteiros ou viúvos ou separados) que voltam ao trabalho e à carreira em questão de meses após o nascimento dos filhos. E é, definitivamente, impossível que seja para dividir e compartilhar momentos de felicidade, já que eles não são tantos assim e sobram os de choro, preocupação e sacrifício.

Então, por que tê-los? Por que desejá-los? Por que pensar neles e nos seus quartinhos enfeitados e roupinhas minúsculas?

Eu não tenho a resposta.

Só sei que, no meu caso, apesar dos meses de tortura e dos momentos de aflição, eu precisava dela na minha vida. Deles... Dos dois... Mesmo sem nunca ter sonhado com uma família e mesmo que este seja o mais comum e ordinário dos papéis que uma mulher possa desempenhar aqui, no Brasil, no Japão, na Itália ou na Normandia. Mas de maneira nada superficial.

Porque ser mãe é aprender mais do que ensinar e eu tenho que assistir a muitas aulas com a minha filha (principlmente as de paciência).

E, quem sabe daqui a alguns anos, eu consiga voltar a visitar cada cantinho singular deste imenso e diversificado planeta.
Acompanhada.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Carma hindu-brasileiro

Eu sou péssima para me lembrar de aniversários, mas há certas datas impossíveis de esquecer na minha vida.

Era a manhã de 22 de fevereiro de 2009 e estávamos no meu minúsculo apartamento em Bangalore. Eu já estava de pé, me vestindo, enquanto ele permanecia deitado na cama, com seus longos cabelos negros espalhados pelo travesseiro. Quando virou o rosto para me observar, eu falei (meio que instintivamente e sem refletir muito) que nunca mais ficaríamos sozinhos daquela maneira.

Eu já estava grávida de uma semana. Mas não sabia. Não conscientemente.

Só fui ter certeza depois de comentar com uma amiga (também de forma casual e quase de brincadeira) que não menstruava há várias semanas. Umas seis, se a memória não me falhava. Mas como o meu ciclo era bastante irregular sem o uso de anticoncepcional, não havia motivos pra preocupação. De qualquer forma, ela me sugeriu fazer um teste caseiro de gravidez.

E eu fiz. Na manhã do dia 19 de março.

Deu positivo, mas o resultado “apareceu” tão mais rápido do que os 120 segundos descritos na bula, que precisei de uma segunda opinião para acreditar. E uma terceira. E quarta...

Assim, dois testes de urina, um exame de sangue e um ultrassom intra-vaginal mais tarde, eu estava inequivocadamente convencida da presença de um feto em formação no meu útero. Ou quase.

Mesmo com as evidências científicas em mãos, os enjoos matinais e o constante cansaço, eu não conseguia me ver como mãe. Na verdade, não conseguia nem ver uma barriga crescendo! Eu só engordei onze quilos e a maioria deles no último mês de gestação. Pra mim, parecia, apenas, um pouco de gordura além do normal. É certo que uma gordura mais rija e menos flácida, mas, ainda assim, bem semelhante ao tecido adiposo.

É, minha negação durou as 39 semanas de gravidez e, frequentemente, eu me atormentava com a ideia absurda de deixar a maternidade de braços vazios! Mas havia, de fato, um bebê no meu ventre: o mais lindo que todos podiam esperar de uma mistura de genes tão fora do comum.
E ela chegou nos cumprimentando aos prantos e com seus imensos olhos castanhos bem abertos.

Desde então, não conseguimos mais ficar sozinhos daquela maneira, como um despreocupado casal de namorados.

E se engana quem pensa que filho é um ser inocente que não pediu para nascer. Como diz a minha mãe: “Pediu sim”. Implorou talvez. E, agora, somos três nesta jornada cármica a aprender e ensinar várias lições uns para os outros.

E a manhã de 6 de novembro é mais uma data que jamais esquecerei, pois foi quando meu carma hindu-brasileiro veio ao mundo.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Carma indiano

De acordo com as mais recentes estatísticas, somos quase 6,5 bilhões de habitantes no planeta Terra. Dentre toda essa gente, umas vinte têm real importância pra mim e outras duas dezenas já tiveram alguma relevância em algum ponto da minha vida.  Isso deve se repetir, de maneira mais ou menos similar, para cada um de nós.

Passamos tempos morando num lugar, cumprindo uma determinada rotina e envolvidos num mesmo círculo de amigos e familiares e, de repente, o ato de uma única pessoa tem o poder de mudar nossa história irremediavelmente. Foi assim que conheci meu marido.

Nenhum dos dois queria, de fato, estar naquele lugar.

Eu tinha acabado de ter um relacionamento findo por e-mail, com direito a fotos anexadas de jogadores de futebol levando pontapés no traseiro (o que esperar, em pleno século 21, de um namorado oito anos mais jovem e vivendo num outro continente?). Mas era o aniversário de um amigo e, após muita insistência, resolvi me unir ao grupo e ir ao tal clube noturno.
Ele recém tinha chegado a Bangalore, era novo na cidade e passara os últimos dias vomitando. Mas, a convite do próprio médico, também se encontrava no local.

E foi assim que algo maior e mais poderoso que qualquer um de nossos planos mundanos se manifestou e ligou nossas vidas. Já são quase seis anos juntos, separados, juntos, separados e finalmente casados. E, se tantos acontecimentos não tivessem sido suficientes para alterar o curso de nossas histórias, faltava a entrada de uma personagem-chave para dar tempero à nossa novela indiana pessoal: a mãe do marido.

Descobri que todas aquelas piadas sobre “ela” não são apenas folclore ou crendice popular. Ela existe e a minha é realmente o esterótipo universal da sogra, com o agravante de morar debaixo do mesmo teto. E ainda não consegui ter certeza se o fato de não termos uma língua em comum é uma vantagem a meu favor (pois não preciso escutar suas queixas e lamúrias) ou um ponto negativo para a relação conjugal (já que ela desfia o rosário diretamente para o filho).

O que me causa mais temor, no entanto, são nossas similaridades.
Ela representa quase tudo o que qualquer mulher ocidental de bom senso repudiaria: submissão e obediência ao marido, devoção aos filhos, veneração às figuras religiosas e abnegação da própria feminilidade.
Ela só existe para servir os homens ao seu redor.

E, apesar de tão distantes, odeio ter que reconhecer que estamos muito próximas em pensamento e ação. Segundo a ponte que nos mantém unidas, o marido-e-filho, temos preocupações semelhantes em relação à família e nos comportamos de forma parecida quando o assunto é a administração (econômica) da casa.

Estranhamente, acredito que seríamos boas amigas numa outra encarnação, mas o modo como ela parece ter se entregado à fatalidade de seu destino de mulher indiana me provoca repulsa, desconforto e medo. Não quero seguir o mesmo caminho descendente, rumo à depressão e à completa apatia. Não com uma menina de apenas dez meses para criar e educar.

Mas a resistência a esse modelo tem produzido tensão entre os membros do lado paterno da família. Qualquer transgressão dos costumes é interpretada como desrespeito, e uma mulher-nora-e-cunhada não tem muito direito à opinião própria. O caminho do meio seria o mais sensato mas é o menos provável a ser trilhado, quando os obstáculos envolvem crenças arcaicas e profundamente enraizadas nas tradições de um povo.

Uma amiga me disse recentemente para não me preocupar, pois até sogras têm data de validade. Isso, por si só, já é preocupante, porque a mãe da minha tem mais de 80 e, se a genética prevalecer, ainda tenho 30 anos de convivência com a sogra. E não sei se vou conseguir sabedoria para aprender mais uma lição cármica ou se, novamente, vou acabar fugindo.

Dessa vez, do meu carma indiano.

Carma brasileiro

Pode ter sido coincidência, mas eu nunca acreditei em casualidades.
Não em três. E não depois de ter vivido anos no Sub-continente, encontrado meu marido punjabi e concebido uma filha meia-indiana. Nada acontece por acaso e até os homens da ciência concordam que "para toda ação existe uma reação de força equivalente, em sentido contrário". O que, em outras palavras (sânscrito, para ser mais exata), significa karma.

É só assim que posso definir minha estranha e conturbada relação com uma gaúcha que seguiu um caminho paralelo ao meu, por três longos anos e três diferentes empregos, (naturalmente) na Índia.

Estranho porque já havíamos nos conhecido no Brasil, superficialmente.
Eu sequer sabia o sobrenome dela; apenas que trabalhava numa organização que promovia “intercâmbios culturais” com a qual eu tinha feito os meus.

Até que um dia, a 14 mil quilômetros de distância, recebi um e-mail perguntando a minha opinião sobre a possibilidade de ela fazer parte da ONG indiana onde eu estava voluntariando em Bangalore. Não, não e não. Aquele era um barco mal-construído, putrefato e em avançado processo de afundamento, e seria uma estupidez subir a bordo naquele momento...

Semanas mais tarde e depois de usar o FGTS e todas suas economias, lá estava ela com um sorriso triunfante no rosto e sapatos inadequados para as ruas empoeiradas da capital de Karnataka.
Os dois duraram pouquíssimo tempo.

Assim que percebeu (com os próprios olhos) no que havia se metido, deliberada mas enganosamente, raiva e medo eram as únicas emoções visíveis dos seus pés à cabeça. Raiva por ter sido lograda pelo megalomaníaco fundador, diretor e secretário-geral da ONG e por sua namorada brasileira; e medo por não ter mais condições financeiras de retificar o erro e voltar para o Brasil. Acabei sendo a opção mais óbvia para bode expiatório, já que ela dependia economicamente do citado casal.

Era a deixa que eu precisava para encontrar um emprego de verdade e abandonar aquela embarcação rota. Estranhamente, foi mais fácil e rápido do que eu imaginava. A demanda por nativos de qualquer língua da comunidade europeia era alta e, em questão de dias, já éramos funcionárias da Hewlett-Packard de Chennai, na costa leste da Índia.

Sim, nosso destino juntas parecia inacabado e, mais uma vez, dividíamos o mesmo ambiente profissional e doméstico (por dois meses chegamos a morar no mesmo apartamento!). Mas feridas recentes demoram a cicatrizar e nossa convivência provou ser impraticável, intelorável e impossível. Paramos de nos falar completamente, inclusive no trabalho, o que tornavam as reuniões de departamento patéticas: duas mulheres adultas, agindo de maneira infantil ao não dirigirem a palavra uma para a outra.

Mas, quando a sabotagem mútua no sétimo andar da HP começou, foi o sinal para desmontar a barraca e procurar novos horizontes...

Na verdade, não tão novo assim. Voltamos à velha, familiar e agradável Bangalore depois de sete tórridos meses de ausência, na capital de Tamil Nadu. E, obviamente, na mesma empresa de legendagem!

Por todos os deuses hindus, aquilo já estava se tornando ridículo.
Só podia ser carma! E dos ruins!

Mas eu não conseguia entender a lição que devíamos aprender juntas.
A simples menção do nome dela fazia o meu sangue ferver de ódio e os meus pensamentos passaram a girar em torno daquela criatura magricela de voz grave e risada irritante. Juro que eram horas e mais horas contando ao meu então namorado sikh o que ela tinha feito ou dito ou vestido ou comido no escritório. Tinha virado uma ideia fixa, uma obsessão, um vício na minha vida saber de e falar sobre AMV...

Até que um dia, ouvi da pessoa que havia nos contratado que ela estava deixando a empresa, coincidentemente na mesma data que eu havia mandava minha resignação.

Depois de três anos, nove meses e seis dias, eu estava farta da Índia, frustrada com a burocracia corrupta, cansada das constantes crises de diarreia e amargurada com a sufocante e conservadora cultura hindu.
E, em dezembro de 2007, embarquei no voo da British Airways com destino a Londres à moda Carlota Joaquina e, daquela terra, não levei nem o pó. Apenas a sensação de ter falhado na minha missão cármica com a brasileira de Porto Alegre que não representou nada antes nem depois da minha primeira estada no Sub-continente, mas que esteve íntima e cosmicamente ligada à minha vida por três longos anos e três diferentes empregos, (naturalmente) na Índia.

Nunca mais nos vimos, mas ela ainda visita meus pensamentos, em sonhos.
Sua passagem pelo meu caminho foi tão marcante que ela virou símbolo onírico do meu inconsciente e sempre aparece pra mim quando devo dar mais atenção ao meu negligenciado ego; pois egocêntrica é a melhor definição do meu carma brasileiro.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Tributo à família Araújo

Segundo a escala de (Virgínia) Apgar, minha filha ficou a apenas um ponto de receber avaliação dez no primeiro e quinto minutos de vida, por causa da cor de pele azulada. Provavelmente, ela sentiu frio fora do aclimatado útero materno.


Mas, com essa exceção, ela era um bebê normal...
Até apresentar um estalinho no quadril esquerdo, percebido, posteriormente, durante um exame pediátrico de rotina.

Depois de consultar vários especialistas e de fazer uma ultra-sonografia da área, deixamos o Brasil com a certeza de estar tudo normal e com a recomendação médica de repetir o teste aos seis meses de idade.
No entanto, são mínimas as chances de se conseguir uma brecha no abarrotado sistema de saúde público do Reino Unido (um verdadeiro SUS de primeiro mundo, onde é preciso marcar hora para ir à emergência do hospital!) e só pudemos ver a doutora Annie Hurley agora, quando a nossa menina está prestes a completar dez meses.

Ser mãe não é tarefa fácil, mas ser mãe de um filho doente deve ser uma das mais difíceis de se desempenhar, mantendo a dignidade. E foi por esse motivo que senti terror, pânico e uma profunda compaixão ao entrar na ala pediátrica do Centro Ortopédico Nuffield, em Headington, Oxfordshire.
A sala de espera estava lotada e, para qualquer lado que eu olhasse, havia crianças de próteses, muletas e em cadeiras-de-rodas. E tinha até um bebê com as duas perninhas engessadas! Uma cena que, por si só, encheria de tristeza o coração de qualquer pessoa, quanto mais de um pai.

O pior foi descobrir que a minha filha está, novamente, a um mísero pontinho da perfeição, para sua idade. Ao invés de 27 graus, o ângulo formado entre os ossos da bacia é de 28. Isso não é tragicamente anormal, mas coloca nossas vidas em suspense por mais um ano, quando teremos que fazer novos exames e medições. Só então os médicos vão ter mais clareza sobre o desenvolvimento ósseo daquela região e decidir se a extrema flexibilidade nas pernas da nossa menina é aceitável ou requer intervenção cirúrgica.

De repente, a imagem da minha única filha deitada numa cama de hospital me fez lembrar do acidentado e doloroso caminho trilhado por Lucinha Araújo e Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza. Seja qual for o nosso destino, rezo para ter a mesma força e coragem que aquele exemplo de mãe, ainda hoje, oferece aos pais do Brasil.

Da minha parte, deixo aqui meu sincero respeito por aquela família.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O grande segredo

Esqueçam os livros. Esqueçam o doutor Rinaldo De Lamare ou a Encantadora de Bebês, Tracy Hogg. Esqueçam os sites especializados e os blogs amadores. Esqueçam esta postagem assim que terminarem de ler...

Porque não há “receitas de bolo”, não há “guias-passo-a-passo”, não há instruções online a serem seguidas, quando o assunto é maternidade.

Cada criança é tão diferente da outra quanto sua impressão digital.
Cada uma traz consigo uma bagagem genética única para enfrentar sua estada temporária num ambiente sócio-econômico-político-cultural-religioso-familiar também único.

Então, por que procurar as respostas dadas por outros bebês?

Como dizia minha mãe, não importa se o parto é normal, natural, orgásmico ou friamente planejado; quando os filhos colocam a cabeça pra fora das suas respectivas progenitoras e espiam o mundo exterior pela primeira vez, não carregam o “Pequeno Manual Secreto” (à prova de líquido amniótico) debaixo dos braços. Pelo menos a minha obstetra não me entregou nada no hospital, além dos honorários da equipe médica.

Por outro lado, não há dúvidas de que exista um tipo de chip interno desencadeando cada fase do desenvolvimento infantil e que os bebês passem por elas de maneira, mais ou menos, similar. A minha filha, por exemplo, começou, primeiro, a firmar a cabeça; depois a sentar; faz pouco tempo que engatinha e, agora, parece pronta para ficar de pé. Tudo isso sozinha e instintivamente, sem recorrer a um tutorial disponível na internet ou à ajuda de um baby personal trainer ou ainda à leitura de um exaustivo tratado de algum pediatra ou psicólogo especializado em crianças.

Assim, por que se preocupar se o peso ou a altura está um pouco acima ou abaixo da média para a idade x ou y? Ou se os primeiros dentes de leite nasceram um pouco antes ou depois do esperado? Ou se as quantidades de cálcio, ferro, vitaminas A, C, D, E, K ingeridas diariamente estão corretas?
O bom e observador pai sabe quando o filho está saudável ou não, independente dos números descritos nos livros. (Como será que as mães de antigamente sobreviviam – e suas proles – sem os conselhos do dr. De Lamare?)

Além disso, todos nós temos nosso próprio ritmo de aprendizado, nossas limitações e primazias: faz parte daquela mala de mão (com 23 combinações de cromossomos maternos e paternos) que trazemos conosco ao mundo.

Por isso, não há dicas prontas, rápidas e fáceis para se criar uma criança.

Na verdade, não há nada realmente fácil na maternidade e até mesmo uma cesariana com hora marcada oferece riscos de vida.

Mas há várias certezas.

Um delas é que, por causa da inexistência do Pequeno Manual Secreto, estamos fadados a cometer erros com nossos filhos, assim como nossos pais cometeram com a gente, e os nossos avós antes deles...
É parte inerente da função, ou missão, de conceber outro ser humano.

No entanto, e aqui está o grande mistério dessas criaturinhas choronas, mesmo sem o tal manual, cada bebê já possui as soluções para os seus problemas, codificadas numa língua desconhecida pelos progenitores.
Leva tempo e pode demorar vários e vários meses (possivelmente anos ou até décadas!), mas bastam atenção e toneladas de paciência (outra coisa que eles deveriam trazem junto, na hora do nascimento) para desvendá-la e aprendê-la.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

A abominável insânia do meu ser

Eu tinha 19 anos quando tentei ler Milan Kundera pela primeira vez.

Em vão. Juro que não consegui virar a página um do livro. As palavras simplesmente não faziam sentido pra mim; pareciam o próprio idioma tcheco do autor.

Assistir à adaptação cinematográfica da obra, feita por Philip Kaufman, foi igualmente perda de tempo. Naquele momento...
Era como se eu não tivesse vivido o suficiente para compreender e sentir a leveza trágica dos personagens da "cidade das cem cúpulas" e de seus chapéus-coco.

Assim como na literatura, certas canções da minha adolescência passaram por mim sem muito peso, sem substância, levitando como música de fundo num restaurante com ar-condicionado.

Só fui entender o Exagerado Cazuza, por exemplo, em 2003, depois que uma importante pessoa saiu da minha vida por vontade própria e “um troço qualquer morreu, num corte lento e profundo, entre [ele] e eu.”
Não houve poeta que melhor traduzisse a minha dor de então.

Ontem foi a vez de Legião Urbana e sua Sereníssima.
Foi quando escancarei a porta de um aposento que nunca está trancada na minha morada interior; que há anos permanece entreaberta, espreitando e esperando a hora certa pra revelar o que esconde atrás de si.

Foi ontem que o meu “animal sentimental” de olhos carmins escapou do cômodo e tomou conta da casa; quebrou pratos, derrubou móveis, rasgou cortinas e estraçalhou os vidros das janelas; saiu correndo e gritando e deixou um rastro de vazio com a destruição.

Ainda não encontrei palavras na prosa tcheca que possam descrever meu hiato de insanidade, mas tenho esperança que os versos do cantor brasileiro estejam corretos e que agora, depois de soltar a besta, consiga alcançar meu equilíbrio, já que a insânia é abominável.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Enfim, só?

Ultimamente, nada me deixa mais infeliz do que fechar a porta de casa, às oito e meia da manhã, depois de dar um beijo de despedida no meu marido e desejar-lhe um bom dia de trabalho.


É o prelúdio da minha agonia.

Ainda com a mão esquerda na chave, olho para a minha filha pendurada no outro braço e sofro em pensar nas dez longas horas que teremos pela frente, sozinhas.

Era tudo o que eu queria cinco meses atrás, mas sinto que estou pagando um preço bem alto pelo meu egoísmo de então: ter a minha menina só para mim, nos seus primeiros anos de vida; formar com ela um vínculo tão intenso que ninguém, nem uma cultura ou religião, seria forte o bastante para desfazê-lo.

Mas o plano não está saindo da maneira que eu havia imaginado.
Na verdade, saiu foi pela culatra e ela está tão apegada à pessoa que mais vê e escuta todos os dias, que somente para de choramingar quando aconchegada no meu colo. Ela, inclusive, já demonstra sinais claros de ciúmes ao ver os pais abraçados ou a mãe (tentando) dar alguma atenção ao trabalho, doméstico ou de tradução.

O pior é que nem na sagrada hora do banheiro eu tenho conseguido fica em paz, a sós. Principalmente se for durante o período de ausência do marido, pois preciso ficar de olhos bem abertos nas aventuras exploratórias da minha filha. Agora que aprendeu a se virar e a engatinhar por todos os lados, ela quer investigar os cantinhos mais recônditos da casa, as gavetas, os armários, as mesinhas de cabeceira e tudo o que encontrar pelo caminho. E como adora o fio do mouse, da webcam, do aspirador de pó e do ferro de passar!

Não sei mais o que fazer. Ou ela se acaba de tanto chorar e me encho de culpa, ou ela consegue o que quer, fica no meu colo e eu me encho de culpa. Tenho tido tanto pavor dessas frequentes sessões de grito e histeria que chego a segurar a respiração e a caminhar na ponta dos dedos toda vez que ela tira o cochilo da manhã e da tarde, por medo de acordá-la!

Parece um beco, aparentemente, sem saída.

Como estou decidida a não deixá-la com estranhos até ela aprender a falar (por experiência própria sei que um adulto não dá conta de uma única criança, quanto mais de outras quatro ou cinco, como acontece nas creches do mundo todo! Ela, certamente, seria negligenciada.), só penso em importar meus pais aposentados do Brasil, para me ajudarem a cuidar dela.

Pai, Mãe, prometo publicamente que ofereço casa, comida, roupa lavada, as passagens aéreas para Oxfordshire, tudo para, enfim, poder ficar algumas horinhas do dia a sós.