Aconteceu exatamente como minha mãe tinha tantas vezes me prevenido que aconteceria. "Cuidado, criança cega a gente", ela me alertou diariamente por quase 6 meses... Mas alguém, realmente, dá ouvidos pra os conselhos alheios?
Pois naquela manhã igual a qualquer outra, lá estava eu na cozinha, preparando uma torrada e fazendo uma pausa do filme russo no qual trabalhava, enquanto minha filha havia permanecido no quarto, sobre a nossa cama e cercada de travesseiros. Uma prática que já tinha se tornado um hábito perigoso.
Ela começou, então, a choramingar por atenção, mas eu resolvi não encurtar meu devido e merecido intervalo e continuei virando a fatia de pão integral na frigideira anti-aderente.
Subitamente, um ruído abafado no andar de cima.
Em seguida, um choro agudo ecoando pela casa. E uma violenta descarga de adrenalina na minha corrente sanguínea, aumentando a frequência dos meus batimentos cardíacos a ponto de eu sentir meu coração na boca, enquanto subia as escadas e encontrava minha filha de bruços no chão, com o rosto enterrado no carpete.
Acho que ela só chorou daquele jeito quando passou por outro susto, no dia em que nasceu e foi arrancada do meu útero. E devia estar igualmente roxa ao redor das narinas... Uma cena terrível para qualquer pai! Fiquei apavorada imaginando se ela teria quebrado o nariz durante a queda e apalpei seus braços e pernas à procura de alguma fratura.
Nada. Só a pesada culpa por não ter escutado uma mãe muito mais experiente que eu.
Mas, na verdade, não é bem a criança que cega a gente. Nós é que acreditamos conhecer aquele serzinho vivo melhor que nós mesmos e acabamos por nos sentir excessivamente cofiantes e não percebemos o quão rapidamente ele se desenvolve. Até que, de um dia para o outro, BUM, acordamos de nossa ignorância.
Mas aprendi minha lição da maneira mais traumática possível e, desse episódio, espero que minha filha seja a única a esquecer seu primeiro tombo.
sexta-feira, 30 de abril de 2010
quinta-feira, 29 de abril de 2010
Mulher Invisível
Em novembro de 1961, quando chegou às bancas pelas mãos dos artistas Stan Lee e Jack Kirby, Susan Storm era uma superheroína de (literalmente) pouca visibilidade entre os membros do Quarteto Fantástico.
Com o passar do tempo e a mudança no contexto social e econômico dos leitores da Marvel Comics, a Mulher Invisível também se tornou a mulher do brilhante cientista Reed Richards e a mãe de Franklin e Val, começando a ter destaque no grupo e influência nas vidas do irmão, Johnny Storm, e do amigo de aventuras contra o Mal, Ben Grimm.
Uma carreira extraordinária e em ascendência que atingiu seu ápice em 2005, com o lançamento da versão cinematográfica dos quadrinhos e a personificação da heroína no fantástico corpo de Jessica Alba.
Da ficção para a realidade, no entanto, o script é bem diferente.
Se durante a gravidez eu já me sentia como uma “barriga ambulante”, depois do nascimento da minha filha eu não sou mais que uma coadjuvante na minha própria vida; uma figurante, simplesmente posicionada para preencher o pano de fundo, enquanto a trama principal acontece no primeiro plano.
Na Índia, não tenho mais um nome, mas um adjetivo. Na verdade, vários. Sou chamada de cunhada (bhabhi), nora (nu), esposa do primo (maami) e assim por diante, dependendo da relação de parentesco do meu marido com os demais membros da sua numerosa família.
Para eles, fui apenas a cavidade abdominal que carregou o bebê por 9 meses, não o ventre que gerou e nutriu um ser vivo por 39 semanas de privações e sacrifícios. Em Déli, eu era unicamente responsável pelo banho e pela troca das fraldas, enquanto eles desfrutavam de uma menininha linda, limpa e feliz. E só não perdi meu direito materno de alimentá-la (já que não estava amamentando-a no peito), porque meu instinto foi mais forte que as convenções indianas e mostrei enfaticamente ao meu sogro quem era a mãe da Pequena.
Mas fui aceitando e me acostumando com meu papel secundário neste enredo, ao perceber as genuínas necessidades de atenção de um recém-nascido para sobreviver. O difícil é entender como, aos poucos, fui me tornando parte da mobília da casa alugada onde moramos há dois meses; como permiti que o meu corpo cronicamente cansado e descuidado fosse acumulando pó, criando teias de aranha, perdendo o verniz, enferrujando até ficar encostado num canto, esquecido e ignorado pelo próprio marido; como me transformei na Mulher Invisível de Kidlington, sem os super-poderes de Susan Storm nem as formas fantásticas de Jessica Alba.
Para saber mais sobre a personagem, visite o site: http://marvel.com/universe/Invisible_Woman
Com o passar do tempo e a mudança no contexto social e econômico dos leitores da Marvel Comics, a Mulher Invisível também se tornou a mulher do brilhante cientista Reed Richards e a mãe de Franklin e Val, começando a ter destaque no grupo e influência nas vidas do irmão, Johnny Storm, e do amigo de aventuras contra o Mal, Ben Grimm.
Uma carreira extraordinária e em ascendência que atingiu seu ápice em 2005, com o lançamento da versão cinematográfica dos quadrinhos e a personificação da heroína no fantástico corpo de Jessica Alba.
Da ficção para a realidade, no entanto, o script é bem diferente.
Se durante a gravidez eu já me sentia como uma “barriga ambulante”, depois do nascimento da minha filha eu não sou mais que uma coadjuvante na minha própria vida; uma figurante, simplesmente posicionada para preencher o pano de fundo, enquanto a trama principal acontece no primeiro plano.
Na Índia, não tenho mais um nome, mas um adjetivo. Na verdade, vários. Sou chamada de cunhada (bhabhi), nora (nu), esposa do primo (maami) e assim por diante, dependendo da relação de parentesco do meu marido com os demais membros da sua numerosa família.
Para eles, fui apenas a cavidade abdominal que carregou o bebê por 9 meses, não o ventre que gerou e nutriu um ser vivo por 39 semanas de privações e sacrifícios. Em Déli, eu era unicamente responsável pelo banho e pela troca das fraldas, enquanto eles desfrutavam de uma menininha linda, limpa e feliz. E só não perdi meu direito materno de alimentá-la (já que não estava amamentando-a no peito), porque meu instinto foi mais forte que as convenções indianas e mostrei enfaticamente ao meu sogro quem era a mãe da Pequena.
Mas fui aceitando e me acostumando com meu papel secundário neste enredo, ao perceber as genuínas necessidades de atenção de um recém-nascido para sobreviver. O difícil é entender como, aos poucos, fui me tornando parte da mobília da casa alugada onde moramos há dois meses; como permiti que o meu corpo cronicamente cansado e descuidado fosse acumulando pó, criando teias de aranha, perdendo o verniz, enferrujando até ficar encostado num canto, esquecido e ignorado pelo próprio marido; como me transformei na Mulher Invisível de Kidlington, sem os super-poderes de Susan Storm nem as formas fantásticas de Jessica Alba.
Para saber mais sobre a personagem, visite o site: http://marvel.com/universe/Invisible_Woman
segunda-feira, 26 de abril de 2010
Na medida certa
Adoro comer. E adoro boa comida. Mas sou um desastre na cozinha e minha reputação de cozinheira inapta já atravessou continentes e se espalhou pela capital indiana, quando tive a infeliz ideia de surpreender meus sogros e fazer pasta al dente “duro”. Eles podem não ser italianos, mas também não são burros!
E minha inabilidade culinária não termina (ou começa) aí. Sou incapaz de fazer um ovo mexido decente ou um arroz que não fique empapado. Meus pães e bolos saem do forno, inevitavelmente, queimados por fora e ainda crus por dentro, e já errei, algumas vezes, na medida de leite em pó com H2O para a mamada da minha filha, que acaba por ter dolorosos dias de constipação.
Sou um Jamie Oliver sem talento. E sempre que minha criatividade é mais forte que minha razão, o resultado de horas amassando, sovando, picando ou misturando vai parar na lata de lixo, sem escalas.
Infelizmente, os problemas parecem reincidir na completa falta de conhecimentos básicos nesta arte, como o uso adequado de especiarias, principalmente o sal. Minha comida ou termina ficando mais salgada que água do mar ou mais insossa que papinha de bebê.
Isso deve ser um traço de família, um cromossoma ligado ao X materno, porque os dons culinários da minha mãe levam a crer que ela iniciou a recente linhagem de ineptas na cozinha. Este é, provavelmente, o real motivo (ou motivação!) pelo qual me tornei vegetariana aos 16. Não aguentava mais o gosto emborrachado dos bifes que ela fazia e congelava para toda a semana...
Ou isso ou algum tipo de ritual inconsciente de passagem para meu reencontro cármico com a Índia, anos mais tarde. Foi naquele país, aliás, que achei a principal vítima para meus desastres gastro-vômicos: o homem que viria a ser meu marido e pai da minha filha.
Mas começamos nosso relacionamento lado a lado, na apertada cozinha do nosso pequeníssimo apartamento em Bangalore; tentando fazer juntos as mais simples receitas da sua terra natal. Na época, acreditei que bastariam algumas tentativas para aprender, com ele, a usar as masalas indianas e melhorar minha aptidão culinária. Nunca deu muito certo, mas ele sempre comeu o que eu colocava no prato.
O que deu certo, no entanto, foi outra mistura: a dos nossos genes, resultando numa linda e singular sikh-brasileira. Foi ela quem passou a ser minha motivação para não desistir do avental e das panelas, enquanto ele continua fazendo o sacrifício diário de aplacar sua fome com a minha comida.
Tudo por um bem maior. Talvez quando nossa filha chegar à idade de desenvolver seu paladar, meus desastres estejam mais comestíveis; e o sal, na medida certa.
E minha inabilidade culinária não termina (ou começa) aí. Sou incapaz de fazer um ovo mexido decente ou um arroz que não fique empapado. Meus pães e bolos saem do forno, inevitavelmente, queimados por fora e ainda crus por dentro, e já errei, algumas vezes, na medida de leite em pó com H2O para a mamada da minha filha, que acaba por ter dolorosos dias de constipação.
Sou um Jamie Oliver sem talento. E sempre que minha criatividade é mais forte que minha razão, o resultado de horas amassando, sovando, picando ou misturando vai parar na lata de lixo, sem escalas.
Infelizmente, os problemas parecem reincidir na completa falta de conhecimentos básicos nesta arte, como o uso adequado de especiarias, principalmente o sal. Minha comida ou termina ficando mais salgada que água do mar ou mais insossa que papinha de bebê.
Isso deve ser um traço de família, um cromossoma ligado ao X materno, porque os dons culinários da minha mãe levam a crer que ela iniciou a recente linhagem de ineptas na cozinha. Este é, provavelmente, o real motivo (ou motivação!) pelo qual me tornei vegetariana aos 16. Não aguentava mais o gosto emborrachado dos bifes que ela fazia e congelava para toda a semana...
Ou isso ou algum tipo de ritual inconsciente de passagem para meu reencontro cármico com a Índia, anos mais tarde. Foi naquele país, aliás, que achei a principal vítima para meus desastres gastro-vômicos: o homem que viria a ser meu marido e pai da minha filha.
Mas começamos nosso relacionamento lado a lado, na apertada cozinha do nosso pequeníssimo apartamento em Bangalore; tentando fazer juntos as mais simples receitas da sua terra natal. Na época, acreditei que bastariam algumas tentativas para aprender, com ele, a usar as masalas indianas e melhorar minha aptidão culinária. Nunca deu muito certo, mas ele sempre comeu o que eu colocava no prato.
O que deu certo, no entanto, foi outra mistura: a dos nossos genes, resultando numa linda e singular sikh-brasileira. Foi ela quem passou a ser minha motivação para não desistir do avental e das panelas, enquanto ele continua fazendo o sacrifício diário de aplacar sua fome com a minha comida.
Tudo por um bem maior. Talvez quando nossa filha chegar à idade de desenvolver seu paladar, meus desastres estejam mais comestíveis; e o sal, na medida certa.
quarta-feira, 21 de abril de 2010
Little but Loud
Sim, com apenas 5 meses, minha filha já aprendeu essa lição e sabe ser muito barulhenta. Na verdade, ela parece ter vindo da “fábrica” com esses conhecimentos. Desde que tinha uns poucos dias de vida, impressionava e encantava a todos com seu beicinho e sua testa franzida e já ficava quieta na sagrada hora do esforço concentrado: um silencioso aviso de que algo estava a caminho.
Graças às brincadeiras pouco convencionais da minha sogra, ela rapidamente aprendeu a gritar e, hoje, anda ensaiando suas primeiras palavras. Aliás, tive a impressão, dia desses, de ter distinguido um “oh, my God” dos seus balbucios, uma vez que o inglês é a língua comum dos seus pais. E, por falar nela, a minha pequena mas barulhenta filha nasceu com uma bem grande... Provavelmente, porque vai ter que se virar em outros três idiomas, além do já mencionado.
Talvez por essa razão, faça tanto barulho na hora de dormir. Há tantas coisas a serem provadas, cheiradas, sentidas que ela parece estar protestando, não contra mim, mas contra os próprios olhos já cansados de um dia inteiro de descobertas.
terça-feira, 20 de abril de 2010
Never trust a fart
Pode ser encontrada no Youtube (http://www.youtube.com/watch?v=91MfdqM3gaQ) a hilária cena do filme The Bucket List (traduzido no Brasil como “Antes de partir”), em que Jack Nicholson, como o cínico bilionário Edward Cole, oferece uma lição de sabedoria a seu assistente; três coisas a serem lembradas quando o homem envelhece: never pass up a bathroom (nunca perca a oportunidade de usar o banheiro), never waste a hard-on (não desperdice um momento de tesão) e never trust a fart (nunca confie num peido).
Esta última também sendo verdadeira e aplicável aos bebês, que ainda não aprenderam a controlar os esfíncteres. Um conselho inestimável para mães de primeira viagem, pois um peido raramente vem desacompanhado. Ele é, sim, um sinal de alerta.
Infelizmente, aprendi essa lição antes de assistir ao filme. E muitas outras...
Se não for para dar banho, absolutamente nunca deixe uma criança com menos de um ano sem fraldas e sozinha, pensando erroneamente que ela já fez todo o cocô possível. Bastam apenas alguns segundo de distração e BUM... a merda está feita. E se você estava com preguiça de levá-la até o trocador e simplesmente a colocou em cima da sua cama, o estrago pode ser surpreendentemente maior que o tamanho dos intestinos da sua filha.
Ainda que possa soar óbvio, cuidado com os arrotos, principalmente depois das mamadas. Alguns bebês apresentam refluxo gastro-esofágico por meses a fio, ficando difícil de precisar quanto leite eles realmente ingeriram e quando voltar a alimentá-los. Este detalhe, a longo prazo, pode atrapalhar seu ganho de peso.
Por último, mas não menos importante, não ignore o chorinho da sua criança. Ele, de fato, transmite uma mensagem e é muito fácil confundir manha com descoforto. Se você lhe der a atenção devida, pode evitar indesejáveis consequências.
Esta última também sendo verdadeira e aplicável aos bebês, que ainda não aprenderam a controlar os esfíncteres. Um conselho inestimável para mães de primeira viagem, pois um peido raramente vem desacompanhado. Ele é, sim, um sinal de alerta.
Infelizmente, aprendi essa lição antes de assistir ao filme. E muitas outras...
Se não for para dar banho, absolutamente nunca deixe uma criança com menos de um ano sem fraldas e sozinha, pensando erroneamente que ela já fez todo o cocô possível. Bastam apenas alguns segundo de distração e BUM... a merda está feita. E se você estava com preguiça de levá-la até o trocador e simplesmente a colocou em cima da sua cama, o estrago pode ser surpreendentemente maior que o tamanho dos intestinos da sua filha.
Ainda que possa soar óbvio, cuidado com os arrotos, principalmente depois das mamadas. Alguns bebês apresentam refluxo gastro-esofágico por meses a fio, ficando difícil de precisar quanto leite eles realmente ingeriram e quando voltar a alimentá-los. Este detalhe, a longo prazo, pode atrapalhar seu ganho de peso.
Por último, mas não menos importante, não ignore o chorinho da sua criança. Ele, de fato, transmite uma mensagem e é muito fácil confundir manha com descoforto. Se você lhe der a atenção devida, pode evitar indesejáveis consequências.
Fazendo as contas
Sei que a felicidade depende exclusivamente de nós mesmos, de nossa individual capacidade de encarar as adversidades da vida como obstáculos que atrasam nossa caminhada ou como oportunidades de aprendizagem e de seguir adiante mais fortes e confiantes.
Mas, ao se trocar alianças ou guirlandas de flores, há um comprometimento público, um contrato assinado diante de uma autoridade civil ou religiosa e na frente de testemunhas, uma expectativa mútua de amar e ser amado pelo outro. E ainda que um relacionamento não seja oficializado ou reconhecido legalmente, existe, pelo menos, o desejo íntimo, pessoal e intransferível de compartilhar juntos um determinado momento no tempo e no espaço.
Nunca fui brilhante nas ciências exatas, mas cheguei à conclusão de que essa lógica simplesmente não se aplica às equações indianas. Por mais que faça e refaça a matemática do meu casamento, 2+2 não dá 4, apenas o número 22; apenas dois algarismos numa trajetória paralela e retilínea, com um único ponto em comum e a remotíssima possibilidade de convergirem no infinito.
Talvez fosse mais inteligente esquecer a calculadora quando a questão é menos racional, ainda mais depois que uma recente variável foi adicionada à antiga fórmula, mas não consigo chegar a resultados positivos na nossa nova divisão de responsabilidades.
Sou eu a primeira a acordar e a última a dormir para alimentar nossa filha; a única a se levantar nas madrugadas geladas para checar a temperatura e dar as gotas de remédio, a trocar as fraldas sujas e ouvir seu chorinho de fome e cansaço de manhã, de tarde e à noite; aquela que faz as compras, lava as roupas, limpa a casa e cozinha diariamente, três vezes por dia, sete dias por semana; a que ainda arranja algumas horas remuneradas por mês, para contribuir com um dinheiro extra e não abandonar, completamente, o mercado de trabalho.
E, ao final desta exaustiva e tediosa rotina, ser acusada de egoista por pedir um tempo pra mim mesma diariamente. Afinal das contas, foi ele que trabalhou 10-12 horas pelo sustento da família!
Não é preciso ser um gênio para perceber que há algo de muito errado com a nossa matemática.
Mas, ao se trocar alianças ou guirlandas de flores, há um comprometimento público, um contrato assinado diante de uma autoridade civil ou religiosa e na frente de testemunhas, uma expectativa mútua de amar e ser amado pelo outro. E ainda que um relacionamento não seja oficializado ou reconhecido legalmente, existe, pelo menos, o desejo íntimo, pessoal e intransferível de compartilhar juntos um determinado momento no tempo e no espaço.
Nunca fui brilhante nas ciências exatas, mas cheguei à conclusão de que essa lógica simplesmente não se aplica às equações indianas. Por mais que faça e refaça a matemática do meu casamento, 2+2 não dá 4, apenas o número 22; apenas dois algarismos numa trajetória paralela e retilínea, com um único ponto em comum e a remotíssima possibilidade de convergirem no infinito.
Talvez fosse mais inteligente esquecer a calculadora quando a questão é menos racional, ainda mais depois que uma recente variável foi adicionada à antiga fórmula, mas não consigo chegar a resultados positivos na nossa nova divisão de responsabilidades.
Sou eu a primeira a acordar e a última a dormir para alimentar nossa filha; a única a se levantar nas madrugadas geladas para checar a temperatura e dar as gotas de remédio, a trocar as fraldas sujas e ouvir seu chorinho de fome e cansaço de manhã, de tarde e à noite; aquela que faz as compras, lava as roupas, limpa a casa e cozinha diariamente, três vezes por dia, sete dias por semana; a que ainda arranja algumas horas remuneradas por mês, para contribuir com um dinheiro extra e não abandonar, completamente, o mercado de trabalho.
E, ao final desta exaustiva e tediosa rotina, ser acusada de egoista por pedir um tempo pra mim mesma diariamente. Afinal das contas, foi ele que trabalhou 10-12 horas pelo sustento da família!
Não é preciso ser um gênio para perceber que há algo de muito errado com a nossa matemática.
segunda-feira, 19 de abril de 2010
A Bela e as duas Feras
Era uma vez, na pacata Edinburgh Drive, uma família incomum.
Era um casal (sem mais amor, respeito ou paciência pelo outro) se agredindo, verbal e fisicamente, na frente da filha assustada e em prantos; procurando o bandido desta estória que não é da carochinha nem de faz-de-conta, mas de horror. E cujo final ainda está por ser escrito, pois não se sabe se a Bela Acordada vai ser outra Fera ou se vai virar um adorável Cisne e fugir com a Pequena Sereia da ilha de Shakespeare para a de HC Andersen.
É um conto gótico que nem Poe ousou colocar em papel, pois não se sabe quantas vezes o Lobo e a Loba Maus vão ter que assoprar e assoprar e assoprar de raiva para colocar a casa e a família abaixo.
Mas talvez ainda seja possível um final feliz.
Pode ser que uma Fada Madrinha tenha piedade do casal Adams e lhes ofereça uma poção mágica, capaz de fazê-los pôr o orgulho e as palavras ferinas de lado e reencontrar o amor nos seus corações sombrios, para que todos sejam felizes até o próximo capítulo.
Para saber mais sobre Contos de Fadas, visite o site:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Contos_de_fadas#Os_Irm.C3.A3os_Grimm_e_o_Esp.C3.ADrito_Teut.C3.B4nico
Os três não viviam felizes já há algum tempo, mas num lindo domingo ensolarado de abril, algo deu extremamente errado.
Não foi a maldição de nenhuma feiticeira disfarçada de mendiga que passava à procura de abrigo do frio, nem a vingança de uma bruxa furiosa por não ter sido convidada para o nascimento da princesa da casa.
Eram apenas dois pais transformados em Fera por míseras duas libras. Era um casal (sem mais amor, respeito ou paciência pelo outro) se agredindo, verbal e fisicamente, na frente da filha assustada e em prantos; procurando o bandido desta estória que não é da carochinha nem de faz-de-conta, mas de horror. E cujo final ainda está por ser escrito, pois não se sabe se a Bela Acordada vai ser outra Fera ou se vai virar um adorável Cisne e fugir com a Pequena Sereia da ilha de Shakespeare para a de HC Andersen.
É um conto gótico que nem Poe ousou colocar em papel, pois não se sabe quantas vezes o Lobo e a Loba Maus vão ter que assoprar e assoprar e assoprar de raiva para colocar a casa e a família abaixo.
Mas talvez ainda seja possível um final feliz.
Pode ser que uma Fada Madrinha tenha piedade do casal Adams e lhes ofereça uma poção mágica, capaz de fazê-los pôr o orgulho e as palavras ferinas de lado e reencontrar o amor nos seus corações sombrios, para que todos sejam felizes até o próximo capítulo.
Para saber mais sobre Contos de Fadas, visite o site:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Contos_de_fadas#Os_Irm.C3.A3os_Grimm_e_o_Esp.C3.ADrito_Teut.C3.B4nico
quinta-feira, 15 de abril de 2010
Incentivo de 2 metros
Ainda na adolescência, tive uma colega no cursinho de inglês que uma vez me disse que não saía de casa com lingerie amassada, porque queria estar “apresentável” na eventualidade de um acidente e na possibilidade de ir parar na emergência de um hospital. Não que eu acredite que algum plantonista vá prestar atenção nos vincos do sutiã de uma paciente ensangüentada ou com fratura exposta, mas tenho reconsiderado o conselho por causa de um incentivo de dois metros que encontrei no vilarejo onde moramos.
Foi por acaso, numa visita com hora marcada à clínica médica local, para vacinar minha filha.
Já tínhamos estado ali duas outras vezes, quando uma doença infantil (praticamente erradicada no resto do mundo) nos foi transmitida ainda na Índia pelo meu sogro, que apresentou uma tosse persistente e cheia de catarro por várias semanas até contagiar todos os membros da família. Deixamos o ambiente infectado tarde demais e desembarcamos em Londres já carregando a bactéria pertussis.
E, apesar da doença ter mudado a cor do cocô da minha filha (um sinal de infecção) e afetado a sua ingestão de leite (pois a tosse em excesso acabou machucando sua garganta, fazendo-a perder peso), o clínico geral que a examinou permaneceu incrédulo diante da nossa suspeita de coqueluche e apenas nos receitou paracetamol para aliviar os sintomas.
Difícil esperar outra coisa de um médico tão frio quanto as duas manhãs de março, nas quais conseguimos agendar as consultas. Dr. Stubbings parecia o Inverno em pessoa, ao responder as aflitivas dúvidas de pais de primeira viagem com monossílabos. Ele sequer se levantou para nos cumprimentar e se referia à minha filha como “the little one”.
Contrário aos costumes ingleses, a voluntária de plantão me recebeu com um caloroso sorriso e me deu boas-vindas quando me apresentei e disse que recém tínhamos chegado ao país e precisávamos colocar em dia as vacinas da nossa menina. Lucy me perguntou se faríamos isso com o médico ou a enfermeira e manifestei minha completa indiferença. Tudo o que queríamos era imunizá-la contra outras doenças infantis. A voluntária, então, disse que iria se informar sobre o meu agendamento e desapareceu na ala restrita aos funcionários.
Quando retornou, estava acompanhada por ele... Dois metros da mais pura beleza caucasiana, adicionada àquela inflexão tão particular e charmosa dos ingleses. E como se os atributos físicos e linguísticos já não fossem suficientes, o jovem médico ainda era simpático e do tipo tátil. Não estou bem certa da minha linguagem corporal durante a conversa, mas acredito que sorri involuntariamente cada vez que ele tocava de leve na minha mão ou joelho direito. O que tenho certeza é do ciúmes que a situação causou no meu marido, que estava o tempo todo “presente” na sala e não escondeu o quão aborrecido ele ficou com o flerte da esposa. Na verdade, ter sido o centro das atenções de um completo estranho, por brevíssimos minutos, fez com que eu me interessasse por mim mesma novamente; que eu me sentisse merecedora de cuidados tanto quanto minha filha. E, de agora em diante, toda vez que tiver que levá-la ao Centro Médico de Gosford Hill, não saio de casa com lingerie amassada e sem um pouco de maquiagem.
Se a mãe está feliz...
Na antiguidade, era apenas um vício, uma transgressão na conduta humana. Durante os séculos IV e V, entrou para a lista dos sete pecados capitais do cristianismo, vindo logo após a luxúria na ordem crescente de gravidade.
Para mim, a gula é um insaciável desejo pela (boa) comida e bebida.
Uma recompensa para a intercambista brasileira (moradora de uma fazenda alemã afastada de tudo), depois de pedalar quase 12 quilômetros em busca do chocolate mais barato do vilarejo mais próximo. Um prazer saboreado em segredo e solitude na última e erma parada de ônibus antes de chegar à sede de Prinzhöfte e ter que socializá-lo com os demais moradores da propriedade rural.
Assim tem sido minha patológica e pecaminosa relação com a comida: uma espécie de cobiça, um objeto de disputa capaz de me incitar outros dos sete vícios da Igreja Católica como a ira e a inveja. Também sou extremamente mesquinha e prefiro a subtração furtiva à soma generosa. Dividir apenas com a certeza de poder ficar com o maior e melhor bocado.
A temperança parece muito difícil de alcançar e a redenção, impossível. E só não garanti minha passagem definitiva para o Inferno, graças à incompetência dos fabricantes de leite em pó para crianças. Ainda não acabei com o alimento da minha filha (que não está sendo amamentada por causa do pecado da vaidade, cometido 10 anos atrás), porque os substitutos do leite materno não apeteceram meu paladar.
Mas tenho fé que ela seja a resposta às minhas preces de pôr um fim a essa vida de glutonia e me ensine o prazer de dar e nutrir os outros e não apenas a mim mesma. Por sinal, foi ela que, ainda no meu ventre e miraculosamente, diminuiu meu desejo por doces.
No entanto, até que a próxima lição seja dada, vou vivendo (e comendo) em pecado, pois uma coisa o pai da minha filha já aprendeu, para amenizar as crises do nosso casamento: se a mãe está feliz (e satisfeita), toda a família fica feliz!
Atualmente, deixou de ser apenas uma questão religiosa para se tornar uma preocupação mundial quando o assunto é saúde (ou pelo menos a sua consequência mais visível, a obesidade).
Uma recompensa para a intercambista brasileira (moradora de uma fazenda alemã afastada de tudo), depois de pedalar quase 12 quilômetros em busca do chocolate mais barato do vilarejo mais próximo. Um prazer saboreado em segredo e solitude na última e erma parada de ônibus antes de chegar à sede de Prinzhöfte e ter que socializá-lo com os demais moradores da propriedade rural.
Assim tem sido minha patológica e pecaminosa relação com a comida: uma espécie de cobiça, um objeto de disputa capaz de me incitar outros dos sete vícios da Igreja Católica como a ira e a inveja. Também sou extremamente mesquinha e prefiro a subtração furtiva à soma generosa. Dividir apenas com a certeza de poder ficar com o maior e melhor bocado.
A temperança parece muito difícil de alcançar e a redenção, impossível. E só não garanti minha passagem definitiva para o Inferno, graças à incompetência dos fabricantes de leite em pó para crianças. Ainda não acabei com o alimento da minha filha (que não está sendo amamentada por causa do pecado da vaidade, cometido 10 anos atrás), porque os substitutos do leite materno não apeteceram meu paladar.
Mas tenho fé que ela seja a resposta às minhas preces de pôr um fim a essa vida de glutonia e me ensine o prazer de dar e nutrir os outros e não apenas a mim mesma. Por sinal, foi ela que, ainda no meu ventre e miraculosamente, diminuiu meu desejo por doces.
No entanto, até que a próxima lição seja dada, vou vivendo (e comendo) em pecado, pois uma coisa o pai da minha filha já aprendeu, para amenizar as crises do nosso casamento: se a mãe está feliz (e satisfeita), toda a família fica feliz!
sábado, 10 de abril de 2010
(Sem os) conselhos de uma lagarta
Há uma guerra no Mundo Subterrâneo.
A típica batalha entre o Bem e o Mal, entre as Rainhas Branca e Vermelha do Maravilhoso mundo de Alice e Tim Burton, que condensou em um filme de pouco mais de 100 minutos os dois livros mais famosos de Lewis Carroll: Alice no País das Maravilhas e Alice no Outro Lado do Espelho. E ainda que tenha usado de muita liberdade artística e abusado dos efeitos especiais para sua adaptação cinematográfica, o diretor californiano manteve a crise de identidade pela qual passa a jovem protagonista como o fio condutor da trama.
Nada mais apropriado para Charles Lutwidge Dodgson (nome real do criador dessa clássica obra do gênero nonsense), que deve ter vivido dilemas existenciais semelhantes ao de sua personagem adolescente. Além de lecionar matemática, ele era escritor e se interessava por mágica, fotografia, jogos de lógica, teatro e ópera. Ou seja, Lewis Carroll parecia transitar pelos mundos racional e da fantasia com muita naturalidade e provavelmente resolveu suas questões pessoais e filosóficas com sua literatura surrealista. Ou com os conselhos da sua sábia lagarta azul, sentada num cogumelo gigante e fumando um cachimbo de narguilé.
Em menos de um ano, caí no buraco do inconsciente e mudei de formas tantas vezes (engordei, emagreci, engravidei, dei à luz) que mal reconheço meus próprios pensamentos. E, assim como a jovem Alice entrando na puberdade, não tenho mais certeza de quem sou, nem se me tornei quem eu não era.
São muitos papéis para interpretar em tão pouco tempo de ensaio e não conto com os conselhos de uma lagarta azul, nem com a ajuda de um cogumelo gigante ou de um cachimbo de narguilé.
Mas recebo, diariamente, a visita de um gato de Cheshire. Na verdade, da gata malhada do vizinho que, todas as manhãs ao atravessar o quintal da minha casa, pára diante da porta envidraçada dos fundos, senta nas patas traseiras e me observa por alguns segundos, enquanto esquento a água para o meu café. E antes de partir para seus afazeres felinos, me deixa com uma mensagem de Lewis Carroll, para eu começar meu dia: “We’re all mad here!”
Para ler o livro de Carroll na íntegra, visite o site:
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/alicep.html
Para ler o livro de Carroll na íntegra, visite o site:
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/alicep.html
sexta-feira, 9 de abril de 2010
Quando o verbo deixa de ser Amar
Faz mais de 9 semanas que não faço os pés.
Corto as unhas com regularidade, mas faz quase 70 dias que o esmalte vermelho com o qual tinha pintado-as no Brasil ainda está colorindo parte dos meus dedões.
Deve fazer o mesmo tempo que não me depilo, não me preocupo com o estado do meu cabelo (e só uso rabo-de-cavalo), nem com o constante cheiro de vômito de bebê nas minhas roupas que, por sinal, são sempre as mais largas do guarda-roupa e saem dele para o meu corpo (ainda parecido com o de grávida de 3 meses) inevitavelmente amassadas.
Eu bem que poderia alegar depressão pós-parto (não imediatamente após, pois já se passaram 5 meses) ou completa falta de tempo (absorta no meu novo emprego de turno integral como mãe-esposa-e-dona-de-casa), mas também não me importo em contar o motivo real do meu desleixo: desisti do meu casamento.
Desde a minha última e longa estada em Déli, na casa dos pais do meu marido, percebi o tamanho do erro que tinha cometido ao me casar com um indiano de uma obscura religião e com uma mentalidade tão diferente. Se não bastassem o alcoolismo do meu sogro e a depressão da minha sogra, a perspectiva de criar minha filha numa família que não aceita a mulher em jeans, saia ou manga cavada e que escuta o canal de TV religioso entoando o mesmo mantra (waheguru) o dia inteiro é mais do que assustadora, é de enlouquecer.
"Sim", os mais apressados vão perguntar, "mas se eu já sabia de tudo isso quando ainda estava grávida, por que casei com o rapaz? E por que voltei para a Índia?"
Só tenho a ignorância em minha defesa, por mais contraditório que possa soar. Não conhecia os avós paternos da minha filha até ela nascer, nem meu marido no seu território familiar. Não tinha ideia dos costumes que envolviam as crianças até ela abrir o berreiro sempre que era sacodida no ar por todos os parentes que visitávamos (e não foram poucos).
"Bem", os mais experientes vão dizer, "qualquer relação é difícil e requer paciência e tempo para ser ajustada. Quando estivermos os três sozinhos, as coisas vão melhorar."
Conto com a prática da inferência a meu favor. Trabalhando na indústria da legendagem há mais de 4 anos, assisti a tantos filmes que já sou capaz de deduzir o desfecho da trama logo nos primeiros 15 minutos. Por isso, passar o restante da minha vida adulta num casamento fadado ao fracasso é como ficar na sessão de cinema até aparecer os créditos finais: desperdiçar a oportunidade de fazer algo melhor, só porque se pagou pelo ingresso.
"Então", os mais jovens vão sugerir, "por que continuar? Por que não se separam?"
Esta é precisamente a finalidade do meu plano, já com a fase 2 em andamento, uma vez que esses quase 70 dias de incúria não foram suficientes para abalar a crença do meu marido sikh na máxima da igreja católica, quando o assunto é matrimônio: “...até que a morte os separe”. Fruto típico da árvore indiana, ele prefere acreditar nas razões cármicas que nos uniram e evitar a dissolução do casamento a qualquer custo, ainda que isso resulte em alcoolismo e depressão.
Um final bem previsível pra essa estória.
quinta-feira, 8 de abril de 2010
De quem é a culpa?
Já estou numa idade em que sou mais do que responsável pelas minhas escolhas. Mas certos acontecimentos na minha infância e, até recentemente, influenciaram definitivamente na formação da minha personalidade e quero dividir com algumas pessoas essa responsabilidade.
Uma delas é meu pai e suas viagens para o exterior. Lembro de pequena, em Recife, escutar histórias e ver fotos de lugares distantes que o meu velho visitava a trabalho. Foi aí que nasceu minha vontade de ver o que ele tinha visto e, no primeiro intercâmbio para a Alemanha, fazia questão de parar, ainda que brevemente nas estações de trem, pelas cidades onde ele tinha deixado pegadas.
Mas a culpa não foi só dele, por eu ter me viciado nisso.
Sinto a dor do poeta pelas ruas (não de Porto Alegre, mas do mundo) que não andei... Sempre acho que o que procuro está um pouco mais à frente, na próxima esquina, na cidade vizinha... E quando, finalmente, chego lá, não era bem o que tinha esperava ou imaginava. Então, acabo seguindo adiante.
Mas tenho absoluta consciência que as minhas escolhas de hoje vão me trazer consequências no novo rasgar do dia. Levar uma vida de cigana, abandonar carreira e família e não ter um plano privado de aposentadoria, certamente não são as decisões mais sábias do mundo capitalista. Tudo o que tenho consigo acumular são rugas, cabelos brancos (inclusive púbicos) e estórias.
Mas esse é o sentido da minha vida: colecionar estórias. E procurar dividi-las, como uma boa jornalista, prematuramente aposentada. E as culpadas pela escolha da profissão foram minha prima e tia. Como filha mais velha, meu modelo mais próximo para me espelhar foi a Cris, e eu adorava receber cada pequena ou banal notícia sobre ela. Assim, ainda na Alemanha, quando a tia Sônia me escreveu uma carta (ainda na era pré-internet), sugerindo que eu fizesse jornalismo, foi na Cris que eu me inspirei.
Infelizmente, a profissao não era a mais acertada pra mim e descobri isso bem cedo, ainda na faculdade... O que fazer? O que sempre me deu prazer: mudar de país, me chocar com outras culturas, aprender outros idiomas e me encontrar com mães temporárias e hospedeiras.
A minha biológica, por sinal, também tem muita culpa no cartório. Ao sair de um estado de cancer mental (morrendo aos poucos numa profissão que detestava), para começar a fazer o que sempre quis aos 50 anos, ela se tornou meu exemplo vivo de que nunca é tarde pra nada! Assim, mesmo que fique errando (nos dois sentidos) por caminhos distantes, tenho a certeza de que sempre é possivel recomeçar (mais ainda quando se muda de cidade!).
Mas ainda vivo sob a impressão de ser a ovelha negra da família, a diferente, a do contra. Só não vou contra meu sonho: o de conhecer, ao máximo, o mundo. Não tenho respostas para os meus porquês. Só sei que a rotina me mata e que nenhum dos meus planos, a longo-prazo, dá certo. Tudo acontece inesperadamente e na última hora.
Por isso, assim como diz o poeta do samba, “deixo a vida me levar”. Prendo a respiração e mergulho nessa correnteza, com fé em algo superior e na esperança de continuar no caminho.
As mudanças de cidade, de emprego, de amigos e até namorados acontecem no momento certo e duram o tempo necessário. Doeu muito aprender isso. E dói ter que soltar as amarras afetivas, quando alguém especial sai da minha vida, desaparece do meu mapa geográfico (mas nunca emocional). E o culpado disso foi o brasileiro que me ensinou que, segurar demais uma pessoa ao seu lado, pode comprometer o crescimento de ambas. Vão-se os anéis, mas ficam as pegadas de um pedaço do caminho caminhado juntos.
Aonde meus pés e pernas estão me levando, não sei. Eles têm vida própria. eu só sei que, apesar de muitas vezes exausta da caminhada, das cãimbras, das bolhas e calos, gosto de olhar o horizonte limpo adiante e ver que ainda não cheguei ao final da estrada, que ainda há muitas trilhas para deixar minhas marcas.
Uma delas é meu pai e suas viagens para o exterior. Lembro de pequena, em Recife, escutar histórias e ver fotos de lugares distantes que o meu velho visitava a trabalho. Foi aí que nasceu minha vontade de ver o que ele tinha visto e, no primeiro intercâmbio para a Alemanha, fazia questão de parar, ainda que brevemente nas estações de trem, pelas cidades onde ele tinha deixado pegadas.
Mas a culpa não foi só dele, por eu ter me viciado nisso.
Sinto a dor do poeta pelas ruas (não de Porto Alegre, mas do mundo) que não andei... Sempre acho que o que procuro está um pouco mais à frente, na próxima esquina, na cidade vizinha... E quando, finalmente, chego lá, não era bem o que tinha esperava ou imaginava. Então, acabo seguindo adiante.
Mas tenho absoluta consciência que as minhas escolhas de hoje vão me trazer consequências no novo rasgar do dia. Levar uma vida de cigana, abandonar carreira e família e não ter um plano privado de aposentadoria, certamente não são as decisões mais sábias do mundo capitalista. Tudo o que tenho consigo acumular são rugas, cabelos brancos (inclusive púbicos) e estórias.
Mas esse é o sentido da minha vida: colecionar estórias. E procurar dividi-las, como uma boa jornalista, prematuramente aposentada. E as culpadas pela escolha da profissão foram minha prima e tia. Como filha mais velha, meu modelo mais próximo para me espelhar foi a Cris, e eu adorava receber cada pequena ou banal notícia sobre ela. Assim, ainda na Alemanha, quando a tia Sônia me escreveu uma carta (ainda na era pré-internet), sugerindo que eu fizesse jornalismo, foi na Cris que eu me inspirei.
Infelizmente, a profissao não era a mais acertada pra mim e descobri isso bem cedo, ainda na faculdade... O que fazer? O que sempre me deu prazer: mudar de país, me chocar com outras culturas, aprender outros idiomas e me encontrar com mães temporárias e hospedeiras.
A minha biológica, por sinal, também tem muita culpa no cartório. Ao sair de um estado de cancer mental (morrendo aos poucos numa profissão que detestava), para começar a fazer o que sempre quis aos 50 anos, ela se tornou meu exemplo vivo de que nunca é tarde pra nada! Assim, mesmo que fique errando (nos dois sentidos) por caminhos distantes, tenho a certeza de que sempre é possivel recomeçar (mais ainda quando se muda de cidade!).
Mas ainda vivo sob a impressão de ser a ovelha negra da família, a diferente, a do contra. Só não vou contra meu sonho: o de conhecer, ao máximo, o mundo. Não tenho respostas para os meus porquês. Só sei que a rotina me mata e que nenhum dos meus planos, a longo-prazo, dá certo. Tudo acontece inesperadamente e na última hora.
Por isso, assim como diz o poeta do samba, “deixo a vida me levar”. Prendo a respiração e mergulho nessa correnteza, com fé em algo superior e na esperança de continuar no caminho.
As mudanças de cidade, de emprego, de amigos e até namorados acontecem no momento certo e duram o tempo necessário. Doeu muito aprender isso. E dói ter que soltar as amarras afetivas, quando alguém especial sai da minha vida, desaparece do meu mapa geográfico (mas nunca emocional). E o culpado disso foi o brasileiro que me ensinou que, segurar demais uma pessoa ao seu lado, pode comprometer o crescimento de ambas. Vão-se os anéis, mas ficam as pegadas de um pedaço do caminho caminhado juntos.
Aonde meus pés e pernas estão me levando, não sei. Eles têm vida própria. eu só sei que, apesar de muitas vezes exausta da caminhada, das cãimbras, das bolhas e calos, gosto de olhar o horizonte limpo adiante e ver que ainda não cheguei ao final da estrada, que ainda há muitas trilhas para deixar minhas marcas.
quarta-feira, 7 de abril de 2010
Besta à solta
Não é o vil metal que move o mundo, que cria e destrói civilizações ou que impulsiona e transforma os simples mortais, mas suas paixões sublimadas e seus desejos fora de controle. Ou seja, o excesso (ou a extrema falta) de amor.
Pelo menos, era desse modo que pensava o poeta latino Ovídio, ao escrever, por volta do ano 8 dC, a obra-prima sobre mitologia clássica, Metamorfoses.
Nela, a ficção e a realidade do mundo greco-romano da época são costuradas em 15 livros e 12 mil versos que narram as consequências trágicas e sublimes do amor: o incesto, o crime, a loucura, a mudança de forma... É nela que, originalmente, se encontra o termo licantropia, associado ao Rei Licaão ou Licaonte. Segundo Ovídio, o primeiro soberano mítico da Arcádia ousou oferecer carne humana a Zeus e foi severamente punido, tendo sido transformado em lobo.
Nascia, assim, o primeiro lobisomem da literatura.
O raro, passados dois mil anos, é ler algo sobre uma "lobi-mulher".
Até agora...
A minha metamorfose aconteceu ainda durante a gravidez.
Mesmo estando fisicamente bem e não apresentando sinais de hipertensão ou diabete gestacional, o caldo de hormônios na minha corrente sanguínea, fervido por quase 6 meses sobre o calor nada brando do sub-continente asiático, foi o que bastou para desequilibrar meu organismo, abrir a jaula do meu inconsciente e soltar a besta de dentro de mim.
Não sei se foi o amor extremo por outro ser que saiu do meu ventre ou o ciúmes (quase) doentio por ele provocado, mas, desde que minha filha veio ao mundo, tenho encarnado o personagem mitológico de Ovídio; tenho tido rompantes de cólera e ataques brutais de insanidade contra o mesmo homem que me ajudou a concebê-la; tenho enlouquecido um pouco a cada noite e tentado esquecer meus atos e palavras de crueldade durante o dia; tenho procurado domar a fera com medicação, para evitar a estaca de madeira ou a bala de prata enfiadas no peito; tenho desejado um amor mais sublime.
Talvez a omissão, na obra do poeta romano, sobre uma mulher-lobo tenha sido proposital.
Já é suficientemente assustador passar por uma transformação hormonal e psicológica a cada 28 dias; sentir tristeza e raiva durante a TPM e sangrar as entranhas até, literalmente, secá-las no final da idade fértil. Com tal “maldição” já pairando nas vidas reais das mulheres, Ovídio foi misericordioso ao escolher outras vítimas para sua poesia.
Para ler o texto de Ovídio traduzido em inglês, visite o site:
http://etext.virginia.edu/latin/ovid/trans/Metamorph.htm#488381098
Pelo menos, era desse modo que pensava o poeta latino Ovídio, ao escrever, por volta do ano 8 dC, a obra-prima sobre mitologia clássica, Metamorfoses.
Nela, a ficção e a realidade do mundo greco-romano da época são costuradas em 15 livros e 12 mil versos que narram as consequências trágicas e sublimes do amor: o incesto, o crime, a loucura, a mudança de forma... É nela que, originalmente, se encontra o termo licantropia, associado ao Rei Licaão ou Licaonte. Segundo Ovídio, o primeiro soberano mítico da Arcádia ousou oferecer carne humana a Zeus e foi severamente punido, tendo sido transformado em lobo.
Nascia, assim, o primeiro lobisomem da literatura.
Mais de 2000 anos depois, essa lenda se espalhou muito além dos limites do antigo Império Romano e foi adquirindo as cores e detalhes locais (dependendo de onde ela era contada), até virar película, em 1943, e perder sua pluralidade na “pele” e atuação de Lon Chaney Jr como Lawrence Talbot. Hoje, qualquer homem que for amaldiçoado e mordido por um membro da espécie Canis lupus em noite de lua cheia (versão europeia) ou que for o sétimo filho de uma família com outras seis irmãs anteriores (versão brasileira) pode ser transformado nessa criatura antropomórfica.
O raro, passados dois mil anos, é ler algo sobre uma "lobi-mulher".
Até agora...
A minha metamorfose aconteceu ainda durante a gravidez.
Mesmo estando fisicamente bem e não apresentando sinais de hipertensão ou diabete gestacional, o caldo de hormônios na minha corrente sanguínea, fervido por quase 6 meses sobre o calor nada brando do sub-continente asiático, foi o que bastou para desequilibrar meu organismo, abrir a jaula do meu inconsciente e soltar a besta de dentro de mim.
Não sei se foi o amor extremo por outro ser que saiu do meu ventre ou o ciúmes (quase) doentio por ele provocado, mas, desde que minha filha veio ao mundo, tenho encarnado o personagem mitológico de Ovídio; tenho tido rompantes de cólera e ataques brutais de insanidade contra o mesmo homem que me ajudou a concebê-la; tenho enlouquecido um pouco a cada noite e tentado esquecer meus atos e palavras de crueldade durante o dia; tenho procurado domar a fera com medicação, para evitar a estaca de madeira ou a bala de prata enfiadas no peito; tenho desejado um amor mais sublime.
Talvez a omissão, na obra do poeta romano, sobre uma mulher-lobo tenha sido proposital.
Já é suficientemente assustador passar por uma transformação hormonal e psicológica a cada 28 dias; sentir tristeza e raiva durante a TPM e sangrar as entranhas até, literalmente, secá-las no final da idade fértil. Com tal “maldição” já pairando nas vidas reais das mulheres, Ovídio foi misericordioso ao escolher outras vítimas para sua poesia.
Para ler o texto de Ovídio traduzido em inglês, visite o site:
http://etext.virginia.edu/latin/ovid/trans/Metamorph.htm#488381098
domingo, 4 de abril de 2010
Com ou sem Agá?
Um homem branco de 38 anos, com 1,73m de altura e pesando 70 quilos sai correndo de um edifício comercial da Borges de Medeiros, às 12h27 de quarta-feira. Ele veste uma camisa branca sem gravata e calça social preta. Ignorando a aproximação de um veículo motorizado de quatro rodas e cor prata, ele atravessa a rua e é atingido por este mesmo carro, caindo desacordado na via pública.
Forma-se uma multidão e uma viatura da polícia chega rapidamente ao local do acidente. Alguém comenta que a justiça tinha sido feita e que aquele batedor de carteiras (aparentemente fugindo da cena do crime) tinha recebido a punição que merecia. Outra voz protesta e diz que conhecia a vítima, que ele era um bom pai de família e só tentava ir ao hospital visitar o filho doente, durante o intervalo do almoço. Várias outras pessoas apresentaram informações diferentes (e por que não complementares?) sobre o mesmo homem branco de 38 anos, com 1,73m de altura e pesando 70 quilos que saiu correndo de um edifício comercial da Borges de Medeiros, às 12h27 de quarta-feira...
Esta narração foi uma das maneiras mais interessantes que escutei para chegar a uma definição da “Verdade”. E ela foi feita fora da Faculdade de Jornalismo! Na verdade, foi relatada por um professor de História de um cursinho pré-vestibular (cuja quantidade de massa cinzenta era inversamente proporcional à sua massa corpórea), que a partir dela demonstrou como um acontecimento banal do cotidiano com personagens extremamente comuns pode ter diferentes interpretações, dependo do ângulo em que se observa tal evento.
É por isso que o vocábulo escolhido para este blog foi sem o Agá maiúsculo.
Ainda que esteja em franco desuso (nem aparece mais nos dicionários de língua portuguesa editados em Portugal) e que a diferença não seja realmente significativa, prefiro dividir Estórias, porque o termo sempre esteve associado a fábulas, lendas e contos de ficção. Não que as minhas sejam criações de uma imaginação fértil, pois mantenho os cacoetes (=hábitos próprios de uma pessoa ou de um grupo; sestro, mania) da antiga profissão de jornalista. Mas porque elas não pretendem ser uma fria exposição de fatos relativos a um determinado acontecimento da minha vida; não são a “Verdade” sobre a Índia ou qualquer outro lugar que eu tenha passado; são apenas o meu ângulo de observação, a minha versão do evento contada com as minhas palavras.
Assim, as minhas estórias são sem agá.
Forma-se uma multidão e uma viatura da polícia chega rapidamente ao local do acidente. Alguém comenta que a justiça tinha sido feita e que aquele batedor de carteiras (aparentemente fugindo da cena do crime) tinha recebido a punição que merecia. Outra voz protesta e diz que conhecia a vítima, que ele era um bom pai de família e só tentava ir ao hospital visitar o filho doente, durante o intervalo do almoço. Várias outras pessoas apresentaram informações diferentes (e por que não complementares?) sobre o mesmo homem branco de 38 anos, com 1,73m de altura e pesando 70 quilos que saiu correndo de um edifício comercial da Borges de Medeiros, às 12h27 de quarta-feira...
Esta narração foi uma das maneiras mais interessantes que escutei para chegar a uma definição da “Verdade”. E ela foi feita fora da Faculdade de Jornalismo! Na verdade, foi relatada por um professor de História de um cursinho pré-vestibular (cuja quantidade de massa cinzenta era inversamente proporcional à sua massa corpórea), que a partir dela demonstrou como um acontecimento banal do cotidiano com personagens extremamente comuns pode ter diferentes interpretações, dependo do ângulo em que se observa tal evento.
É por isso que o vocábulo escolhido para este blog foi sem o Agá maiúsculo.
Ainda que esteja em franco desuso (nem aparece mais nos dicionários de língua portuguesa editados em Portugal) e que a diferença não seja realmente significativa, prefiro dividir Estórias, porque o termo sempre esteve associado a fábulas, lendas e contos de ficção. Não que as minhas sejam criações de uma imaginação fértil, pois mantenho os cacoetes (=hábitos próprios de uma pessoa ou de um grupo; sestro, mania) da antiga profissão de jornalista. Mas porque elas não pretendem ser uma fria exposição de fatos relativos a um determinado acontecimento da minha vida; não são a “Verdade” sobre a Índia ou qualquer outro lugar que eu tenha passado; são apenas o meu ângulo de observação, a minha versão do evento contada com as minhas palavras.
Assim, as minhas estórias são sem agá.
sexta-feira, 2 de abril de 2010
Mensagem escatológica
Tem gente que morre na praia...
Outros morrem de inveja...
Alguns morrem de vontade...
E há ainda os que morrem pela boca...
Mas eu, desde segunda-feira, devagar e sempre,
estou morrendo pelos esfíncters...
O pior é que não tenho idéia de como ou por que essa diarréia comecou. Não ando comendo mais nos buracos que frequentava; não tempero a comida com mais pimenta do que o usual; nem tenho nenhuma apresentação em público ou prova do vestibular para fazer nos próximos dias... Mas, de repente, meus oito metros de tripa grossa parecem ter se reduzido a 8 centímetros e nem o expresso da máquina de café da empresa fica muito tempo no meu corpo.
Os sintomas podem ser consequência da prática intensiva de yoga, desintoxicando meu organismo. Ou podem ser os 40 graus de Chennai, derretendo não apenas o sabonete em barra do meu banheiro, mas também anos de restos fecais acumulados pelas dobrinhas dos meus intestinos. Pode, também, ser a água salgada e amarela que sai da minha torneira e que uso para escovar os dentes, fazendo uma forçada lavagem estomacal.
Não sei. Só sei que nunca tinha sido tão forte antes, e chego a rezar no ônibus para os milhares de deuses indianos, para me ajudarem a segurar a vontade até encontrar um banheiro limpinho.
E se for mesmo a merda que sustenta o homem, daqui a pouco vou estar de muletas ou cadeira de rodas.
Sinto pela escatologia, mas, desde que essa situação começou só tenho tido pensamentos sujos e precisava, também, dar vazão mental a tanto sofrimento físico. Para os (in)satisfeitos com as palavras, seguem outras de conforto. Ainda bem que as palavras não têm cheiro!
Outros morrem de inveja...
Alguns morrem de vontade...
E há ainda os que morrem pela boca...
Mas eu, desde segunda-feira, devagar e sempre,
estou morrendo pelos esfíncters...
O pior é que não tenho idéia de como ou por que essa diarréia comecou. Não ando comendo mais nos buracos que frequentava; não tempero a comida com mais pimenta do que o usual; nem tenho nenhuma apresentação em público ou prova do vestibular para fazer nos próximos dias... Mas, de repente, meus oito metros de tripa grossa parecem ter se reduzido a 8 centímetros e nem o expresso da máquina de café da empresa fica muito tempo no meu corpo.
Os sintomas podem ser consequência da prática intensiva de yoga, desintoxicando meu organismo. Ou podem ser os 40 graus de Chennai, derretendo não apenas o sabonete em barra do meu banheiro, mas também anos de restos fecais acumulados pelas dobrinhas dos meus intestinos. Pode, também, ser a água salgada e amarela que sai da minha torneira e que uso para escovar os dentes, fazendo uma forçada lavagem estomacal.
Não sei. Só sei que nunca tinha sido tão forte antes, e chego a rezar no ônibus para os milhares de deuses indianos, para me ajudarem a segurar a vontade até encontrar um banheiro limpinho.
E se for mesmo a merda que sustenta o homem, daqui a pouco vou estar de muletas ou cadeira de rodas.
Sinto pela escatologia, mas, desde que essa situação começou só tenho tido pensamentos sujos e precisava, também, dar vazão mental a tanto sofrimento físico. Para os (in)satisfeitos com as palavras, seguem outras de conforto. Ainda bem que as palavras não têm cheiro!
Faz-de-Conta indiano
Era uma vez duas brasileiras na Índia, dividindo o mesmo luxuoso apartamento em Anna Nagar. Uma pagava o aluguel, enquanto a outra comprava utensílios para tornar o lugar um verdadeiro palácio de contos de fada e esquecer, por algumas horas, o ambiente quente e fétido do lado de fora.
Numa não tão bela e tórrida manhã de Chennai, uma acordou com um barulho de obras sendo feitas no quarto ao lado pela outra. Essa última tinha problemas mais sérios que o normal com o calor, a água, o cheiro e as pessoas da cidade e queria construir uma redoma de vidro bem fresquinha, perfumada e com água mineral 24 horas por dia.
Por isso, estava instalando um potente ar-condicionado, cedinho naquela manhã.Farta de tanta futilidade, a primeira armou um barraco dentro da cozinha imperial e decidiu que era hora de apreciar lentilhas e abandonar a luxuosa masmorra do terceiro andar.
No entanto, até encontrar uma cabana decente, a tortura psicológica da malvada brasileira em cima da outra quase superou a das histórias da carochinha.
Felizmente, não por um passe de mágica, mas sim com a ajuda do seu homem das cavernas encantado, a brasileira por-muito-tempo-trouxa encontrarou o perfeito BHK (bedroom, hall and kitchen) dos sonhos.
E, apesar de acreditar em finais felizes e na justiça dos milhares de deuses indianos, a brasileira não-mais-idiota bolou um plano de vingança com seus botões. Mesmo sozinha, a brasileira agora-smart levou do apartamento cinco-estrelas absolutamente tudo que havia adquirido para as duas levarem uma vida sossegada. Só deixou para trás... Sujeira... Muita sujeira, pó, fios de cabelo, fósforos usados, cinzas de incenso, além do chuveiro entupido com a água salgada e amarela da Baía de Bengal e um vasamento no vaso sanitário.
E, ainda saboreando a doçura dessa vigança, a mais-nova-malvada brasileira adicionou uma pitada generosa de açúcar nos cantos dos armários e das portas do seu (não-mais) suntuoso aposento na Anna Nagar. Assim, se por demais abatida pelo calor e pela preguiça de se livrar da sujeira da outra, a primeira brasileira não abandonar seu espaço high-tech, em breve terá a companhia de muitos... E muitas... Formigas... Baratas... E, conhecendo bem os cantos e contos de fada na Índia, possivelmente ratos.
Acumuladas
Sabem qual é o cúmulo do caos, na Índia?
Ouvir do cobrador que, algumas vezes, o ônibus para em certas paradas e, em outras, não!
O cúmulo da emoção?
Sentar numa caixa ambulante de metal, caindo aos pedaços, chamada ônibus na Índia, e sentir que, à medida que o motorista acelera e o barulho da máquina aumenta, tudo vai se desmontar a qualquer momento.
O cúmulo da integração com o meio ambiente?
Viajar de ônibus na época das monções e ficar ensopado com as goteiras!
O cúmulo do azar?
Sobreviver a um acidente de trânsito, mas morrer afogado ou por falta de socorro já que, ao invés de vidros, as janelas dos ônibus indianos têm grades de ferro!
O cúmulo da divisão por sexo?
Ter uma porta de entrada e saída e uma ala especial para cada gênero nos ônibus da Índia!
O cúmulo da superação humana?
Pegar um ônibus na hora de pique na Índia, quando o número de passageiros supera o espaço físico e tem gente literalmente pendurada nas portas e janelas!
O cúmulo da fé?
Comprar uma bicicleta e rezar para não chover nem ter um pneu furado e ser obrigado a pegar um ônibus na Índia!
Ouvir do cobrador que, algumas vezes, o ônibus para em certas paradas e, em outras, não!
O cúmulo da emoção?
Sentar numa caixa ambulante de metal, caindo aos pedaços, chamada ônibus na Índia, e sentir que, à medida que o motorista acelera e o barulho da máquina aumenta, tudo vai se desmontar a qualquer momento.
O cúmulo da integração com o meio ambiente?
Viajar de ônibus na época das monções e ficar ensopado com as goteiras!
O cúmulo do azar?
Sobreviver a um acidente de trânsito, mas morrer afogado ou por falta de socorro já que, ao invés de vidros, as janelas dos ônibus indianos têm grades de ferro!
O cúmulo da divisão por sexo?
Ter uma porta de entrada e saída e uma ala especial para cada gênero nos ônibus da Índia!
O cúmulo da superação humana?
Pegar um ônibus na hora de pique na Índia, quando o número de passageiros supera o espaço físico e tem gente literalmente pendurada nas portas e janelas!
O cúmulo da fé?
Comprar uma bicicleta e rezar para não chover nem ter um pneu furado e ser obrigado a pegar um ônibus na Índia!
quinta-feira, 1 de abril de 2010
Coisas da Índia
Não sei se Deus é, de fato, brasileiro, mas que todos os parentes dele são indianos não tenho dúvida. Aqui, respira-se religião o dia inteiro.
Em apenas horas circulando por qualquer cidade da Índia, encontram-se mulheres hindus nos seus saris coloridíssimos, homens sikh com metros de pano enrolados na cabeça, crianças com o típico chapéu muçulmano e velhas freiras em hábitos desbotados.
Mas deixar de lado o óbvio e prestar atenção nos detalhes é ainda mais fascinante.
Sou acordada diariamente por um vizinho hindu, entoando o mais poderoso entre os mantras, a palavra OM. Depois dele, vem o mulah no minarete mais alto da mesquita mais próxima do meu condomínio, chamando os fiéis para a primeira oração do dia. Então, saio de casa e sempre me deparo com uma pilha de sandálias e chinelos do lado de fora dos outros apartamentos, porque, entre os indianos, é sinal de respeito não levar sujeira da rua para dentro da casa de ninguém. Assim, as visitas são feitas de pé descalços.
E por falar nele, mulheres casadas não podem esquecer os anéis nos dedinhos do pé e as tornozeleiras de prata ou de ouro, finas ou grossas, dependendo da casta e da situação financeira, mas sempre barulhentas.
Pelas ruas, há templos por todos os lados, inclusive dentro de árvores, em cima de pedras ou onde for possível cravar a imagem de um dos deuses indianos e colocar uma vela para queimar.
Os comerciantes também fazem a parte deles e, diariamente, acendem incensos na frente das lojas ou até nas carroças de frutas e verduras ou dentro dos rickshaws. E para afastar o olho gordo dos invejosos, independente de casta ou religião, eles penduram uma máscara de um diabo com a língua para fora de diversas cores, tamanhos e materiais, em todo o qualquer tipo de edificação. Já os motoristas, penduram amarrados, no pára-choque do caminhão, alguns limões, pimentas e folhas de arruda. Para quê? Só Deus (e tem que ser indiano) para saber!
Algumas mulheres muito religiosas passam um pó amarelo no rosto (cúrcuma ou açafrão da terra), por ser considerado auspicioso. Outras jejuam no dia da lua cheia para trazer longevidade para os maridos. Se funciona, talvez algum cientista possa avaliar, mas que o ritual não diminui em nada o tamanho da barriga delas, tenho certeza.
E a comida é outro ritual extremamente importante entre os hindus, quase litúrgico.
Para se saborear, de fato, uma refeição, tem-se que comer com as mãos, ou melhor, com a mão direita e bem lavada. Assim, pode-se sentir melhor a temperatura, a textura, a energia da comida. E o resultado de cada refeição, sejam sons ou a própria digestão, são igualmente importantes e considerados atos normais. Arrotar à mesa é tão aceito quanto soluçar. E para deixar claro até que ponto vai a religiosidade dos hindus, tem-se que entender como eles se comportam num dos mais básicos atos diários de qualquer ser vivo: a expulsão dos excrementos não aproveitados pelo corpo. Por medo de ofender um dos seus deuses, eles não podem defecar perto de templos ou lugares sagrados. Para não contaminar o solo, também estão proibidos de se aproximar de rios, lagos etc. O lugar deve ser escuro e, de preferência, coberto, para se evitar olhar o sol, a lua, as estrelas ou qualquer imagem ou criação divina. Assim, eles entram nesses banheiros de pés descalços (de novo, em sinal de respeito) e se acocoram num buraco cavado no chão de piso simples. Quando terminam, usam muita água e a mão esquerda para a limpeza. Papel higiênico é coisa realmente ocidental, porque eles não entendem a idéia de "guardar" algo tão impuro ao invés de se livrar dele imediatamente. E dizem que o brasileiro é um povo religioso.
Mais coisas da Índia
Onde mais seria possível ir numa farmácia e adquirir comprimidos avulsos ou picolé de gengibre, na mesma lojinha? Ou pagar para andar numa lata enferrujada e caindo aos pedaços, chamada de ônibus?
"Hotel", aqui, significa restaurante e para encontrar um quarto para passar a noite deve-se perguntar por uma "Guest House".
Nas "Backeries" da Índia tudo o que não se encontram são pães (o que, para os indianos, é o chapati do dia-a-dia), apenas chips feitos de banana frita extremamente picantes. Também há similares das nossas rapaduras e cocodas chamadas, respectivamente, de chikki e coconut chikki.
Outra peculiaridade da Índia é o intervalo de 15 minutos no meio de uma sessão de cinema. Para os filmes locais (que duram, no mínimo, 4 horas e nos quais os heróis desafiam todas as leis da física moderna), é até compreensível; mas para um filme hollywoodiano de pura adrenalina e apenas 90 minutos é um balde de água fria.
Mas o que vale a pena são os comerciais (sempre de jóias) que rodam nesses intervalos. Tem um, em especial, que me arranca boas risadas. É sobre o típico casamento arranjado entre os pais dos noivos. A noiva, vestida rica e lindamente, tem a cabeça levemente baixa e olhar distante, resignada (afinal, é mais uma obrigação social do que uma verdadeira escolha pessoal). Então, uma bandeja cheia de colares, anéis, pulseiras de ouro aparece na tela e lê-se que o casamento tem suas próprias recompensas!
A noiva, então, sentindo-se plenamente recompensada, abre um imenso sorriso para o noivo (sempre de bigodinho, sinal de virilidade por aqui). Pelo menos, eles não são hipócritas e sabem que o dote é quase tudo para um bom casamento.
Mas, para mim, o fascínio diário são os sáris que extrapolam nas cores. E até mesmo para uma brasileira acostumada com a tropicalidade das roupas, nada se compara à criatividade e genialidade das indianas ao combinar cores, texturas e designs num único pedaço de pano, medindo cerca de 5 metros e enrolado ao corpo magnificamente. Não importa se num escritório com ar-condicionado de uma multi-nacional ou no trabalho árduo da contrução civil; se debaixo das chuvas monçônicas ou do calor abrasador da ìndia, os sáris permanecem, técnica e corretamente, envoltos do corpo dessas estranhas e fascinates mulheres; e as pregas simetricamente arranjadas. Infelizmente, preciso nascer indiana na próxima vida para aprender a vestir um deles.
"Hotel", aqui, significa restaurante e para encontrar um quarto para passar a noite deve-se perguntar por uma "Guest House".
Nas "Backeries" da Índia tudo o que não se encontram são pães (o que, para os indianos, é o chapati do dia-a-dia), apenas chips feitos de banana frita extremamente picantes. Também há similares das nossas rapaduras e cocodas chamadas, respectivamente, de chikki e coconut chikki.
Outra peculiaridade da Índia é o intervalo de 15 minutos no meio de uma sessão de cinema. Para os filmes locais (que duram, no mínimo, 4 horas e nos quais os heróis desafiam todas as leis da física moderna), é até compreensível; mas para um filme hollywoodiano de pura adrenalina e apenas 90 minutos é um balde de água fria.
Mas o que vale a pena são os comerciais (sempre de jóias) que rodam nesses intervalos. Tem um, em especial, que me arranca boas risadas. É sobre o típico casamento arranjado entre os pais dos noivos. A noiva, vestida rica e lindamente, tem a cabeça levemente baixa e olhar distante, resignada (afinal, é mais uma obrigação social do que uma verdadeira escolha pessoal). Então, uma bandeja cheia de colares, anéis, pulseiras de ouro aparece na tela e lê-se que o casamento tem suas próprias recompensas!
A noiva, então, sentindo-se plenamente recompensada, abre um imenso sorriso para o noivo (sempre de bigodinho, sinal de virilidade por aqui). Pelo menos, eles não são hipócritas e sabem que o dote é quase tudo para um bom casamento.
Mas, para mim, o fascínio diário são os sáris que extrapolam nas cores. E até mesmo para uma brasileira acostumada com a tropicalidade das roupas, nada se compara à criatividade e genialidade das indianas ao combinar cores, texturas e designs num único pedaço de pano, medindo cerca de 5 metros e enrolado ao corpo magnificamente. Não importa se num escritório com ar-condicionado de uma multi-nacional ou no trabalho árduo da contrução civil; se debaixo das chuvas monçônicas ou do calor abrasador da ìndia, os sáris permanecem, técnica e corretamente, envoltos do corpo dessas estranhas e fascinates mulheres; e as pregas simetricamente arranjadas. Infelizmente, preciso nascer indiana na próxima vida para aprender a vestir um deles.
Coisas (poéticas) da Índia
A Índia que inspirou a criação do Kama Sutra é capaz de gerar muita poesia.
Outra escritora que poderia ter descrito muito bem a Índia atual foi Clarice Lispector. Na verdade, ela o fez. Sem o saber, essa visionária colocou num trecho de "A Paixão Segundo G. H.", de 1964, a mais repugnante e banalizada realidade do país dos (verdadeiros) Maharajás.
"Cada olho reproduzia a barata inteira.
- Perdoa eu te dar isto, mão que seguro, mas é que não
quero isto para mim! Toma essa barata, não quero o que vi.
Ali estava eu boquiaberta e ofendida e recuada -
diante do ser empoeirado que me olhava. Toma o que eu
vi: pois o que eu via com um constrangimento tão
penoso e tão espantado e tão inocente, o que eu via
era a vida me olhando.
Como chamar de outro modo aquilo horrível e cru,
matéria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto
eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu
caindo séculos e séculos dentro de uma lama - era
lama, e nem sequer lama já seca mas lama ainda úmida e
ainda viva, era uma lama onde se remexiam com lentidão
insuportável as raízes de minha identidade. (...)
Olhei-a, à barata: eu a odiava tanto que passava para
o seu lado, solidária com ela, pois não suportaria
ficar sozinha com minha agressão. (...)
A barata é pura sedução. Cílios, cílios pestanejando que chamam".
Clarice, esplêndida e poeticamente, resumiu a miséria individual e coletiva de grande parte da Índia. Uma imensa colônia, pilhada e depois abandonada às moscas, baratas e ratos pelos colonizadores britânicos. Uma imensa colcha de retalhos, composta por diferentes reinos, línguas, povos e religiões e deixada para trás pela modernidade no tratamento de doenças medievais e na igualdade dos direitos humanos.
Edifícios parcialmente destruídos ou ainda não de todo construídos; ruas esburacadas; montes de lixo empilhados e banalizados pelos seres humanos.
Não é por acaso que baratas e ratos são quase animais de estimação! Assim como aves carniceiras. O que poderia ter influenciado uma das mais românticas peças teatrais de todos os tempos. Uma pena Willian Shakespeare não ter sido contemporâneo dos seus compatriotas britânicos que invadiram e conquistaram a Índia. Se o tivesse, talvez a Cena 5 do Ato 3 de "Romeu e Julieta" tivesse sido bem diferente. E a bela Capuleto não teria tido dificuldade em distinguir os cantos do rouxinol (nightingale) ou da cotovia (lark).
"JULIETE:
Wilt thou be gone? it is not yet near day:
It was the nightingale, and not the lark,
That pierced the fearful hollow of thine ear;
Nightly she sings on yon pomegranate-tree:
Believe me, love, it was the nightingale."
Por aqui, não importa se é noite ou se é dia. Não há rouxinol ou cotovia, mas corvos comedores de carniça. Ideais para a decomposição de uma grande cultura, mas ainda capaz de produzir poesia.
Acho, porém, que talvez os indianos devessem, sim, dar mais valor aos frutos de seu solo. Talvez devessem se inspirar no milenar Kama Sutra e cuidar mais da higiene (pessoal e ambiental) do corpo e não somente da alma. Lord Ganesh remove obstáculos do caminho, mas não a sujeira nociva de um bilhão de fiéis.
Supostamente escrita no seculo IV A.C., onde hoje está a sagrada cidade hindu de Varanasi (no estado de Uttar Pradesh), a obra de Vatsyayana tem, de fato e ironicamente, pouco a ver com um tratado sobre sexo. Apenas 20% do seu conteúdo (os mais populares no lado oeste do globo) é destinado às 64 posições sexuais. Os 80% restantes formam um compêndio sobre higiene pessoal e sobre como ser um bom cidadão.
Não admira que os próprios indianos dêem pouca atenção à arte do amor e permaneçam castos até trocarem as guirlandas do matrimônio, cobertos do pescoço ao tornozelos por panos e tabus.
Mas esse fascinante território indiano podia ter sido a pátria não apenas do autor de as "Regras do Desejo" (Kama Sutra, em sânscrito), mas também de Carlos Drummond de Andrade. Ah, se aquele mineirinho de Itabira tivesse vivido o suficiente para admirar o trânsito da Índia, em pleno século XXI, teria, certamente, mudado seu poema...
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma VACA
tinha uma VACA no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma VACA."
Nâo apenas uma, saudoso Drummond, mas várias. O rebanho inteiro. E todas sagradas. Às vezes, também há cabras (e seus pastores) na bucólica paisagem urbana de Bangalore. E não é difícil encontrar cachorros vira-latas nesse mesmo caminho. Mas o Carlos não sabia.
"Cada olho reproduzia a barata inteira.
- Perdoa eu te dar isto, mão que seguro, mas é que não
quero isto para mim! Toma essa barata, não quero o que vi.
Ali estava eu boquiaberta e ofendida e recuada -
diante do ser empoeirado que me olhava. Toma o que eu
vi: pois o que eu via com um constrangimento tão
penoso e tão espantado e tão inocente, o que eu via
era a vida me olhando.
Como chamar de outro modo aquilo horrível e cru,
matéria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto
eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu
caindo séculos e séculos dentro de uma lama - era
lama, e nem sequer lama já seca mas lama ainda úmida e
ainda viva, era uma lama onde se remexiam com lentidão
insuportável as raízes de minha identidade. (...)
Olhei-a, à barata: eu a odiava tanto que passava para
o seu lado, solidária com ela, pois não suportaria
ficar sozinha com minha agressão. (...)
A barata é pura sedução. Cílios, cílios pestanejando que chamam".
Clarice, esplêndida e poeticamente, resumiu a miséria individual e coletiva de grande parte da Índia. Uma imensa colônia, pilhada e depois abandonada às moscas, baratas e ratos pelos colonizadores britânicos. Uma imensa colcha de retalhos, composta por diferentes reinos, línguas, povos e religiões e deixada para trás pela modernidade no tratamento de doenças medievais e na igualdade dos direitos humanos.
Edifícios parcialmente destruídos ou ainda não de todo construídos; ruas esburacadas; montes de lixo empilhados e banalizados pelos seres humanos.
Não é por acaso que baratas e ratos são quase animais de estimação! Assim como aves carniceiras. O que poderia ter influenciado uma das mais românticas peças teatrais de todos os tempos. Uma pena Willian Shakespeare não ter sido contemporâneo dos seus compatriotas britânicos que invadiram e conquistaram a Índia. Se o tivesse, talvez a Cena 5 do Ato 3 de "Romeu e Julieta" tivesse sido bem diferente. E a bela Capuleto não teria tido dificuldade em distinguir os cantos do rouxinol (nightingale) ou da cotovia (lark).
"JULIETE:
Wilt thou be gone? it is not yet near day:
It was the nightingale, and not the lark,
That pierced the fearful hollow of thine ear;
Nightly she sings on yon pomegranate-tree:
Believe me, love, it was the nightingale."
Por aqui, não importa se é noite ou se é dia. Não há rouxinol ou cotovia, mas corvos comedores de carniça. Ideais para a decomposição de uma grande cultura, mas ainda capaz de produzir poesia.
Acho, porém, que talvez os indianos devessem, sim, dar mais valor aos frutos de seu solo. Talvez devessem se inspirar no milenar Kama Sutra e cuidar mais da higiene (pessoal e ambiental) do corpo e não somente da alma. Lord Ganesh remove obstáculos do caminho, mas não a sujeira nociva de um bilhão de fiéis.
Cuidado com as traças!
Começou como uma coceira boba perto do calcanhar direito. Umas bolinhas pequenas, com jeito de alergia.
Depois, o comichão se alastrou para a panturrilha e a perna esquerda. E, em poucos dias, os inicialmente inofensivos sinais de alergia tinham se transformado em imensas bolas vermelhas, cobrindo meus membros inferiores até a altura da cintura. Parecia que eu tinha sido picada por um enxame inteiro de mosquitos.
Naquele ponto, a conceira já tinha se tornado insuportável, e ainda vinha acompanhada de ardência, na hora do banho.
Mas não conseguia me lembrar de ter feito nada além do usual. Era o meu terceiro mês na Índia e continuava trabalhando no mesmo escritório empoeirado da FSL, dividindo meu quarto e banheiro com as mesmíssimas 3 outras pessoas e viajando para os projetos em Kundapura (na costa oeste do estado de Karnataka) nos ônibus “Volvo-Deluxe” de sempre...
Ah! Era isso!
Sim... Estava voltando... Ainda vaga.. A lembrança da minha recente volta de Kundapura. Sim... Estava de pés descalços e sem meia no meu assento “sleeper”, mais preocupada com o assédio de possíveis tarados do que com a higiene dos estofados dos bancos reclináveis.
Sim... O pano imundo que servia de cortina (usada em ônibus e trens para dar privacidade e propiciar o sono) estava me incomodando, assim como... Uma coceirinha no calcanhar direito. Damn it! Tinha sido naquela maldita viagem de 9 horas, sacodinho em cada buraco dos 474 quilômetros da estrada entre Bangalore e Kundapura que tinha pegado a tal alergia.
A questão do “onde” já tinha sido exclarecida. Eu precisava, então, descobrir o quê era e como dar fim àquilo. Havia se passado quase dez dias do meu retorno e nem sinal das bolas vermelhas, da coceira ou da ardência darem trégua. Tudo bem que eu não precisa me preocupar em esconder as pernas, já que elas deviam permanecer cobertas na Índia; mas o mal-estar entre as minhas colegas de quarto já era evidente. Eu tinha que vencer minha fobia de hospitais e medicamentos alopáticos produzidos no país e procurar um médico.Ou não. Sentar na sala de espera da emergência de uma clínica em Indira Nagar me deixou com dúvidas. E se eu pegasse outra peraba e saísse dali ainda pior?
Tarde demais... Estava tomando coragem para ir embora, quando ouvi meu nome ser chamado. Damn it!
No consultório do clínico geral (um homem de meia-idade e com feições amigáveis), expliquei a situação e expus o estado dos meus calcanhares. O médico pareceu tão alarmado que foi perguntando onde mais, no corpo, eu apresentava tais sinais, e pedindo que eu os mostrasse...
“Sem problemas”, pensei, com a convicção ingênua de que aqueles profissionais da saúde, em qualquer parte do mundo, eram seres vivos assexuados ou, no mínimo, acostumados a ver o corpo humano, fosse ele feminino ou masculino. Certo?
Bem, talvez nem todos. Fiquei intrigada quando ele começou a me perguntar se também tinha marcas da alergia nos seios e achei, por bem, terminar aquele exame nada ortodoxo por ali mesmo, antes que ele me pedisse para ver algo mais.
Deixei a clínica furiosa, mas praticamente como havia chegado. Com a exceção da receita para comprar SEIS diferentes remédios (incluindo um antibiótico – prática normal na Índia, para tratar qualquer resfriado) e do assutador diagnótico: o que eu tinha não era uma simples alergia ou picadas de mosquito, mas uma combinação de ambas. Eu tinha desenvolvido uma reação alérgica a bedbugs (traças!!!), pegos no super confortável modelo Deluxe dos ônibus da marca Volvo. Damn it!
Bad things come in threes
A primeira vez foi pura falta de atenção. Já tinha ouvido falar das inúmeras estórias de assédio na Índia, pelas intercambistas. Eu sabia até me defender na língua local! Mas estava tão concentrada em atravessar aquela movimentada rodovia que separava o escritório da ONG do meu apartamento que não consegui antecipar a situação.
Lá estava eu, a meio caminho do outro lado da estrada, em pé no canteiro central e esperando o momento certo para cruzar em segurança, quando ouvi um som abafado e senti uma palmada no lado esquerdo da bunda. Depois de recuperar o equilíbrio, pude ver o motorista com ar vitorioso e metade do corpo para fora do carro. Nunca mais me destraí no trânsito. E por mais que tivesse memorizado o tal palavrão em kannada, as palavras de xingamento só saíam em português. Eu precisava me acalmar, primeiro, e de mais treino, depois, pois minha intuição me dizia que algo parecido poderia se repetir.
A segunda vez foi praticamente um convite. Estava voltando de uma viagem curta a um dos projetos da ONG, num ônibus intermunicipal, à noite e sozinha. Eu era a única estrangeira; na verdade, a única mulher naquela sombria sucata ambulante.
Estava sentada à janela, com os braços esticados no banco da frente e contando os minutos que faltavam para chegar em Bangalore, quando comecei a sentir algo perto da minha axila esquerda. Não dei muita importância, porque achei que fosse minha dupata (lenço indiano comprido para esconder a forma dos seios) esvoaçando ao vento da janela aberta. Depois de alguns minutos, senti de novo. Virei a cabeça e me deparei com uma mão estranha avançando em direção ao meu peito. Dessa vez, consegui articular as palavras em inglês. Só não pude fazer um escândalo, já que estava em franca minoria e não queria incitar mais ninguém no ônibus. Nunca mais viajei depois de escurecer.
A terceira vez foi um sentimento de falsa segurança aliado à exagerada autoconfiança. Estava há mais de três anos na Índia e já me sentia com conhecimento de causa quando o assunto era assédio. Para economizar umas rúpias e minha paciência de outra viagem num rickshaw, e queimar algumas calorias, decidi caminhar os 5 quilômetros que separam o centro da cidade do meu apartamento. Não deviam ser duas horas da tarde e eu ainda estava no trecho “nobre” do caminho, quando um grupo de homens passavam por mim e um deles passou a mão em mim. Que cena! Só faltou a polícia e algo nas mãos pra acertar no engraçadinho, já que meus gritos conseguiram juntar uma considerável multidão. Nunca mais sai de casa sem um guarda-chuvas, mesmo na estação da seca: um instrumento perfeitamente legal e extremamente barato para auto-defesa.
Lá estava eu, a meio caminho do outro lado da estrada, em pé no canteiro central e esperando o momento certo para cruzar em segurança, quando ouvi um som abafado e senti uma palmada no lado esquerdo da bunda. Depois de recuperar o equilíbrio, pude ver o motorista com ar vitorioso e metade do corpo para fora do carro. Nunca mais me destraí no trânsito. E por mais que tivesse memorizado o tal palavrão em kannada, as palavras de xingamento só saíam em português. Eu precisava me acalmar, primeiro, e de mais treino, depois, pois minha intuição me dizia que algo parecido poderia se repetir.
A segunda vez foi praticamente um convite. Estava voltando de uma viagem curta a um dos projetos da ONG, num ônibus intermunicipal, à noite e sozinha. Eu era a única estrangeira; na verdade, a única mulher naquela sombria sucata ambulante.
Estava sentada à janela, com os braços esticados no banco da frente e contando os minutos que faltavam para chegar em Bangalore, quando comecei a sentir algo perto da minha axila esquerda. Não dei muita importância, porque achei que fosse minha dupata (lenço indiano comprido para esconder a forma dos seios) esvoaçando ao vento da janela aberta. Depois de alguns minutos, senti de novo. Virei a cabeça e me deparei com uma mão estranha avançando em direção ao meu peito. Dessa vez, consegui articular as palavras em inglês. Só não pude fazer um escândalo, já que estava em franca minoria e não queria incitar mais ninguém no ônibus. Nunca mais viajei depois de escurecer.
A terceira vez foi um sentimento de falsa segurança aliado à exagerada autoconfiança. Estava há mais de três anos na Índia e já me sentia com conhecimento de causa quando o assunto era assédio. Para economizar umas rúpias e minha paciência de outra viagem num rickshaw, e queimar algumas calorias, decidi caminhar os 5 quilômetros que separam o centro da cidade do meu apartamento. Não deviam ser duas horas da tarde e eu ainda estava no trecho “nobre” do caminho, quando um grupo de homens passavam por mim e um deles passou a mão em mim. Que cena! Só faltou a polícia e algo nas mãos pra acertar no engraçadinho, já que meus gritos conseguiram juntar uma considerável multidão. Nunca mais sai de casa sem um guarda-chuvas, mesmo na estação da seca: um instrumento perfeitamente legal e extremamente barato para auto-defesa.
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