Parecia perfeito. Eu já havia estado em Panaji (capital do estado de Goa e antiga colônia portuguesa) várias vezes a trabalho. Na verdade, tinha sido eu a responsável por fazer os arranjos para a acomodação dos voluntários internacionais e os contatos para o projeto de três semanas, em parceria com outra ONG local.
No fundo, eu estava com muita vontade de liderar aquele acampamento. Além de ter feito a coordenação de tais eventos por quase quatro meses, treinando “team leaders” para lidar com todo o tipo de problema e personalidade, eu mesma nunca tinha sido uma, nunca tinha tido tal experiência. Estava na hora de sentir, nos ombros, o peso de tamanha responsabilidade e de colocar, em prática, tanta teoria.
Assim, na falta de outra pessoa disponível e qualificada e, no último minuto possível, antes do desembarque dos estrangeiros, fui incumbida de tal tarefa e mandada no primeiro ônibus de Bangalore para a capital de Goa.
Era manhã de 09 de agosto de 2004 e eu descia na estação central de Panaji poucas horas antes dos próprios intercambistas. Mal tive tempo de deixar minha mochila na casa que havia alugado para os próximos 21 dias e cumprimentar a família proprietária, e já tinha que voltar para receber os voluntários.
Por falta de tempo e organização, eu já começava meu acampamento quebrando a primeira regra da ONG e não carregava cartaz algum com os nomes das pessoas. Teria que confiar no meu bom senso e abordar aquelas que menos se parecessem com os típicos indianos. Soava lógico, mas eu não contava com o fato de que Panaji era visitada, todos os dias, por centenas de turistas, a maioria deles europeu, de pele clara e com cara de mochileiros, ou seja, com o perfil que eu procurava.
Depois de horas e voltas pela área central da rodoviária, havia encontrado seis dos meus sete voluntários inscritos. “A japonesa deve ter desistido na última hora”, pensei. Era, relativamente, comum naquele ramo e, extremamente, plausível naquela situação. Só tinha um problema imediato com o qual lidar: umas das estrangeiras (muçulmana, moradora de Paris e refugiada religiosa de uma das ex-colônias francesas na África) tinha tido a mala confiscada no aeroporto de Mumbai e estava apenas com a burca do corpo. Seria mais fácil encontrar roupas adequadas para ela em Hyderabad (capital indiana de maioria islâmica), mas não na Goa colonizada por portugueses cristãos! Era a primeira de uma série de dores-de-cabeça que teria em três semanas.
A segunda foi descobrir, na manhã seguinte, que a japonesa estava, sim, na Índia, mas perdida em algum ponto entre os estados de Kerala e Maharashtra. Foi uma verdadeira enxaqueca descobrir a exata localização, já que ela tinha um inglês pouco fluente. Dois dias mais tarde, com os nervos de todos à flor da pele e o programa atrasado, encontramos Mio sentada num banco da estação ferroviária de Margao, no sul de Goa. Parecia que a tempestade tinha finalmente cedido e que, dali em diante, apenas dias melhores viriam. Ilusão que pouco durou.
Além das chuvas monçônicas (que atingem o estado entre junho e setembro), começaram as tormentas diárias de reclamações. Cada voluntário queria comer algo diferente, sair para um lugar turístico diferente, fazer algo diferente. Poucos pareciam, de fato, cientes que estávamos fazendo um serviço social para a conscientização da transmissão do HIV, numa das partes da Índia que registra o maior número de casos. Poucos pareciam se dar conta da importância da mensagem que, juntos com a outra ONG local, tentávamos passar para alunos das escolas públicas da região. Poucos pareciam dar valor ao teatro de rua que apresentávamos para caminhoneiros (um dos grupos mais atingidos pelo vírus). Mas todos sabiam reclamar da água do banho que demorava para esquentar, da comida apimentada, dos mosquitos à noite, da distância que tínhamos que caminhar para chegar às escolas, da chuva, do sol, do calor, do mormaço...
Até que algo maior emergiu na rotina de todos nós: o colapso nervoso e emocional da intercambista belga. Talvez por estarmos lidando com as formas de transmissão do HIV ou talvez pelo constante assédio dos indianos em cima das européias, o fato é que no final da primeira semana, as histórias de abuso sexual na infância sofridas pela menina vieram à tona.
Por aquela ninguém esperava ou tinha estrutura psicológica para lidar. Eu mesma quase surtei com a bola de neve de problemas que crescia diariamente e, só não abandonei tudo e todos na pensão em Dona Paula (como fez uma intercambista) por falta de energia. Era imenso o esforço que eu fazia para manter a situação sob aparente controle. Várias vezes, trancada no banheiro da casa alugada, eu chorava sozinha e silenciosamente, sem o apoio do chefe da ONG em Bangalore e apenas rezando para que os dias passassem mais rapidamente e que eu pudesse voltar à minha conhecida rotina.
O golpe final foi deferido na última sexta-feira do acampamento, quando uma das estrangeiras causou uma cena e acusou a dona da pensão de ter “sumido” com o dinheiro dela. Faltando pouco mais de 48 horas para terminar o programa, tivemos que fazer as malas e procurar outro lugar, estourando o orçamento estipulado pela organização. Aquele parecia ter sido meu mais longo e atormentador pesadelo em 4 meses de Índia. Mal eu podia jurar que outros piores viriam.
Um comentário:
Tu é corajosa hein!
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