quinta-feira, 1 de abril de 2010

Coisas (poéticas) da Índia

A Índia que inspirou a criação do Kama Sutra é capaz de gerar muita poesia.


Supostamente escrita no seculo IV A.C., onde hoje está a sagrada cidade hindu de Varanasi (no estado de Uttar Pradesh), a obra de Vatsyayana tem, de fato e ironicamente, pouco a ver com um tratado sobre sexo. Apenas 20% do seu conteúdo (os mais populares no lado oeste do globo) é destinado às 64 posições sexuais. Os 80% restantes formam um compêndio sobre higiene pessoal e sobre como ser um bom cidadão.
Não admira que os próprios indianos dêem pouca atenção à arte do amor e permaneçam castos até trocarem as guirlandas do matrimônio, cobertos do pescoço ao tornozelos por panos e tabus.

Mas esse fascinante território indiano podia ter sido a pátria não apenas do autor de as "Regras do Desejo" (Kama Sutra, em sânscrito), mas também de Carlos Drummond de Andrade. Ah, se aquele mineirinho de Itabira tivesse vivido o suficiente para admirar o trânsito da Índia, em pleno século XXI, teria, certamente, mudado seu poema...


"Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma VACA
tinha uma VACA no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma VACA."

Nâo apenas uma, saudoso Drummond, mas várias. O rebanho inteiro. E todas sagradas. Às vezes, também há cabras (e seus pastores) na bucólica paisagem urbana de Bangalore. E não é difícil encontrar cachorros vira-latas nesse mesmo caminho. Mas o Carlos não sabia.

Outra escritora que poderia ter descrito muito bem a Índia atual foi Clarice Lispector. Na verdade, ela o fez. Sem o saber, essa visionária colocou num trecho de "A Paixão Segundo G. H.", de 1964, a mais repugnante e banalizada realidade do país dos (verdadeiros) Maharajás.


"Cada olho reproduzia a barata inteira.
- Perdoa eu te dar isto, mão que seguro, mas é que não
quero isto para mim! Toma essa barata, não quero o que vi.
Ali estava eu boquiaberta e ofendida e recuada -
diante do ser empoeirado que me olhava. Toma o que eu
vi: pois o que eu via com um constrangimento tão
penoso e tão espantado e tão inocente, o que eu via
era a vida me olhando.
Como chamar de outro modo aquilo horrível e cru,
matéria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto
eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu
caindo séculos e séculos dentro de uma lama - era
lama, e nem sequer lama já seca mas lama ainda úmida e
ainda viva, era uma lama onde se remexiam com lentidão
insuportável as raízes de minha identidade. (...)
Olhei-a, à barata: eu a odiava tanto que passava para
o seu lado, solidária com ela, pois não suportaria
ficar sozinha com minha agressão. (...)
A barata é pura sedução. Cílios, cílios pestanejando que chamam".


Clarice, esplêndida e poeticamente, resumiu a miséria individual e coletiva de grande parte da Índia. Uma imensa colônia, pilhada e depois abandonada às moscas, baratas e ratos pelos colonizadores britânicos. Uma imensa colcha de retalhos, composta por diferentes reinos, línguas, povos e religiões e deixada para trás pela modernidade no tratamento de doenças medievais e na igualdade dos direitos humanos.
Edifícios parcialmente destruídos ou ainda não de todo construídos; ruas esburacadas; montes de lixo empilhados e banalizados pelos seres humanos.

Não é por acaso que baratas e ratos são quase animais de estimação! Assim como aves carniceiras. O que poderia ter influenciado uma das mais românticas peças teatrais de todos os tempos. Uma pena Willian Shakespeare não ter sido contemporâneo dos seus compatriotas britânicos que invadiram e conquistaram a Índia. Se o tivesse, talvez a Cena 5 do Ato 3 de "Romeu e Julieta" tivesse sido bem diferente. E a bela Capuleto não teria tido dificuldade em distinguir os cantos do rouxinol (nightingale) ou da cotovia (lark).


"JULIETE:
Wilt thou be gone? it is not yet near day:
It was the nightingale, and not the lark,
That pierced the fearful hollow of thine ear;
Nightly she sings on yon pomegranate-tree:
Believe me, love, it was the nightingale."


Por aqui, não importa se é noite ou se é dia. Não há rouxinol ou cotovia, mas corvos comedores de carniça. Ideais para a decomposição de uma grande cultura, mas ainda capaz de produzir poesia.

Acho, porém, que talvez os indianos devessem, sim, dar mais valor aos frutos de seu solo. Talvez devessem se inspirar no milenar Kama Sutra e cuidar mais da higiene (pessoal e ambiental) do corpo e não somente da alma. Lord Ganesh remove obstáculos do caminho, mas não a sujeira nociva de um bilhão de fiéis.